Testando a Sua Audição
por: Sara J. Shammah Lagnado e Luis Eduardo Ribeiro do Valle
(Laboratório de Física da USP – Universidade de São Paulo)
Entendendo as Bases
1. Características da onda sonora
As ondas sonoras são formadas por uma alternância de condensação e rarefação de moléculas do meio externo que se propaga longitudinalmente. A pressão exercida pela frente de condensação e rarefação está relacionada com o volume ou intensidade do som, expresso em decibéis. A freqüência da onda sonora, ou número de ciclos por segundos, em Hertz, está relacionada com a altura do som. Baixas freqüências correspondem a sons graves, e altas freqüências a sons agudos. Estas vibrações de moléculas do meio externo ao serem processadas pelo sistema auditivo geram a sensação de um som. O sistema auditivo é constituído pelo ouvido e pelas vias auditivas centrais. O ouvido, por sua vez é dividido em três partes: o ouvido externo, o ouvido médio e o ouvido interno.
2. O ouvido externo e o ouvido médio
A função do ouvido externo e do ouvido médio é de transmitir a onda sonora para a cóclea (Fig. 1), região do ouvido interno que contém os receptores auditivos.
Você já deve ter notado que ao submergir a cabeça na água, os sons emitidos a sua volta ficam muito atenuados. A onda sonora ao se propagar do ar para a água é em grande parte refletida, de forma que a pressão da onda sonora que é transmitida aos ouvidos é muito menor do que a pressão inicial. Uma situação análoga a essa ocorreria se a onda sonora passasse diretamente do ar para a cóclea, cujos compartimentos são preenchidos por líquidos, a perilinfa e a endolinfa. O ouvido médio contém um sistema de ossículos articulados entre si, o martelo, a bigorna e o estribo. A sua função é de aumentar a pressão da onda sonora sobre o ouvido interno, compensando as perdas devido à diferença de impedância entre o ar e os fluídos que banham a cóclea. Dois fatores contribuem para a amplificação da onda sonora: 1) Os ossículos do ouvido médio formam um sistema de alavancas; 2) A área da membrana timpânica, que separa o ouvido externo do ouvido médio, é maior do que a área da janela oval, que separa o ouvido médio do ouvido interno; esta situação é análoga à uma tachinha em que a pressão exercida pela a ponta é maior do que a pressão sobre a cabeça.
Figura 1: Esquema simplificado dos principais elementos do ouvido. A cóclea ou caracol está representada de forma desenrolada. Diferentes tonalidades de cinza do duto coclear sinalizam a organização tonotópica da cóclea decorrente de propriedades físicas da membrana de Reissner.
Com base nos fatos acima mencionados, depreende-se que a acuidade auditiva pode estar prejudicada devido a:
- Problemas na transmissão da onda sonora do ouvido externo ou do ouvido médio para os receptores auditivos. Estes problemas podem ser causados, por exemplo, pela presença de um tampão de cera no conduto auditivo externo ou por uma lesão dos ossículos do ouvido médio. A deficiência auditiva resultante é denominada surdez de condução. É importante notar que um indivíduo com surdez de condução tem deficiência em detectar vibrações transmitidos por via aérea (e sistema ossicular), porém possui uma capacidade auditiva praticamente normal quando a vibração é transmitida por condução óssea, ou seja quando o ouvido está em contato direto com a fonte vibradora.
- Lesão dos receptores auditivos, do nervo auditivo (ramo coclear do VIII par) ou das vias auditivas centrais. Esta deficiência é denominada surdez sensório-neural.
Conta-se que no fim de sua vida, Beethoven, completamente surdo, compunha suas sinfonias segurando entre os dentes a extremidade de uma varinha de maestro, a outra extremidade ficando apoiada sobre a cauda do piano. Faça o diagnóstico do tipo de surdez que acometeu Beethoven.
3. A cóclea
A cóclea ou caracol é divida em 3 compartimentos pela membrana de Reissner e a membrana basilar.
Estes compartimentos são denominados escala vestibular, escala média ou orgão de Corti e escala timpânica. As escalas vestibular e timpânica são preenchidas pela perilinfa e fazem parte do labirinto ósseo. O órgão de Corti pertence ao labirinto membranoso e é banhado pela endolinfa.
