A Bateria à Luz da Antropologia e da Bíblia

por: Vanderlei Dorneles

Muitas pessoas entendem a polêmica do uso da bateria[1]no culto a partir da história da utilização de outros instrumentos por parte dos cristãos. Piano, violão e órgão tiveram um período de rejeição e mais tarde terminaram por ser aceitos como adequados à liturgia. O acompanhamento instrumental em si já foi considerado impróprio para a música litúrgica cristã, quando muitos consideravam que o único instrumento adequado à adoração é a voz humana. Da mesma forma, a bateria estaria hoje nesse período de questionamento que terminará com sua aceitação irrestrita dentro da igreja.

Mas será que os motivos da polêmica quanto ao uso da bateria são os mesmos dos demais instrumentos? Todos os instrumentos são iguais quanto ao seu potencial no louvor e na influência que exercem sobre a mente?

A proposta deste breve artigo é discutir um pouco do significado da bateria (ou tambor) nos cultos antigos e por que ela foi tirada do grupo de instrumentos usados no templo de Salomão. As fontes do estudo são trabalhos de pesquisadores e antropólogos sobre religião e a Bíblia. Interesse especial é dado à relação entre tambor e xamanismo (ou possessão). Essa relação seria mera superstição ou um fato ainda hoje vivido nos cultos pagãos?

Tambor e transe(topo)

Um estudo dos cultos de mistérios, das cerimônias nativas e dos rituais da África esclarecem que (1) a música ritual é basicamente o som do tambor, (2) essa música é acompanhada de dança e (3) o transe é o objetivo pretendido e alcançado com o ritual primitivo.

A religião primitiva tem no encontro (possessão) com a divindade seu clímax e sua “virtude”. As leis e os hábitos mantidos por essas religiões têm que ver com a expectativa do encontro ou transe. Alimentos, atitudes ou hábitos que dificultam atingir o estado de transe são em geral proscritos.

O antropólogo Francisco Sparta, em seu livro A Dança dos Orixás: as relíquias brasileiras da Afro-Ásia pré-bíblica (São Paulo: Harder, 1970), discute amplamente a relação entre dança, tambor e transe. Ele diz que “o transe religioso é provocado pela preparação, pela reclusão, pelas mortificações, pelos banhos, pela dança, pelos tambores” (pág. 50). Falando da cerimônia dos orixás, Sparta diz que “as mulheres dançam, saltam e se agitam” e “os tambores acompanham excitando” a cerimônia e os corpos (pág. 35).

Definindo o culto dos orixás, Sparta afirma que “a música e a dança são os principais fatores dos fenômenos de possessão que se observam nestes cultos mágicos”. “O ritmo violento dos tambores e a repetição intérmina dos cantos, produzindo fadiga de atenção e amortecimento conseqüente da consciência, levam iniciados a um verdadeiro estado de hipnose. … A fadiga produzida pela dança prolongada, agravada pelo toque frenético de adarrum, condiciona o estado de vertigem que favorece a hipnose precursora do transe ou possessão” (pág. 57).

Num simpósio de psiquiatria transcultural, realizado em 1968 na Bahia e em seguida no Recife, o pesquisador William Sargant argumentou a favor da relação entre tambor e transe místico. Falou da “lavagem do cérebro”, como efeito da música percussiva dos rituais de transe. Mostrou “cenas de possessão, filmadas em diferentes regiões da África e da América Latina” e insistiu que o transe “é provocado pela cadência da batidas de tambores”. Como ilustração citou o caso “de mulheres, na Inglaterra, que haviam entrado em transe apenas escutando algumas gravações feitas por ele”. Concluindo sua apresentação, Sargant afirmou que, “derivado do culto negro é o rock’and’roll, que provoca um efeito semelhante ao transe” (citado por Sparta, págs. 56 e 57).

