Davi nos Aprova a Dança?
por: Adrian Theodor
Após sua proclamação como rei do povo de Israel no lugar de Saul, em Hebrom (I Crônicas 12:23 em diante), Davi convoca o povo e os principais líderes de seu tempo. Inicia seu discurso real da seguinte forma: “Se bem vos parece, e se vem isso do Senhor nosso Deus; (…) tornemos a trazer para nós a arca do nosso Deus; porque nos dias de Saul não nos valemos dela” (I Crônicas 13:2-3).
Em primeiro lugar vemos Davi, em uma situação política (como rei), a consultar os militares submissos a ele; e então a, como um rei investido divinamente, proferir ao povo a possível benção divina (todavia não encontramos no texto bíblico de I Crônicas Davi a procurar o Deus de Israel, como o vemos, em I Crônicas 13:1, a consultar os capitães). Em segundo lugar, Davi faz uma alusão não só à ausência física da arca durante os dias de Saul (apesar da tentativa deste em trazê-la de volta de Quiriate-Jearim, em I Samuel 14: 18,19) como também à das bênçãos de Deus sobre o reinado deste ímpio rei que o antecedera no trono: “porque nos dias de Saul não nos valemos dela“.
Após a congregação apoiar a decisão real em unanimidade, Davi, no verso 5, reúne o povo para a nova missão religiosa e – como não poderia deixar de ser em um reino teocrático – política. Decerto, o objetivo em si de trazer a arca de volta às terras abençoadas por Deus não era equivocado, ou mesmo desprovido de aprovação divina (assertiva que se confirma ao final do relato, quando a missão, finalmente, dá certo). Entretanto, vale notar, o relato bíblico de Crônicas (tampouco o de Juízes 6) não menciona Davi consultando a Deus em nenhum momento; seja acerca dos métodos a serem utilizados no transporte, seja acerca da aprovação divina em trazer ou não a arca de volta.
Mesmo assim, o intento de Davi é colocado em ação. Aparentemente tudo está correto! Um carro novo (último tipo!!!) é escolhido para o transporte, o povo vibra em excitação e o rei é aclamado por seu feito religioso e heróico. Até que o imprevisível acontece. Um mero mortal toca a arca e morre, fulminado pela ira do Altíssimo. O evento da morte de Uzá parece uma mensagem fortíssima ao rei de Israel; e este, inspirado pelo Espírito Santo, faz uma declaração não menos poderosa e cheia de compreensão do sinal de Deus: “Temeu Davi ao Senhor naquele dia, e disse: COMO trarei a mim a arca de Deus?“.
Davi poderia ter blasfemado contra Deus ou exasperado-se contra o povo: “Infiéis! Desobedecestes a ordem de Deus e tocastes a arca! Deixai-me passar, eu mesmo levo isso! É a mim que Deus ungiu!”. Mas não! Davi compreendeu plenamente a mensagem de Deus implícita naquela morte tão pesarosa e percebeu logo que algo estava muito errado. Sendo assim, preferiu Davi parar a procissão, para que, em oração, pudesse permitir que Deus sondasse seu coração em busca de alguma mancha de pecado ou erro (“Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração; prova-me, e conhece os meus pensamentos; vê se há em mim algum caminho perverso, e guia-me pelo caminho eterno“. Salmo 138:23-4).
E assim, a arca repousou na casa de Obede-Edom por três meses. Mais uma lição nos é deixada por Deus aqui: Davi não encontrou a resposta para sua inquietação em pouco tempo. A arca repousou fora do local desejado por Davi por não menos do que três meses. Davi não passou apenas algumas horas, ou alguns dias em oração, consternação e contrição de espírito, mas sim três longos meses[1].
E, mais uma vez, Deus oferece a Davi a demonstração de que não havia nada de errado no ato em si de transportar a arca, ou mesmo que a arca teria perdido seu significado de conter a presença do próprio Deus; pelo contrário, a tragédia de Uzá enfatiza exatamente este significado. Reforçando a fé de Davi e de seus súditos, Deus abençoa a casa de Obede-Edom durante todo o período no qual a arca permanece ali.
O consternado e reflexivo Davi não apenas percebeu a aprovação de Deus para a sua intenção de transportar a arca através das bênçãos à família de Obede-Edom, mas através das bênçãos à sua própria casa. Deus ofereceu a ele diversos sinais de aprovação: o nascimento de seus filhos (símbolos da fertilidade de seu reino); o reconhecimento de Hirão ao seu reinado (“Então percebeu Davi que o Senhor o tinha confirmado rei sobre Israel; porque o seu reino tinha sido muito exaltado por amor do seu povo Israel”. I Crônicas 14:2; II Samuel 5:12); e a vitória fulgurante sobre os filisteus[2].