A transmissão da onda sonora pelos ossículos do ouvido médio gera uma onda que se propaga pela escala vestibular, fazendo vibrar a membrana de Reissner, cuja deformação é transmitida para a escala média fazendo vibrar a membrana basilar, sobre a qual estão assentados os receptores auditivos. As características físicas da membrana basilar variam ao longo de sua extensão. Na base da cóclea, a membrana basilar é mais estreita e rígida, em suas porções apicais ela é mais larga e flexível. Devido a estas características, sons de alta freqüência (sons agudos) fazem vibrar de forma máxima as regiões da membrana basilar próximas da base da cóclea, e sons de baixa freqüência (sons graves) deformam maximamente as regiões da membrana basilar próximas do ápice da cóclea. Assim, existe uma representação tonotópica (das diferentes freqüências de ondas sonoras) ao longo da membrana basilar. A população de receptores auditivos localizados na região de deformação máxima da membrana basilar é despolarizada (ou seja ativada) de forma máxima e através da liberação de mediador químico ativa as terminações nervosas periféricas de células que compõem o gânglio espiral. As vias auditivas, à semelhança de outras vias sensoriais, possuem uma organização topográfica de forma que cada região da cóclea tem a sua representação nos diferentes núcleos auditivos e no córtex auditivo primário.
4. Vias auditivas e codificação das informações auditivas.
As vias auditivas estão representadas esquematicamente na Figura 2.
Figura 2: Representação esquemática das vias auditivas. Notem que essas vias cruzam a linha média diversas vezes no tronco cerebral e que as informações auditivas são transmitidas ao colículo inferior pelo lemisco lateral.
O ramo coclear do VIII par de nervo craniano, formado pelos prolongamentos centrais das células do gânglio espiral, penetra na transição bulbo-pontina e inerva os núcleos cocleares dorsal e ventral. Os núcleos cocleares assim como os núcleos auditivos do tronco cerebral a eles conectados emitem axônios que formam o lemnisco lateral e ascendem até o colículo inferior. Do colículo inferior, as informações auditivas são veiculadas para o tálamo (núcleo geniculado medial) que por sua vez se projeta para o córtex auditivo, localizado no giro temporal transverso.
Como o sistema nervoso codifica os diferentes atributos do som? A altura de um som (que corresponde à freqüência da onda sonora) é codificada essencialmente pela população de neurônios do sistema auditivo que é ativada pelo estímulo. Por exemplo, sons graves são representados na porção rostral e sons agudos na porção caudal do giro transverso. O volume de um som é codificado pelo número unidades sensoriais auditivas ativadas e/ou pela freqüência de disparo das unidades sensoriais auditivas. A localização da fonte sonora depende da convergência de sinais biauriculares (oriundos dos dois ouvidos) para um mesmo neurônio do sistema auditivo. Os núcleos olivares superiores e outros relés auditivos do tronco cerebral participam da localização de uma fonte sonora, e este processo é refinado pelo córtex cerebral auditivo. Uma particularidade das vias auditivas é a existência de várias decussações ou cruzamento de vias no tronco cerebral. Este arranjo anatômico faz com que cada ouvido tenha uma representação bilateral, com predominância contralateral nas diferentes estações auditivas e fornece a condição necessária para a localização da fonte sonora.
Resposta Vocês podem notar na Figura 2 que as vias auditivas cruzam a linha média diversas vezes no tronco cerebral. Estas decussações ou cruzamento de vias possibilitam uma interação entre núcleos auditivos de cada lado do tronco cerebral. Estudos de registro de atividade unitária confirmam que células de núcleos auditivos freqüentemente respondem a estímulos sonoros provenientes de ambos os ouvidos. Diferenças de tempo e diferenças de intensidade entre informações vindas do ouvido esquerdo e direito são as pistas utilizadas para a localização de uma fonte sonora. O som atinge antes e de forma mais intensa o ouvido que está localizado mais próximo da fonte sonora do que o ouvido que está mais afastado dela. Sons de baixa freqüência (de até 1.500 Hz) são localizados principalmente com base em diferenças temporais interauriculares e sons de alta freqüência principalmente com base em diferenças de intensidade interauriculares. Podem ser detectadas diferenças temporais de 10 ms e diferenças de intensidade de 1dB. Estas diminutas diferenças explicam a grande precisão na localização de um som. O complexo olivar é a primeira estação da via auditiva que apresenta convergência biauricular, porém outras estruturas auditivas também desempenham um papel neste contexto. As estruturas sub-corticais permitem identificar a lateralidade da fonte sonora, mas a área cortical auditiva primária é fundamental para formarmos uma imagem da posição da fonte sonora no espaço e nos dirigirmos em sua direção.