O maior historiador das religiões, do século 20, o romeno Mircea Eliade, também sustenta a mesma ideia. Segundo ele, a obtenção de conhecimentos místicos, nas religiões primitivas, está sempre associada a um êxtase xamânico (ou seja, transe possessivo). Isso “explica a importância capital da música” nos rituais. “Os xamãs preparam o seu transe cantando e tocando tambor” (Mircea Eliade, História das Crenças e das Idéias Religiosas, Tomo I, Vol. II [Rio de Janeiro: Zahar, 1983], pág. 106). Aguiar Bastos, outro antropólogo, diz que “o tambor não é um simples instrumento de ritmo quanto à sua mais antiga tradição ligada às danças sagradas. Ele é, por sua vez, um instrumento de correspondência, isto é, de comunicação entre o homem e os seres misteriosos que governam a natureza” (Aguiar Bastos, Os Cultos Mágico-Religiosos no Brasil [São Paulo: Hucitec, 1979], pág. 99). Em seu mais respeitado trabalho sobre as religiões primitivas, Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase, Mircea Eliade acrescenta que “o tambor desempenha papel de primeira ordem nas cerimônias xamânicas. Seu simbolismo é complexo, suas funções mágicas são múltiplas”. Ele é “indispensável ao desenrolar da sessão, seja por levar o xamã ao ‘Centro do Mundo’, por permitir que ele voe pelos ares, por chamar e ‘aprisionar’ os espíritos, seja, enfim, por que a tamborilada permite que o xamã se concentre e restabeleça o contato com o mundo espiritual que está prestes a percorrer” (Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase, pág. 194).

Na terminologia religiosa do paganismo, o indivíduo que incorpora uma divindade é muitas vezes chamado de “cavalo do orixá”, ou seja, alguém em quem o espírito “cavalga”. Dada a relação do tambor com os espíritos, também este instrumento é chamado de “cavalo do xamã” (Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase [São Paulo: Martins Fontes, 1998], pág. 199).

Som único(topo)

Eliade diferencia ainda o tambor dos demais instrumentos musicais que eventualmente tenham alguma participação nos rituais, como aquele que proporciona uma experiência de transe. “O tambor xamânico distingue-se justamente de todos os outros instrumentos da ‘magia do ruído’ por possibilitar uma experiência extática”. O historiador acentua o fato de essa experiência ser “preparada, na origem, pelo encanto dos sons do tambor – encanto ao qual se atribui o valor da ‘voz dos espíritos’ – ou de a ela se ter chegado em decorrência da concentração extrema provocada por uma tamborilada prolongada”. Ele conclui: “Uma coisa é certa: o que determinou a função xamânica do tambor foi a magia musical” (Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase, pág. 200).

As religiões antigas e os cultos nativos estão permeados da ideia do contato com os espíritos e da imortalidade da alma. O ritual é ocasião oportuna não apenas para a incorporação da divindade, mas também para o contato com o espírito dos mortos. Essas práticas foram claramente proibidas por Deus a Israel, tão comuns e difundidas que eram no mundo antigo. Mircea Eliade completa a descrição das propriedades mágicas do tambor como fundamento da ponte entre o ser humano e o mundo espiritual: “De qualquer modo, trata-se sempre de um instrumento (o tambor) capaz de estabelecer algum contato com o ‘mundo dos espíritos’. É preciso entender essa última expressão em seu sentido mais amplo, que engloba não apenas deuses, espíritos e demônios mas também as almas dos ancestrais, os mortos e os animais míticos. O contato com o mundo supra-sensível implica necessariamente concentração prévia, facilitada pela ‘inserção’ do xamã ou do mago em sua indumentária cerimonial e acelerada pela música ritual” (Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase, pág. 205).

Muitas pessoas ignoram esse lado místico do tambor, apesar da clara relação entre o instrumento e o transe místico ou fenômeno de possessão ou ainda perda da consciência. O motivo é que as crenças dos antigos têm sido caracterizadas como mera superstição. “A era da razão e a mentalidade científica já demonstraram que tudo isso é apenas mito”, afirmam essas pessoas. No entanto, há uma consideração indispensável. O racionalismo qualifica como mito a religiosidade primitiva. E com isso, é fácil de concordar. Mas, da mesma forma que o racionalismo qualifica as crenças pagãs como mito, qualifica também a Bíblia, o poder da fé, o ministério e a ressurreição de Cristo. Logo, se a ciência não tem razão ao dizer que o cristianismo está fundado sobre mitos, também não deve estar certa quando quer desmistificar as demais religiões.

Quanto à relação entre som do tambor, danças e manipulação da mente, Ellen White colabora com a seguinte predição: “As coisas que descrevestes como tendo lugar em Indiana, o Senhor revelou-me que haviam de ter lugar imediatamente antes do fim do tempo da graça. Demonstrar-se-á tudo quanto é estranho. Haverá gritos com tambores, música e dança. Os sentidos dos seres racionais ficarão tão confundidos que não se pode confiar neles quanto a decisões retas” (Mensagens Escolhidas, vol. II [Casa Publicadora Brasileira], pág. 36). Acrescenta ainda que “Satanás opera entre a algazarra e a confusão de tal música, a qual, se devidamente dirigida, seria um louvor e glória para Deus. Ele torna seu efeito qual venenoso aguilhão da serpente” (Ibid., pág. 37). O que ocorreu em Indiana foi um congresso, onde o louvor foi colaborado com o uso de tambores, ocorrendo algumas experiências de transe.