Após, então, duas consultas a Deus durante a peleja contra os filisteus, e após muito refletir, Davi faz nova convocação ao povo e discursa sobre a velha missão, agora com nova perspectiva. “Ninguém pode levar a arca de Deus, senão os levitas; porque o Senhor os elegeu, para levar a arca de Deus, e o servirem para sempre” (I Crônicas 15:2). Notamos nas palavras do rei uma certeza anteriormente ausente. Davi não mais consulta os capitães ou mesmo busca aprovação popular, simplesmente dá a ordem e começa a restabelecer os levitas em suas antigas funções; além de atribuir-lhes novas. Podemos ver essa certeza na fala de Davi sob duas formas: a primeira, religiosa, nos diz que Davi, cheio da presença de Deus em suas palavras, estava dando uma ordem vinda diretamente do Altíssimo, não precisando de qualquer aprovação popular. A segunda, política, denota que Davi se apossara do título de rei de uma vez por todas, afinal acabara de receber reconhecimento de seu reinado por Hirão e de vencer os filisteus gloriosamente, fatos suficientes para que não precisasse mais de qualquer legitimação por parte de seus súditos.
Davi prossegue com a organização da missão e, inspirado por Deus, readmite os levitas para o transporte da arca. E confessa: “Vós sois os cabeças das famílias dos levitas: santifica-vos, vós e vossos irmãos, para que façais subir a arca do Senhor, Deus de Israel, ao lugar que lhe preparei. Pois visto que não a levastes na primeira vez, o Senhor nosso Deus irrompeu contra nós, porque então não O buscamos, segundo nos fora ordenado” (I Crônicas 15: 12-13). (Inúmeras são as passagens que revelam a ordem de Deus sobre a relação entre os levitas e a arca da aliança: Deuteronômio 10:8; 31:25; Josué 3:3; 8:33; I Samuel 6:15).
Não só Davi reconheceu seu erro no primeiro transporte da arca, como o corrigiu, assentindo com a vontade de Deus. Davi percebeu a lição que Deus a ele queria mostrar, deixando de lado a intenção egoísta de levar a arca apenas para sua promoção pessoal (para que o povo o aclamasse como rei de Israel). Ao invés disso, invocou a Deus, orou sem cessar, ouviu a voz do Altíssimo e atendeu-Lhe o pedido (ou a ordem). Não seria para a promoção do rei, por maior e mais “bem intencionado” que este fosse; porém sim para a glória de Deus, que a arca seria levada. Não seria por mãos de sangue (Davi receberá de novo essa lição no momento da construção do templo, tempos depois. Ver I Crônicas 22: 8,9), mas por mãos consagradas pela fidelidade ao Altíssimo, que a aliança seria levada para dentro do arraial do povo escolhido. E não seria também sob a forma mais consagrada aos olhos do homem (um carro novo, por exemplo) que seria levada a arca, porém sim sob a exata maneira deixada por Deus através de Moisés em Êxodo 25. (“Meterás os varais nas argolas, aos lados da arca, para se levar por eles a arca” Êxodo 25:14: ).
Tivesse Davi continuado em sua irreverência (ou seria arrogância?), e a ele não teria sido mostrado todo o plano de Deus acerca de Sua vontade com respeito a todo o serviço de adoração em Seu futuro grandioso templo. É após a humilhação do eu ao serviço de Deus que recebemos não apenas força, mas revelação divina para as mais grandiosas tarefas. Quantos hoje não clamam em vão por revelação de Deus, por demonstração da voz de Deus como a Moisés no Egito, e se esquecem de buscá-Lo incessantemente, a cada nova decisão e a cada novo dia?
É este, portanto, o contexto da famosa dança de Davi perante a arca. Ao lermos somente a narração de Crônicas, contudo, a inquietação sobre a permissão ou não de Deus acerca da dança é completamente descabida, pois lá não há menção de Davi dançando defronte à arca. A única dessemelhança entre a primeira e a segunda viagens, segundo o relato de Crônicas, reside no fato de Davi não ter procurado os desígnios de Deus em uma e ter se redimido em outra. As únicas comparações possíveis entre uma viajem e outra, segundo I Crônicas, são: 1. As formas contrastantes de transporte com as quais Davi se depara; 2. A ausência do tamboril (presente na primeira e malfadada viagem) entre os instrumentos escolhidos pelos levitas para a segunda viagem (comparar I Crônicas 13:8 e 15:16).