Planejando e Improvisando
Objetivos:
1. Testar a acuidade auditiva de um indivíduo.
2. Diferenciar uma surdez de condução de uma surdez sensório-neural.
3. Testar a capacidade de um indivíduo de localizar um som.
Estes experimentos deverão ser realizadas em um ambiente silencioso.
Materiais:
– um diapasão, de preferência de 512 Hz. Devem ser descartados diapasões que vibram em baixas freqüências (e.g., 64 Hz ou 128 Hz). Nesta faixa de freqüências são ativados também mecanoceptores. Assim, esta medida visa evitar que o indivíduo possa “sentir” ao invés de “ouvir” a vibração, ou seja evita que ele se utilize de pistas somestésicas para detectar a presença de um som.
– alguns chumaços de algodão
– um audiômetro.
Mãos-a-obra:
Testando a sua audição com um diapasão
1. Teste de Rinne
Figuras 3a e 3b: Fotografia de um aluno realizando o teste de Rinne. A base do diapasão em vibração é encostada firmemente sobre o processo mastóide (A), e assim que o som se torna inaudível, ela será colocada próxima ao meato auditivo externo (B).
Na primeira situação, a onda sonora estimulará os receptores auditivos por condução óssea e na segunda situação por condução aérea. O indivíduo normal ouve melhor por condução aérea do que por condução óssea, isto é, quando deixa de ouvir a vibração do diapasão por condução óssea, ele ainda é capaz de detectá-la por condução aérea.
Simulando uma surdez de condução
Colocar um chumaço de algodão nos ouvidos de um aluno teste (T) cuja acuidade auditiva, por condução aérea e por condução óssea, será comparada à de um aluno controle (C).
1ª etapa. O aluno C coloca a base do diapasão próximo do meato auditivo externo do aluno T e quando este referir não ouvir mais a vibração do diapasão, o aluno C colocará a base do diapasão próximo do seu meato auditivo externo.
2ª etapa. Repetir este procedimento colocando agora a base do diapasão sobre o processo mastóide.
O que você observa? Justifique.
Resposta: Os principais fatores que podem causar uma surdez de condução são: presença de um corpo estranho ou cera no canal auditivo externo, lesão dos ossículos do ouvido médio, ou espessamento da membrana timpânica causado por otites freqüentes.
A acuidade auditiva do aluno T é menor do que a do aluno C quando avaliada por condução aérea, mas é superior a do aluno C quando avaliada por condução óssea. Esta observação paradoxal se deve ao fato do som produzido pelo diapasão ser pecebido mais nitidamente no indivíduo com surdez de condução, pois nesse caso não há interferência dos ruídos ambientais (ou seja aumenta a relação sinal/ruído). Acredita-se que o mascaramento do som produzido pelo diapasão pelos outros sons seja devido à adaptação sensorial e à existência dos períodos refratários absoluto e relativo das vias auditivas.
2. Teste de Weber
A base do diapasão em vibração é colocada no meio da testa (Fig. 4). No caso de um indivíduo normal, o som é ouvido com igual intensidade com o ouvido esquerdo e direito.
Figura 4: Teste de Weber. A base do diapasão em vibração é colocada no meio da testa.
Repita o teste de Weber, tampando agora o seu ouvido esquerdo com o seu dedo mindinho ou com um chumaço de algodão. O que você observa? Justifique
Resposta: Com o ouvido esquerdo tampado, observa-se uma lateralização do estímulo sonoro. Nesta situação, que simula uma surdez de condução, o indivíduo ouve o som de forma mais intensa com o ouvido esquerdo. No caso do indivíduo ter surdez sensório-neural em um de seus ouvidos, ele ouvirá um som mais intenso com o ouvido integro. Desta forma uma lateralização do estímulo sonoro no teste de Weber indica a existência de um problema auditivo, seja ele de condução ou sensório-neural.
Construindo o seu audiograma.
O audiômetro é um aparelho que emite tons cuja freqüência e intensidade podem ser variadas pelo experimentador. Ele permite medir com precisão a acuidade auditiva de um indivíduo e determinar a faixa de freqüências sonoras mais afetadas.
O aluno coloca os fones nos ouvidos e a condução aérea de cada ouvido é testada individualmente. Um ruído branco de mesma intensidade que a do estímulo teste é emitido para o ouvido que não está sendo testado, evitando assim, que este participe na detecção do som. Determinar o limiar de audibilidade para a seguintes freqüências sonoras: 125 Hz, 250 Hz, 500 Hz, 1.000 Hz, 2.000 Hz, 4.000Hz e 8.000Hz. Construir um gráfico colocando as freqüências sonoras (em Hz) na abscissa e o limiar de detecção (em decibéis) na ordenada.