Quanto à função e ao uso difundido do tambor ou qualquer outro instrumento percussivo nas religiões primitivas ou pagãs, não parecem restar dúvidas. Sua função mística e a maneira como favorece a busca do transe ficam bastante claras mediante os textos citados. Possivelmente o que mais dificulta a compreensão do assunto por parte dos cristãos seja a menção do uso do tambor e de danças entre o povo de Israel.

O tambor na Bíblia(topo)

Após a passagem pelo mar Vermelho, Miriam e as mulheres de Israel dançaram ao som de tamboris[2](Êxodo 15:20). Outras mulheres dançaram com tamboris após vitórias de Saul e Davi (1Samuel 18:6). O Salmo 149 (verso 3) incentiva a louvar ao Senhor com harpa e adufe[3].

A questão a ser respondida é: a menção de um costume mantido ou praticado pelos servos de Deus no passado é suficiente para autorizar o mesmo costume para todos os tempos e lugares? A resposta clara é “não”. Pois, os servos de Deus no passado, sob a influência da cultura prevalecente, usaram bebida forte, tiveram mais de uma mulher e mantiveram escravos, entre outras coisas. Da mesma forma que a revelação posterior, corroborada por estudo e reflexão, iluminou esses fatos que aos poucos foram sendo eliminados, a questão da música também deve ser objeto de estudo para compreensão e juízo acertados.

Tanto a presença do tambor (ou da percussão) quanto a sua ausência em circunstâncias bíblicas específicas ajudam a indicar possíveis caminhos para a compreensão do assunto.

Tambores e danças foram usados em ocasiões festivas, celebradas com danças e muita alegria, segundo o costume da época (ver os textos citados acima). Na condução da arca de Quiriate-Jearim até a casa de Obede-Edom, houve música com tamboris e Davi dançou e se alegrou, ao ritmo da banda (1Crônicas 13:8 e 2Samuel 6:5). Nessa viagem, tudo deu errado. Os bois tropeçaram, a arca quase caiu e Uzá morreu ferido pelo Senhor (1Crônicas 13:8 e 2Samuel 6:5). Davi ficou triste e se perguntou: “Como trarei a mim a arca do Senhor?” (1Crônicas 13:12). Três meses depois, Davi juntou o povo para buscar a arca da casa de Obede-Edom. Desta vez, ele orientou que ninguém conduziria a arca, senão os levitas (1Samuel 15:2). Houve alegria, mas ao contrário da primeira tentativa, desta vez a orquestra não teve tambor, mas harpas, alaúdes[4]e címbalos[5](1Crônicas 15:16). O transporte deu certo.

Davi quis fazer uma casa para Deus, mas não foi permitido. O rei era músico e Deus deu orientações a ele para que tomasse todas as providências para o templo, que Salomão edificaria. Entre essas orientações, Deus determinou os instrumentos (címbalos, alaúdes e harpas) que deveriam fazer parte da música do templo (2Crônicas 7:6 e 29:25). Davi fez instrumentos para serem usados pelos levitas. É significativo o texto de 2Crônicas 7:6, que diz: “…os levitas com os instrumentos músicos do Senhor, que o rei Davi tinha feito, para louvarem ao Senhor…”. O artigo plural definido “os” indica um grupo específico de instrumentos, que ainda são qualificados como “do Senhor”. Estes são os que Davi fez por ordem de Deus: címbalos, alaúdes e harpas. A lista desses instrumentos aparece em diversas ocasiões, sempre sem inclusão do tambor ou adufe (ver 1Crônicas 25:1 e 6, 16:5, 2Crônicas 5:12 e 13). Os únicos instrumentos que aparecem nas listas dos usados no templo, além dos que foram confeccionados por Davi, são as trombetas (2Crônicas 5:12 e 13 e 29:27).

