Cantai ao Senhor
por: Enoch de Oliveira
Durante o sombrio período medieval o silêncio caracterizava o culto oficiado no templo. Os fiéis, meros espectadores, entravam no santuário, persignavam-se reverentemente, e em atitude contemplativa assistiam ao imponente ritual litúrgico. Dentro das arcadas do templo ressoava apenas a voz do sacerdote, ante o taciturno silêncio dos adoradores.
A reforma, rompendo a tradição medieval, entre outras inovações, introduziu a participação dos fiéis no culto público. Em forma clara e objetiva Lutero definiu o seu conceito de culto, dizendo: “Deus nos fala por Sua palavra e nós outros Lhe falamos através da oração e do cântico”.
Este conceito inspirou o desejo de divulgar a Bíblia em todos os idiomas e suscitou a necessidade de incluir, no culto, os cânticos de louvores e ações de graça, cantados pela congregação.
Em uma carta escrita por Martinho Lutero a John Walter, pastor em Zwickan, encontramos o seguinte parágrafo: “Desejaria ter muitos cânticos, em alemão, que o povo pudesse cantar durante a missa. Porém, não temos poetas, nem músicos alemães – ou não os conhecemos – capacitados a compor cânticos cristãos e espirituais, como os chamava Paulo, de tal valor que possam ser cantados diariamente na casa de Deus”. Em outra ocasião, justificando o seu desejo de editar um hinário para a nova igreja, escreveu: “indiscutivelmente na igreja primitiva o povo participava do cântico, mas agora participam somente os sacerdotes e clérigos”.
Há nas epístolas paulinas evidências insofismáveis de que nos dias apostólicos o júbilo e gozo dos fiéis eram constantemente expressados em hinos e canções de santo louvor. Exortando os membros da comunidade cristã de Colossos à santidade e ao amor fraternal, disse o apóstolo das nações: “A palavra de Cristo habite em vós abundantemente, em toda a sabedoria, ensinado-vos e admoestando-vos uns aos outros, com salmos, hinos e cânticos espirituais; cantando ao Senhor com graça em vosso coração”. Colossenses 3:16.
Desafortunadamente, este costume apostólico desapareceu por determinação do Concílio de Laodicéia, celebrado no ano 346. Consoante as decisões deste Concílio a música eclesiástica passaria a ser interpretada exclusivamente pelos clérigos. Deste modo, durante séculos, os fiéis adoradores estiveram privados do privilégio abençoado de “cantar ao Senhor em cântico novo”.
Entretanto, rebelando-se contra as tradições escolásticas e os procedimentos medievais, Lutero restaurou a participação dos adoradores nos serviços de canto. Em uma de suas cartas escritas a Spalativa diria o gênio da reforma: “Proponho-me da mesma maneira como fizeram os profetas e os primeiros pais (da igreja), escrever para o povo alguns cânticos espirituais, em alemão. Para que com a ajuda da música a palavra de Deus possa neles morar”.
Assessorado por alguns destacados hinólogos alemães, ele preparou para a nova igreja um hinário contendo 38 hinos e cânticos. Entre estes encontramos o celebre hino “Castelo Forte”. Marselhesa da Reforma que, malgrado a passagem dos séculos, estava despertando e inspirando os fiéis, animando-os nas lutas contra as forças do mal. Quão destacada foi a contribuição destes hinos na obra da Reforma!
Os atribulados dias da “Guerra dos Trinta Anos” inspiraram a composição de hinos famosos, nos quais os homens de fé encontravam alento para perseverarem na esperada luta pelos imortais princípios da Reforma.
No grande reavivamento dirigido por John Wesley, na Inglaterra durante o século XVIII, os hinos ocupavam um lugar de notável relevância. Sob influência inspiradora dos cânticos escritos por Charles Wesley, o mais festejado hinólogo evangélico, as multidões contritas dobravam-se ante Deus, à semelhança de um trigal agitando por um vento impetuoso.
Sim, as gloriosas operações de Deus através dos séculos têm estado associadas com os “Salmos, hinos e cânticos espirituais.” São atribuídas ao Dr. E. E. Helms as seguintes palavras: “O mundo nasceu com música: paz na terra, boa vontade para com os homens. O mundo terminará com música: o cântico de Moisés e do Cordeiro”.
Entretanto, em algumas de nossas igrejas, não estamos dando à melodia do canto a merecida importância. Diz a Sra. White: “O canto é uma parte do Culto de Deus, porém na maneira estropiada porque é muitas vezes conduzido, não é nenhum crédito para a verdade, nenhuma honra para Deus. Deve haver sistema e ordem nisto, da mesma maneira que em qualquer outra parte da obra”.[1]
Nada nos parece mais deplorável e impróprio que ver um ministro no púlpito, agitado, folheando apressadamente o hinário, em busca de um hino apropriado para a ocasião. Com efeito, os hinos devem ser escolhidos previamente, em consonância com a mensagem a ser apresentada. Erram os pregadores que apenas cuidam dos detalhes do sermão e descuidam a eleição dos hinos que complementam o culto regular. No culto que tributamos a Deus a música ocupa um lugar proeminente. Esforcemo-nos, pois, para que a melodia do louvor, em nossas congregações, seja uma fonte de inspiração dos que participam das bênçãos do culto e uma suave oblação ao Doador de “toda a boa dádiva e de todo o dom perfeito.”
Nota:
[1] Os editores do Música Sacra e Adoração indicam, para uma melhor visão sobre o que diz Ellen White sobre o cântico congregacional, a leitura de textos específicos escritos por ela, localizados em nosso espaço virtual. Basta clicar aqui.
Fonte: O Ministério Adventista, Julho/Agosto 1962, p. 4 e 23.