O Perigo de Desfoque da Função Primária da Música Litúrgica Protestante
por: Pedro Augusto Dutra de Oliveira
O objetivo do presente artigo é promover uma pequena reflexão sobre o papel hoje atribuído à música litúrgica no âmbito específico de nossa igreja. Para isso é importante que recapitulemos, mesmo que de forma sucinta, qual foi o seu papel no contexto de sua origem protestante.
O Papel da música litúrgica em sua origem protestante
Segundo Palisca:
O papel fulcral da música na igreja luterana, especialmente no século XVI, refletia as convicções pessoais de Lutero. Este era um amante da música, cantor, compositor de algum talento e grande admirador da polifonia franco-flamenga, em particular das obras de Josquin dês Prez; acreditava profundamente no poder educativo e ético da música e desejava que toda congregação participasse de alguma forma na música dos serviços religiosos. (Palisca, 2001, p.277, grifos meus)
A contribuição musical mais característica e mais importante da igreja luterana foi o hino estrófico cantado pela congregação, que em alemão se chama Choral ou Kirchenlied (canção de igreja) e em português coral. (Palisca, 2001, p.278)
Conforme descreve Palisca o poder educativo e ético da música e a participação de toda a congregação eram funções essenciais da música luterana e toda hinologia, aspecto musical que mais caracteriza o protestantismo, e liturgia protestante foram pensadas tendo como fim proporcionar essas funções. Vejamos:
1) Hinologia e poder educativo e ético da música: Os hinos estróficos eram canções de igreja onde em cada estrofe a melodia era mantida, porém a letra era alterada. Esse formato do hino, por mais comum que nos possa parecer, foi pensado como fator importantíssimo para a educação religiosa e edificação espiritual dos fiéis, pois o fato da melodia se repetir proporcionava uma facilidade muito grande em guardar os textos do hino, que muitas vezes eram bíblicos, e por possuir uma fácil memorização era entoado pelos fiéis durante todo o dia enquanto exerciam suas atividades cotidianas.
2) Liturgia protestante e participação de toda congregação: A participação da congregação foi estabelecida no chamado canto congregacional onde todos participavam da liturgia em língua vernácula e não mais em Latim. Essa característica levou os luteranos a se importarem com a educação musical para que a assembléia pudesse participar de forma ativa e autônoma na execução.
Podemos concluir então, nessa primeira parte de nossa reflexão, a importância das seguintes práticas da música no contexto do serviço religioso:
1) A importância educativa da hinologia no crescimento doutrinário e espiritual da congregação.
2) A importância da liturgia como forma de participação de todos da congregação.
3) A importância da educação musical para que cada congregação, seja ela numerosa ou não, possa executar sua liturgia de forma totalmente autônoma.
Características atuais da música litúrgica em nossa igreja
Tendo feito, mesmo que maneira sucinta, uma breve recapitulação do papel da música no contexto do início do protestantismo vamos agora pontuar algumas características atuais da música litúrgica em nossa igreja.
Tendo em mente as três práticas musicais citadas anteriormente e com o objetivo de traçar um paralelo com as práticas atuais, gostaria de me ater primordialmente nas duas últimas para depois discorrer sobre a primeira. As duas últimas dizem respeito à participação da congregação na prática litúrgica e a importância da educação musical para que essa participação seja possível de maneira integral. Se tratando das inúmeras congregações locais que existem em nossa igreja gostaria de focar as práticas litúrgicas musicais daquelas que existem em maior quantidade, ou seja, as congregações de menor porte e não as centrais.
1) Participação da congregação e educação musical:
O fator educação musical tem sido negligenciado em nossa igreja e este, com certeza, é a causa da existência de prejuízos que começam a aparecer de maneira muito perigosa e sutil dentro da igreja. Quando se trata de música dentro da igreja muitas vezes a discussão gira em torno da música apropriada e a não apropriada, porém é um grande engano focar nossa atenção apenas na música que é ou não apropriada mesmo porque historicamente há um relativismo muito grande entre música sacra e profana, o próprio Lutero se utilizou de melodias “profanas” para o louvor congregacional e muitos hinos de nosso hinário possuem uma origem “profana”. Quando são colocadas normas sobre determinados temas como a música a nossa intenção é possuir um conjunto da regras que nos dirão qual será a música mais apropriada. Partindo desse pressuposto chegaremos a discussões como, por exemplo, determinado ritmo é aceitável outro não, determinada harmonia é aceitável outra não, determinado instrumento é aceitável outro não e assim numeramos conceitos técnicos, muitas vezes sem conhecê-los, para descrever a música aceitável e a não aceitável.