A música que se fez no transporte da arca até Jerusalém, sem uso de tambores, foi chamada de “música de Deus” (1Crônicas 16:41 e 42), enquanto que a banda que deu o ritmo da dança, quando Uzá morreu, não recebeu essa adjetivação (ver 1Crônicas 13:8). No livro de Isaías, há juízos pronunciados contra pessoas que celebravam festas com embriaguez e música com tambores (ver Isaías 5:12 e 24:8 e 9).

Conclusões(topo)

O uso do tambor tem um propósito claro nos rituais nativos no sentido de preparar o adorador e atrair os espíritos ou orixás. Historiadores e antropólogos afirmam a função mágica da música produzida por ele em função do preparo do transe místico. A única base para se afirmar que a relação entre tambor e transe é supersticiosa é o ceticismo científico, que, contudo, não ignora a virtude da percussão em provocar estados alterados de consciência.

O estudo dos textos bíblicos que citam os instrumentos musicais esclarece que o tambor não fazia parte da música do templo, por orientação do próprio Deus a Davi. Sugere também que Deus não proibiu as cerimônias ou celebrações em que as pessoas tocavam tambor e dançavam. Embora não tenha sido reprovada por Deus, os fatos relacionados com o santuário indicam que aquela não era a música ideal para a adoração.

A exclusão do tambor no templo pode indicar também que esse instrumento, por sua relação direta com o misticismo pagão e por sua influência no sentido de embotar a consciência e o juízo, deveria estar fora do culto que requer a lucidez da mente para o conhecimento de Deus e compreensão de Sua vontade revelada.

Os textos bíblicos não afirmam que o uso da bateria ou do tambor seja pecaminoso, mas os textos de Isaías 5:12 e 24:8 e 9 e os fatos relacionados com o transporte da arca e com a música do templo deixam esse instrumento sem recomendação. À luz de toda a Escritura, o texto de Salmo 149:3 deve ser entendido como uma ordem para adorar a Deus, não como uma ordem para adorar com o adufe, já que muitos outros instrumentos são mencionados.

Uma vez que o templo de Israel era uma representação do santuário celestial e do trono de Deus, a música na igreja hoje deve ter sua referência maior na música usada nesse templo. Não só a música do templo, mas tudo a que se fazia ali reproduzia a ordem, a beleza e a perfeição do templo de Deus no Céu. O santuário terrestre representava o templo celestial feito pelo próprio Deus. Portanto, a música a ser executada ali perante o Senhor deveria ser diferente daquela usada nas festas comuns.

E na igreja hoje? Ellen White nos lembra que a assembléia dos filhos de Deus aqui na Terra (na igreja) tem o propósito de prepará-los para aquela assembléia mais solene ainda (no santuário celestial). Diz ela: “Para a alma crente e humilde, a casa de Deus na Terra é como que a porta do Céu. Os cânticos de louvor, a oração, a palavra ministrada pelos embaixadores do Senhor, são os meios que Deus proveu para preparar um povo para a assembléia lá do alto, para aquela reunião sublime à qual coisa nenhuma que contamine poderá ser admitida. Da santidade atribuída ao santuário terrestre, os cristãos devem aprender como considerar o lugar onde o Senhor Se propõe encontrar-Se com Seu povo” (Testemunhos Seletos, vol. II [Casa Publicadora Brasileira], pág. 193).

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Notas:
[1] Conforme o dicionário Aurélio, bateria é a designação genérica do conjunto dos instrumentos de percussão de uma orquestra ou banda. (voltar)
[2] O tamboril é um instrumento de percussão, uma espécie de cítara com seis cordas percutíveis com uma baqueta, e que serve para acompanhar as danças regionais das Vascongadas (Espanha) e do Béarn (França). O executante percute as cordas com a baqueta na mão direita, e com a esquerda toca o galubé. Também pode indicar a própria dança provençal ritmada pelo tamboril. (voltar)
[3] O adufe é uma espécie de pandeiro (percussivo) quadrado sem soalhas, feito de madeira leve, e com pele retesada dos dois lados. Ou um antigo pandeiro quadrado, de madeira, com dois tampos de pergaminho, que encerram fieiras de soalhas. (voltar)
[4] O alaúde é um antigo instrumento de cordas dedilháveis, de origem oriental, com a caixa de ressonância sensivelmente abaulada, sem costilhas e em forma de meia pêra, e com a pá do cravelhame inclinada, formando ângulo quase reto com o braço longo. (voltar)
[5] Címbalo é a designação de um antigo instrumento de cordas ou um instrumento constituído por dois meios globos de metal que se percutiam um contra o outro; como pratos. (voltar)

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