Portanto, a primeira viagem é completamente equivocada: não só empreendida sob o viés egoísta do rei, como também equivocada nos carregadores (não eram levitas) e no transporte (um carro, ao invés das varas nos ombros). A segunda, não apenas é organizada segundo a vontade de Deus, como origina todo o planejamento da adoração no templo, tendo os levitas como líderes musicais. Aqui, a ausência do tamboril, pode tanto ser atribuída a uma transformação engendrada pelos próprios levitas (como sugerem extensos textos de alguns autores consagrados), como também a um erro de copista, ou coisa parecida. Particularmente, prefiro a primeira interpretação; todavia não me apraz as extensas discussões em torno do tema apoiadas tanto em I Crônicas 15:16 – para reprovar a bateria – quanto em II Samuel 6:14 – para aprovar a dança.
O leitor atento observará que tanto uma posição quanto outra não poderá encontrar embasamentos categóricos na Bíblia para as suas teses musicais. A narrativa do transporte da arca nos serve para que aprendamos acerca dos riscos corridos por um ser mortal ao agir conforme suas próprias ideias durante a direção de uma missão ou obra “em nome de Deus”. Permite-nos, sim, percebermos elementos essenciais para que ofertemos uma adoração correta a Deus (já que o relato nos leva imediatamente à elaboração do formato do culto no templo); mas não podemos tirar de lá embasamento categórico, seja para o não uso da bateria, seja para o uso da dança em nossas igrejas hoje. Pois os dois textos acima citados ocorreram num contexto fora do nosso tempo, em uma manifestação dirigida para Deus, típica de um povo que mesclava a política e festivais populares com a religião.
Davi dançou sim! E a Bíblia não registra a condenação de Deus para essa atitude. A reprovação de Mical (localizada em II Samuel 6) ao comportamento de Davi é, para mim, como um resquício de súditos de Saul a tentar eclipsar a ilegitimidade de Davi como rei sobre Israel. Mical, tentando desmoralizar aquele rei ungido por Deus, acusa-o de vadio e imoral. Davi, em contrapartida, reafirma-se como rei, como legítimo, como escolhido de Deus e responde à acusadora de forma contundente, sem dar qualquer justificativa por sua dança.
Nós, habitantes do século XXI, cobertos até os dentes por uma sensualidade e imoralidade descomunal, é que temos problemas com o aspecto moral da dança. Davi nem questiona se o ato de sua dança foi ou não imoral, pois estava pleno de regozijo e cheio da presença de Deus. Sua dança fora, sem sombra de dúvidas, legítima e sem qualquer conotação de vadiagem ou imoralidade. Porém, a dança, como elemento de adoração coletiva, não encontra respaldo bíblico, mesmo se considerarmos os atos posteriores do próprio Davi. Tanto é verdade que, em toda a preparação dos dispositivos para o culto no futuro Templo (localizados nos textos seguintes de I Crônicas), Davi, em nenhum momento, encontra lugar para a dança. Aquele episódio de dança foi um ato de máxima e santa excitação pela glória de Deus presente na arca. Santidade de um homem que, sem sombra de dúvidas, sabia da função da arca dentro do templo, ou do santuário. Foi um ato único, espontâneo e imediato, nascido diretamente da alegria suprema diante de certeza da aceitação de Deus a todos os preparativos feitos anteriormente para o transporte da relíquia sagrada. Esta manifestação não se repetiria mais em toda a narrativa Bíblica, mesmo nos mais exaltados momentos de júbilo (e muito menos na liturgia do Templo).
Agora, em contrapartida, alguém que hoje me lê poderia, em toda a Bíblia, encontrar alguma narração ou relato que aprove enfaticamente a dança dentro do recinto sagrado? Alguém poderia, por favor, ler todo o livro de Crônicas, Reis e Samuel para encontrar outra dança de Davi, que não fosse de comemoração a um feito heróico de Deus e que não estivesse fora do serviço do templo? Muitos, a partir da santificada dança de Davi, e no calor da defesa de suas teses, esquecem-se de dois fatos muito simples: 1. no reinado Davi não existia templo; 2. Davi jamais ofertou sacrifícios no interior do santíssimo, no tabernáculo.
Muitos afirmam que Davi, por estar vestindo a estola sacerdotal (II Samuel 6:14), assumia-se como levita e incentivava a dança como modo de adoração no interior do recinto sacrossanto, mas esta posição não encontra embasamento bíblico. Davi estava com roupas de sacerdote sim, sacrificou animais a Deus sim, dançou perante a arca sim! Mas, no templo do Senhor, exerciam tais funções aqueles que foram escolhidos pelo próprio Deus: os sacrifícios expiatórios eram oferecidos pelos sacerdotes e adoração sistemática era realizada pelos levitas. E quanto à dança? Poderia sim, caso conseguíssemos nos despir completamente da sensualidade que a nossa sociedade nos impõe às expressões corporais, ser uma prática santificada ainda hoje, para um louvor alegre ao Senhor em nossas casas, em nossa comunhão pessoal. Mas, ao invés disso, adentra os portais santíssimos de nossas igrejas, deturpada de significado e cheia de malícia e promiscuidade! E mesmo que todos os cuidados possíveis e imagináveis em relação à sensualidade fossem tomados, qual seria o estilo de dança que usaríamos em nossos cultos hoje? Qual foi a dança que Davi empregou naquele momento de enorme excitação? Não consigo encontrar resposta satisfatória a esta inquietação essencial.
