A Demusicalização da Igreja
por: Márcia Graner
Me lembro muito bem. Eu era bem pequena quando a minha mãe me ensinou como eu poderia cantar as músicas, seguindo um hinário com partituras. Foi simples: “Você começa no número um e vai em frente; quando acabar a linha, você vai para o número um da outra linha e assim por diante, quando acabar todos os números uns, você começa no dois”. E assim foi.
Dona Therezinha se convertera na adolescência e dava muita importância à criação dos filhos numa Igreja onde fosse ensinada a Palavra de Deus. Era (e é) uma mulher dedicada. Embora admirasse música, achava que não tinha o “dom” de ler um monte de “bolinhas”. Um dia (talvez no mesmo tempo em que eu aprendia o alfabeto), ela me ensinou três gestos que havia aprendido num seminário. Eram o dois, o três e o quatro. Bastava que eu olhasse o primeiro número que vinha na partitura (e eu também já sabia o que era uma partitura) e combinasse o meu gesto com aquele número. Sem querer, ou já querendo, eu acabara de aprender os rudimentos da regência.
Bom, mas eu ainda era pequena… o coral ensaiava. Eu corria pelos corredores, brincava de pega-pega, e as palavras entravam na minha mente: soprano, contralto, tenor, baixo, naipe… a voz de tenor do meu pai que já canta no céu há 17 anos ainda ecoa nos meus ouvidos [*]. Quando foi que ouvi isto pela primeira vez? Acho que foi muito antes de me conhecer.
Certo dia levei uma amiga que, não acostumada a cultos, perguntou-me: “Por que aquele homem está abandonando a mão lá em cima?” Eu respondi: “Ele está dirigindo a música”. Todos olhavam pra ele e obedeciam as suas mãos. Ele não havia ensinado às pessoas daquela igreja qual seria o gesto de entrada e o de finalização. Teria se esquecido? Às vezes, no meio da canção ele fazia outro gesto e a igreja parava numa nota. Era um suspense musical logo resolvido com outro gesto que indicava que todos poderiam cantar novamente. Era mágico. Não haviam explicações explícitas, e sim códigos que se encontravam nas mãos, nas vozes, nos olhares.
Durante o culto, a voz de uma senhora servia como imã aos meus ouvidos. Um contralto excelente. Minha voz perseguia a dela. Em qualquer lugar que ela sentasse, sim eu a acharia. Sem me dar conta de que este era o segredo do “cantar em vozes”, todo culto se tornava uma viagem musical. As melodias que aquela mulher inventava, diferentes da melodia principal, soavam lindamente. Era a harmonia se apresentando a mim.
Solos, duetos, trios, conjuntos… tudo isto me era muito familiar. Era a musicalização acontecendo numa pequena igreja da periferia de São Paulo. Hoje, várias pessoas conduzem o culto (mais do que o necessário). Todas com microfone. Procuro a voz daquela senhora, um contralto.
Por favor, uma segunda voz para se juntar à minha! Não ouço. As pessoas estão cantando em uníssono e nem sabem que existem outras possibilidades.
Tento escutar a pessoa ao meu lado. Não escuto. Não escuto nem a mim mesma.
Escuto vozes ao microfone. Elas parecem entender do que fazem. Seus rostos deixam esta impressão. Será que ouvem também quando desafinam? Por que não ouço o povo? Eu ouço apenas algumas “privilegiadas vozes”.
Metade da igreja não canta. Chego a pensar se faria diferença na música se metade da igreja não estivesse ali. Não faz falta. Tanto faz a quantidade dos prestadores de culto. No final das contas o que aparece mesmo é o que está amplificado pela caixa de som. As pessoas não são conduzidas ao canto. Ao invés disto elas apenas sentem que suas vozes não pertencem ao grande grupo vocal formado para adorar ao Senhor através da música.
A equipe de louvor, erroneamente assim nomeada, acha que tem o direito de fazer sobressair a sua voz. Por que continuam insistindo em tirar o louvor que pertence ao povo? Onde está a voz do povo?
E viva a tecnologia! Ninguém precisa de hinário. Põe a letra na transparência. E assim não precisamos mais aprender onde é a primeira estrofe, a segunda estrofe… Poderíamos usar a tecnologia para acrescentar, e não só para facilitar. Deve haver um limite entre o facilitar e o emburrecer. Claro que a intensa produção musical não permite tempo para a escrita de tanta partitura. Então, façamos algumas transparências só com a letra, e outras com partitura. E quando mostrarmos apenas a letra, obedeçamos a frase poética da música. Indiquemos as partes a serem repetidas. Ou confiemos que a equipe de louvor nos dê entradas seguras. Hummm… agora senti saudade daquele cara que ficava lá na frente, abanando as mãos. É porque quando eu percebo que tenho que iniciar a música, esta já começou há algum tempo. Me sinto sempre atrasada. Vejo que também aqueles que estão lá na frente, muitas vezes também entram em tempos diferentes… será um cânone?
O Jô (aquele do programa) defende que “as verdadeiras mudanças acontecem com tecnologia e cultura”.
Bem-vindo data-show! Aquele aparelhinho que nos ajuda a associar imagens com as letras das músicas. Nem sempre. Todo recurso é como um tempero. Você não coloca orégano em toda a sua comida. Todas as canções precisam ser acompanhadas de imagem? Não somos capazes de imaginar? Não somos hábeis para fechar os olhos e apenas ouvir? É a poluição visual chegando… E quando o culto termina, eu vi tantas imagens que não me lembro de nenhuma em especial.
E ainda temos que nos dar por felizes quando toda a tecnologia funcionar.
E então vejo os leigos. Sentem-se perdidos. Perguntam-se porquê “deixaram” que a bateria entrasse na igreja. Pobre bateria…
Que fique a bateria, e entrem os violinos, os trompetes, as flautas, os corais, o canto afinado. Que permaneça o pop e entre o erudito [**]. Viva a tecnologia aliada à cultura!
E assim, no processo de desmusicalização da igreja, leigos não têm argumentos e por isso vão perdendo o direito de pertencer ao grande coro que deveria se formar em todos os cultos.
Fonte: Inicialmente publicado em http://www.jpjornal.com.br/news.php?news_id=30817, mas aparentemente este link não está mais funcionando.
Notas dos editores do Música Sacra e Adoração:
[*] – Obviamente, a autora, sendo evangélica, tem uma crença diferente dos adventistas do sétimo dia acerca do estado dos mortos. Porém, não sendo este o assunto do artigo, em nada diminui a sua importância.
[**] – Acreditamos que o ideal para a igreja seja música sacra, de alta qualidade espiritual, sem os rótulos de “pop” ou “erudita”. Acreditamos que quando a igreja como um corpo tiver um relacionamento mais íntimo com Deus e com o semelhante, aliado a um discernimento musico-espiritual mais aprimorado e um desenvolvimento técnico mais elevado, a música adequada surgirá como expressão desta comunidade de crentes.