Se nos preocupássemos em educar musicalmente nossas congregações não mais nos preocuparíamos tanto com questões desse tipo, pois por si só cada membro abriria mão de ouvir e praticar dentro e fora da igreja todo o lixo musical que a indústria cultural nos impõe, lixo esse que muitas vezes aparece sem restrições dentro da igreja, pois muitas vezes cumprem todas as regras da suposta “música aceitável”, mas continuam a ser lixo. A educação musical abriria possibilidades musicais mais interessantes para todos.
Mas, a meu ver, o principal prejuízo que a falta da educação musical tem trazido para o universo religioso não é esse, como disse anteriormente. Esse, discutido em poucas palavras, é um prejuízo que diz respeito a práticas musicais não congregacionais, como as chamadas “mensagens musicais”, práticas onde nem todos participam e são com essas práticas, as mensagens musicais, que de maneira errônea nos focamos. O prejuízo maior e sutil que a falta da educação musical tem proporcionado é aquele que diz respeito às práticas musicais congregacionais, aquelas onde todos participam. Segundo o que vimos anteriormente são estas as práticas mais importantes dentro da igreja, caso contrário teremos um retrocesso pré-reforma onde a participação musical, dentro da igreja católica anterior a Lutero, era praticada apenas por alguns e não por todos, eram práticas musicais não congregacionais, as mesmas que erroneamente focamos.
O primeiro e principal ponto que a falta da educação musical tem proporcionado para o canto congregacional é a falta de instrumentistas para a realização do mesmo. Não digo nem de uma variedade de instrumentistas, que seria o ideal, mas digo da falta do instrumentista básico para o louvor, o pianista.
Para suprir essa necessidade, clara dentro da igreja, foram produzidos CDs de áudio com todos os hinos do hinário com ótimos arranjos orquestrais. A ideia, a principio, resolveu a curto prazo o problema, mas infelizmente gerou outros ainda piores, que tenho percebido a longa data dentro da igreja. O mau uso desse material, sendo colocado no formato “cantado” e com o volume demasiadamente alto, tem feito com que a congregação deixe de cantar e passe, inconscientemente, mais a ouvir, balbuciando o hino.
O volume coral da congregação pouco tem sido ouvido em relação ao volume dos áudios utilizados, e cada vez menos se vê a utilização dos hinários, fator que posteriormente explicarei o problema. Esse material e outros têm sido colocados em casa durante os cultos, muitas vezes com belas imagens de vídeo. Essa utilização de áudio e vídeo, aparentemente inofensiva, tem custado além do canto congregacional e familiar uma das principais contribuições da hinologia, a memorização e reflexão sobre o texto. Quando cantamos menos e apreciamos um áudio visual muitas vezes incoerente com o texto, minha reflexão sobre a palavra é quase nula, antes fosse cantado o hino à capela.
Para agravar a situação muitas vezes tem se dado preferência ao CD do que ao pianista que está presente ao culto.
Essa avalanche de conseqüências tem como fator primeiro a falta da educação musical dentro da igreja e têm custado os pilares das características primárias da música protestante.
Fazendo referência às escolas dos Profetas Ellen White nos diz:
Tanto nas escolas como nos lares, grande parte do ensino era oral; mas os jovens também aprendiam a ler os escritos hebraicos, e os rolos de pergaminho das escrituras do Antigo Testamento eram abertos ao seu estudo. Os principais assuntos nos estudos dessas escolas eram: a lei de Deus, com as instruções dadas a Moisés; a história sagrada;música sacra e poesia” (Educação, p.47, grifos meus)
2) A importância da hinologia:
Alguns prejuízos quanto à hinologia, à reflexão nos textos e à memorização dos mesmos já foram discutidos anteriormente. Gostaria agora de discorrer sobre o benefício que a tradição dessa hinologia tem nos proporcionado e conseqüentemente o prejuízo da quebra dessa tradição.