O que você observa? Que fatores podem modificar apreciavelmente o limiar de audibilidade de um indivíduo normal? Como pode ser testada a capacidade auditiva de uma criança muito pequena ou de um paciente semi-comatoso que não podem se expressar através da fala?
Resposta: O limiar de audibilidade varia para a diferentes freqüências apresentadas, sendo mais baixo para freqüências intermediárias, compreendidas entre 2000 a 4000 Hz. A faixa da freqüências da fala se situa em torno de 200 a 3000 Hz.
O grau de atenção assim como a presença de ruídos ambientais podem modificar apreciavelmente o limiar auditivo de um indivíduo.
No caso de um indivíduo que não pode se expressar através da fala, sua capacidade auditiva pode ser testada através de respostas reflexas que são emitidas quando é apresentado um som. Uma das respostas observadas é o reflexo de orientação que consiste no desvio dos olhos e da cabeça em direção à fonte sonora. Este reflexo é muito importante, pois permite ao indivíduo focalizar a atenção sobre o evento externo que produziu aquele som e programar a resposta mais adequada para aquela circunstância. No reflexo de orientação, informações auditivas são veiculadas do colículo inferior para o colículo superior. Este por sua vez se conecta (através de vias mono ou oligossinápticas) com motoneurônios que controlam movimentos dos olhos e da cabeça. A presença de uma resposta de orientação a um estímulo sonoro permite descartar uma lesão do receptor auditivo, do nervo auditivo e dos núcleos auditivos do tronco cerebral, porém não garante a existência de sensações auditivas conscientes. Estas dependem da chegada de informações para o córtex auditivo, localizado no lobo temporal.
Testando a sua capacidade de localizar um estímulo sonoro.
10 alunos formarão um círculo no centro do qual está você, um voluntário de olhos vendados. Um dos alunos dispostos no círculo emitirá algum ruído como um estalido de dedos. Você deverá apontar o local de origem do som. O que foi observado pelos seus colegas? Discuta as bases neurofisiológicas que permitem localizar uma fonte sonora.
Alguns experimentos curiosos e a sua interpretação
Coloque os fones nos ouvidos de um aluno e varie o volume do ruído apresentado aos 2 ouvidos enquanto o aluno lê um texto. O que é observado? Que situação análoga você já vivenciou no dia a dia? Qual é a importância deste fenômeno?
Resposta: A medida que aumenta o volume do ruído, aumenta também o volume da voz do aluno. Uma situação análoga também é observada em conversa telefônica, quando um dos interlocutores não ouve bem, sua tendência “é falar mais alto” ou seja, aumentar o volume de sua voz. Na clínica é observado que indivíduos com problemas surdez sensório-neural geralmente tendem a falar mais alto.
Este fenômeno ilustra a importância da retro-alimentação sensorial na emissão de uma resposta motora, no caso como a audição influi sobre a emissão da fala. Isto também pode ser ilustrado tomando-se como exemplo a importância de influxos sensorias proprioceptivos na execução de um ato motor. A interrupção de sinais proprioceptivos provenientes de músculos, tendões e articulações causa ataxia motora ou seja falta de coordenação motora.
Uma experiência que a maioria de vocês já vivenciaram é ouvir a sua voz numa gravação. Esta voz parece ser muito diferente da voz que vocês estão acostumados a ouvir quando estão falando. Explique este fenômeno. Como você acha que os outros ouvem sua voz?
Resposta: A sua voz normalmente é transmitida por condução óssea, porém, quando você ouve sua voz numa gravação, ela é transmitida por condução aérea. Os outros ouvem sua voz por condução aérea e portanto, para eles não há muita diferença entre ouvir você falar ou ouvir uma gravação de sua voz.
Para saber mais:
Referências bibliográficas
1. DeJong R. N. The Neurologic Examination. Harper & Rown 4th Ed, 1979.
2. Ganong W.F. Review of Medical Physiology. Lange Medical Books/McGraw-Hill, 20th Ed, 2001.
3. Kandel, E.R. Schwartz J.H. and Jessell T.M. Principles of Neural Sciences, Elsevier, 5th Ed, 2000.
Fonte: Publicado originalmente em http://www.fisio.icb.usp.br/docentes/sara.html