O Velho Medo do Desconhecido

por: Luciana Dantas Teixeira

Com o tempo, a música sacra deixou de ser uma arte isolada e passou a sofrer vasta influência da música profana. O pensamento religioso modificou-se, e com ele, a postura dos cantores frente à música também. O homem religioso dá lugar ao homem mercador, que tudo mede, vende, troca e financia. Não havia mais aquela humildade servil que tinha em vista apenas o louvor; os cantores descobriram que podiam ser reconhecidos – e remunerados – por suas performances, e se investissem no aprimoramento da sua arte, poderiam até mesmo ganhar a vida sendo muito bem pagos nas cortes e capelas.

Isso se reflete na música, pelo modo como começaram a surgir ornamentos em abundância. Esses ornamentos, são como chamamos as notas estranhas ao desenho melódico, que servem para adornar as notas reais da melodia, aumentando-lhes o efeito, dando-lhes mais brilho e colorido[1], e cedendo lugar para que a voz do cantor sobressaia. São exemplos de adornos: floreio, trinado, arpejo, vibrato, e modernamente, algumas colocações e efeitos vocais que a música cristã do nosso tempo toma emprestado da música americana.

Como todo adorno, se usado com cuidado, o ornamento pode realçar a mensagem musical. Mas se usado sem cautela nem moderação, o ornamento cobrirá a beleza da música, a rebaixará a um meio de pôr em evidência o canto e os méritos do cantor. Isso, na música secular é compreensível, e até apreciável para quem gosta de virtuosismo[2]. Pessoalmente, acredito que o bom intérprete é aquele dá vida à música, e não a sufoca debaixo de sua voz ou instrumento. Na música sacra, não há como abusar dos ornamentos sem alterar o foco, de Deus, para si mesmo. E isso não é louvor. É adoração sim, mas ao próprio Eu.

A lenda

Mas como dissemos, o artista medieval agora estava mais interessado em negociar. O professor vendia seu conhecimento. O artesão vendia seu trabalho. O burguês vendia sua mercadoria. E o cantor vendia sua técnica. Quanto melhor a técnica, mais bem pago ele seria. O clero preocupava-se, pois via a música da Igreja ser invadida por uma secularidade perturbadora. O papa João XXII, escreveu em 1324 na decretal Dicta Sanctorum Patrum, algumas linhas que manifestam uma admirável compreensão desses fenômenos e que são de grande lucidez com relação a suas conseqüências:

Certos discípulos da nova escola [Ars Nova], enquanto dedicam toda a sua atenção a medir o tempo, estão empenhados em fazer as notas de uma nova maneira, preferem compor seus próprios cantos em lugar de cantar os antigos, dividem as peças eclesiásticas em semibreves e mínimas; estraçalham o canto com notas de curta duração, despedaçam as melodias com soluços, poluem-nas com discantes e chegam ao ponto de entulha-las com vozes superiores em linguagem vulgar. Desconsideram, assim, os princípios do antifonário e do gradual, ignoram, os tons que já não mais distinguem, que mesmo confundem… Correm sem fazer uma pausa para repousar, inebriam os ouvidos em lugar de acalma-los, mimam por gestos o que fazem ouvir. Assim, a devoção que se deveria buscar é ridicularizada, e lascívia, de que se deveria fugir, é exibida às escondidas.[3]

Precisamos dar um desconto ao papa, que estava acostumado a ouvir notas longas, como já vimos. A semibreve já era uma nota, de fato, muito breve. Quando ele se deparou com mínimas, não poderia considerá-las senão como soluços. Mas por trás dessas repreensões técnicas estava uma preocupação maior em manter a liturgia santa. De fato, não contentes em introduzir outras línguas “vulgares” (a linguagem popular) na música litúrgica, e adaptar os textos sagrados a músicas profanas, os compositores, elaboraram uma polifonia tão complicada que às vezes chegava a sobrepor trinta e seis, quarenta e oito ou mais vozes diferentes. Agora, imagine todas estas pessoas cantando ao mesmo tempo, cada uma, uma melodia distinta, num ritmo diferente e em línguas diferentes. Isso não só beirava ao ridículo, como era perigoso teologicamente. Imagine que alguém escondido lá no meio começasse a xingar o papa, ou à Santa Madre Igreja. A confusão era tanta que ninguém perceberia. Diante disso, o clero se reuniu no Concílio de Trento, disposto a abolir a música polifônica e instrumental do culto católico. A música teria de ser somente aquela de outrora, monódica, sem instrumentos, sem divisões de vozes. É nesse contexto que surge Palestrina, a lenda.