Se a mim fosse outorgada (ou oferecida, ou indicada) a responsabilidade de executar uma obra grandiosa em nome de Deus, seguiria os passos do rei Davi. Ou melhor, aprenderia com o erro do jovem Davi e não colocaria em curso a empreitada sem antes consultar os desígnios do Altíssimo. Após intensa oração, contemplação, leitura da palavra e adoração, iniciaria aquilo a mim confiado. Se, então, ao fim e ao cabo, o resultado da obra confiada a mim pelo próprio Deus, for positivo e de acordo Seus juízos, leis e mandos, certamente teria o desejo de pular de alegria, de regozijar em saltos enormes, de, enfim, executar algo parecido com uma dança. Provavelmente, contudo, não o faria em público, evitando possíveis intervenções de Mical, a me reprovar a pureza de uma comemoração santa, sob um olhar inquisidor de quem só consegue ver a maldade. E há pessoas que, infelizmente, só conseguem ver a maldade, o erro, a impureza, a imoralidade, o pecado. E também há aqueles outros tantos que, ignorando as orientações do próprio Davi acerca do sistema litúrgico com lugar no templo, pensam ser o altar de Deus lugar para saltos, pulos, gritaria, alucinação, depravação e dança.
Antes de aprovar a dança segundo o exemplo de Davi, olhemos melhor para o contexto do ocorrido. Mais do que isso: antes de aprovar a dança segundo o exemplo de Davi, leiamos o restante do relato de I Crônicas 15, onde o mesmo homem que dançou, elimina qualquer elemento de expressão corporal do sistema de adoração do templo. No secreto, no íntimo de nossa adoração (se forem nossas intenções e motivos puros e santos segundo os desígnios de Deus), dancemos por uma dádiva conquistada, choremos por uma dor aguda, clamemos em alta voz por um desejo a ser saciado; mas, ao chegarmo-nos para adorar no templo de Deus, continuemos a seguir o exemplo daquele “homem segundo o coração de Deus”, e eliminemos o impróprio, o tamborim, a dança, os desejos de nosso coração carnal. E o motivo é tão simples quanto complexo: aquilo que, no interior de nosso coração, é puro diante do Senhor; para o nosso irmão pode parecer odioso. O apóstolo Paulo nos adverte que o respeito ao outro na expressão da nossa espiritualidade é um dos nossos deveres cristãos (Romanos 14:16-19; I Coríntios 10:32-33) E mais: a dança que Davi executou perante a arca é bastante diferente da dança que hoje conhecemos. A dança hoje tem função erótica, tem função de preencher nossos próprios vazios, é apenas um balançar de corpos sem qualquer propósito. Davi dançou diante da arca, um símbolo da própria presença de Deus, mas nunca mais repetiu tal ato! Hoje dançamos por qualquer motivo, sem mesmo refletir sobre o significado de Deus em nossas vidas!
Oremos, amigos, a cada nova manhã, a oração de Davi: “Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração; prova-me, e conhece os meus pensamentos; vê se há em mim algum caminho perverso, e guia-me pelo caminho eterno“. Salmo 138:23-4.
Notas:
[1] Ao compararmos a narração desse fato em I Crônicas e em II Samuel, percebemos que o último livro não apresenta o detalhamento de todo esse intervalo entre o primeiro e o segundo transporte da arca, localizando-os como seqüenciais e, ambos, após tanto a vitória sobre os filisteus, quanto aos nascimentos ou o reconhecimento político de Hirão, rei de Tiro. De qualquer forma, mesmo que as campanhas militares tenham ocorrido antes do segundo transporte, Crônicas nos revela que três meses se passaram desde o primeiro transporte (de Quiriate-Jearim até a casa de Obede-Edom), e o segundo, pelos levitas.
[2] Interessantíssimo notar que, antes de ir contra os filisteus, Davi consulta a Deus. Note como tem início o capítulo 13, antes do traslado da arca, e como tem início o verso 10 do capítulo 14 de I Crônicas. Os dois versos estão localizados no início de uma missão importante, em que ambos se diferenciam?