O Transporte da Arca e a Morte de Uza
por: Um comentário judaico
À primeira vista, a tragédia da morte de Uza, registrada em II Samuel 6:1-8, parece ter resultado de um erro muito específico e isolado.
Como lemos, os bois que puxavam o carro que transportava a arca tropeçaram, e Uza cometeu o erro de estender sua mão para segurar a Arca de forma a impedir que ela caísse. Mas se essa fosse toda a história, não haveria qualquer necessidade que Davi instituísse mudanças no procedimento ao tentar transportar a arca pela segunda vez – agora a partir da casa de Obede-Edom – além de advertir os transportadores da Arca para que não a tocassem.
Mas, como revela a narrativa do livro de Samuel, houve de fato diferenças significativas entre as duas tentativas.
Quando a Arca foi levada pela primeira vez, da casa de Abinadabe, nos é dito: “Levaram-no com a arca de Deus, da casa de Abinadabe, que estava no outeiro; e Aiô ia adiante da arca. Davi e toda a casa de Israel alegravam-se perante o SENHOR, com toda sorte de instrumentos de pau de faia, com harpas, com saltérios, com tamboris, com pandeiros e com címbalos” (II Samuel 6:4-5).
Esses versos descrevem uma atmosfera de festividade e celebração – margeando a frivolidade, como expresso pela palavra “alegravam-se” (em hebraico, “mesahakim”. Essa palavra normalmente não é usada com relação a instrumentos musicais; ao invés disso ela se relaciona com outra palavra em português – irresponsabilidade).
Mas, três meses depois, quando a Arca foi levada da casa de Obede-Edom, nos é dito: “foi, pois, Davi e, com alegria, fez subir a arca de Deus da casa de Obede-Edom, à Cidade de Davi. Sucedeu que, quando os que levavam a arca do SENHOR tinham dado seis passos, sacrificava ele bois e carneiros cevados” (Ibidem 12-13).
Reconhecidamente o texto menciona novamente alegria, mas a atmosfera é, inquestionavelmente, mais cautelosa e séria. Após cada seis passos um boi e um carneiro eram oferecidos. Davi e todo o Israel não estavam “alegrando-se perante o SENHOR”, mas portavam a arca “com júbilo e ao som do Shofar”.
Podemos, então, concluir que Davi entendeu que a punição divina contra Uza não resultou de uma falha isolada e única – o fato de que Uza cometeu o erro de levantar sua mão para a Arca. Davi entendeu que tinha ocorrido um problema mais amplo, com relação ao espírito com o qual ele havia tentado transportar a Arca. Carregando-a com sentimentos festivos de “alegrar-se perante o SENHOR” eles haviam perdido de vista a ordem “… a seu cargo estava o santuário, que deviam levar aos ombros” (Números 7:9).
Realmente, no relato paralelo em I Crônicas, descobrimos diversos detalhes omitidos da narrativa em I Samuel:
“Chamou Davi os sacerdotes Zadoque e Abiatar e os levitas Uriel, Asaías, Joel, Semaías, Eliel e Aminadabe e lhes disse: Vós sois os cabeças das famílias dos levitas; santificai-vos, vós e vossos irmãos, para que façais subir a arca do SENHOR, Deus de Israel, ao lugar que lhe preparei. Pois, visto que não a levastes na primeira vez, o SENHOR, nosso Deus, irrompeu contra nós, porque, então, não o buscamos, segundo nos fora ordenado” (I Crônicas 15)
Antes da tragédia de Uza houve uma erupção de emoção espiritual. Após [terem passado por] um período de separação, depois que a Arca foi tomada do povo de Israel, tornou-se possível aproximar-se novamente de Deus e encontrar abrigo na presença Divina. Eles imaginaram presunçosamente que, para o homem, a respeito do qual é declarado “Fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor do que Deus” (Salmos 8:6), o caminho para a revelação da Shequiná não seria longo.
Arrastados pela intoxicação descontrolada dos sentimentos religiosos, acreditaram que alguém que esteja cheio do amor de Deus pode abrir caminho para a Shequiná assim como está. Eles não entenderam, neste estado mental, que “o SENHOR, teu Deus, é fogo que consome” (Deuteronômio 4:24), e que a distância entre o Criador e o homem mortal é infinita. Ao próprio Moisés, que falava com Deus “face a face, como qualquer fala a seu amigo”, foi dito: “homem nenhum verá a minha face e viverá” (Êxodo 33:20). …
O episódio de Uza ensinou a Davi que Deus deve ser servido com temor e tremor; a alegria experimentada diante dEle deve ser acompanhada de tremor, como está escrito, “Temeu Davi ao SENHOR, naquele dia” (II Samuel 6:9).
Fonte: Publicado originalmente em http://www.learningtorah.org – Cometários sobre a Parashá de Acharê