Na ocasião em que se livraram do exército de Faraó, todo o povo de Israel participou do canto de triunfo… Muitas vezes na jornada se repetia esse cântico, animando os corações e acendendo a fé nos viajantes peregrinos. (Educação, p.21 e 22, grifos meus)
Enquanto viajavam, as experiências do passado, as histórias que tanto idosos como jovens ainda amam tanto, eram de novo contadas às crianças hebréias. Eram entoados os cânticos que os haviam encorajado na peregrinação no deserto. Os mandamentos de Deus eram recitados em cantochão e, em combinação com as abençoadas influencias da natureza e da cordial amizade, fixavam-se para sempre na memória das crianças e dos jovens. (Educação, grifos meus)
Com certeza, o simples fato, de se entoar a mesma música que pessoas que compartilharam a mesma fé entoaram, traz encorajamento, animação ao coração e acende a fé dos atuais peregrinos. É revificante, ao entoar o hino Ein’ feste Burg (Castelo Forte), saber que o mesmo foi entoado por Lutero em momentos de dificuldades e durante séculos por pessoas que professavam a mesma fé. Para aqueles que possuem um berço na igreja, é reacender a fé entoar o hino que o pai, avô ou até mesmo o bisavô, mais gostava, pessoas que professaram a fé durante a vida, desancaram e que aguardam sua recompensa. Acredito que por gerações foi cantado o canto de triunfo entoado pelo povo de Israel quando foram livrados por Deus do exército de Faraó.
A tradição da hinologia nos traz esse beneficio teológico e conseqüentemente a perda da tradição nos traz prejuízo. Não estou sendo retrogrado ao ponto de negar tudo que se tem feito de novo em troca de manter os antigos hinos, de maneira alguma. O que nego é a grande rotatividade musical que existe para atender a indústria cultural existente. Para que fique claro é importante entendermos o conceito de indústria cultural, que em síntese é a conversão da cultura em mercadoria, sendo assim, a produção cultural (musical) passa a ser guiada pela possibilidade de consumo mercadológico.
O perigo da diminuição da utilização do hinário, como deixei em aberto anteriormente, é que este se perca em troca de uma rotatividade de músicas que anualmente são produzidas afim de atender um mercado. Essa perda, caso aconteça, decretará o fim da tradição da hinologia.
Um exemplo típico são os CDs para os jovens, CDs J.A, que são produzidos anualmente e logo abandonados. Tenho minhas restrições quanto ao CD em si, mas não convém debatê-las agora, porém, minha principal restrição é quando esse material invade a prática litúrgica congragacional não deixando mais espaço para o hinário, gerando o fim da tradição e do benefício teológico que ela nos traz.
Que fique bem claro que meu ponto de vista não é contra a produção musical dos compositores, mas à rotatividade que é imposta nessa produção. Prova disso é que existem músicas “novas” que já estão entrando para a tradição, e isso é muito bom. Ex: Além do Rio (Jader Santos), Canção da Vida (Lineu Soares) dentre outros.
O problema é quando a música se torna uma mercadoria com a necessidade constante de esquecimento e troca por outra nova.
Para concluir gostaria de lembrar que em nossos dias atuais a música tem unicamente sido utilizada como puro entretenimento, mas que sempre teve uma função vital para a espiritualidade da congregação, uma função puramente teológica. Assim nos descrevem os relatos bíblicos, assim foi com a instituição do protestantismo e assim nos adverte Ellen White.
Que se invistam recursos na educação musical de cada igreja local ao invés de reverter esses expendiosos recursos para produções de áudio e vídeo, que se dê tempo considerável para o louvor congregacional durante o culto e não em momentos de intervalo, fazendo assim acredito que muitos problemas deixarão de existir e a música cumprirá seu papel litúrgico de religar, juntamente com as sagradas escrituras, o homem a Deus através do louvor e da adoração.
Escolha-se um grupo de pessoas para tomar parte no serviço de canto. E seja este acompanhado por instrumentos de música habilmente tocados. Não nos devemos opor ao uso de instrumentos musicais em nossa obra. Essa parte da adoração deve ser cuidadosamente dirigida, pois é o louvor através do cântico. Nem sempre o cântico deve ser feito apenas por alguns. Permita-se o quanto possível que toda a congregação dele participe. (Testimonies, vol.9, p.144, grifos meus)
Pedro Augusto Dutra de Oliveira é graduado em música pela Universidade de São Paulo, e atualmente realiza estudos sobre Educação Musical orientados dentro da Universidade e é professor de Educação Musical no Colégio Adventista de Ribeirão Preto