No dia 28 de abril de 1565, uma comissão de cardeais reuniu-se para ouvir alguns cantores e verificarem, eles próprios, se a música era de fato sacra, e o texto inteligível, segundo o desejo do papa[4]. Segundo se afirma, foi nessa ocasião que se apresentou a famosa Missa ao Papa Marcelo, composição polifônica de Palestrina, um exemplo da mais sublime arte sacra da época. A letra não era somente perceptível, como exaltada por um equilíbrio, beleza e serenidade celestiais. Não só essa, mas a maioria da obra de Palestrina, partia de modelos feitos por ele mesmo, com base em textos sagrados, e não na música profana. Cuidava para que se formassem imagens musicais, e cercava a letra da atmosfera mais propícia: ora dor, ora alegria, sem jamais quebrar a continuidade nem na unidade do texto.

Palestrina mostrou que era possível fazer música sacra usando o contraponto e a polifonia tão temidos. Diz a lenda que, depois de ouvirem a Missa ao Papa Marcelo, os cardeais se convenceram, e permitiram que esse estilo musical, bem como a música instrumental, fossem finalmente incorporados à liturgia católica.

Rejeição

Tem sido assim desde muito antes de Palestrina: o homem sente medo daquilo que não conhece, e quase sempre rejeita aquilo que teme. Esse velho medo do desconhecido está presente também no relacionamento com Deus. Quem O conhece verdadeiramente, jamais O abandonará, porque não há como conceber vida fora da Fonte de vida. É simplesmente impossível para um cristão que teve um contato genuíno com Cristo, imaginar-se longe do Seu Salvador. Mesmo que desanime ou tropece, ele não encontrará paz enquanto não estiver descansando nos braços de Jesus. Mas para aquele que não conhece a Deus, quem não provou do deleite que é viver segundo a Sua Palavra, o caminho mais fácil é rejeitá-lO.

Um exemplo bíblico pertinente, é o do povo Hebreu. Depois de deixarem de ser escravos no Egito através do Poder de Deus agindo em Moisés, esse povo, na primeira oportunidade, rejeitou seu líder e fez para si um bezerro de ouro para adorar. Ora, eles não conheciam a Moisés, não confiavam nele. Tampouco conheciam a este Deus Jeová, que, apesar de haver demonstrado ser poderoso, não era visível. Preferiram confiar em seus próprios ídolos. Vez após outra, o povo via Deus operar maravilhas, mas insistia em murmurar contra Ele, a ponto incitar a ira do Senhor: “porquanto rejeitastes ao Senhor, que está no meio de vós, e chorastes diante dele, dizendo: Por que saímos do Egito?” (Números 11: 20). Por fim, o povo Hebreu que rejeitou ao próprio Deus, rejeitou também a Terra Santa que lhes estava prometida. Por causa da sua descrença, Deus não permitiu que a geração que saiu do Egito entrasse nela. Com exceção de Calebe e Josué, somente os filhos dessa geração conheceram a Terra que ela rejeitou (Números 14: 29-31).

Parece-nos incompreensível como um povo que viu um mar abrir-se diante de si, que contemplou a presença de Deus diariamente através de uma nuvem e uma coluna de fogo, que recebeu tantos sinais do mais vivo amor por eles, tenha acabado por rejeitar tamanha bênção. A explicação para tanta dureza de coração, está no fato deles não terem conhecido verdadeiramente a esse Deus. Não bastava estar entre o povo de Deus. Não bastava ver grandes milagres e prodígios acontecendo. Não bastava nem mesmo o amor de Deus para salvá-los. Era preciso que houvesse o conhecimento pessoal de Deus. A vivência dos Seus preceitos, não somente porque isso lhes fora ordenado, mas por amor. Tivessem os Hebreus experimentado conhecer a Deus de perto, iriam provar não apenas as delícias da Terra Prometida, como uma vida do mais pleno prazer e alegria.

Conhecer para amar, amar para aceitar.

Cristo também foi rejeitado porque o mundo não o conheceu (João 1:10). Continua sendo assim até hoje. As pessoas têm medo dEle, e muito mais da Sua doutrina. Afinal, que prazer pode haver em abnegar o próprio Eu, ser perseguido, difamado, e tido como louco pelo restante do mundo? Seus preceitos mais parecem um conjunto de regras difíceis de suportar. Por isso são tão facilmente rejeitadas – inclusive por aqueles que tentam “adaptá-las” aos próprios moldes.

Alguns cristãos, hoje, lembram o povo Hebreu, professando pertencer a um Deus que não conhecem. Conhecem talvez uma versão “adaptada” dEsse Deus. Conhecem emoções que lhes sugerem alguma existência sobrenatural, conhecem a letra fria da doutrina e da teologia, mas não têm o conhecimento de Deus, “e assim como eles rejeitaram o conhecimento de Deus, Deus, por sua vez, os entregou a uma disposição mental reprovável, para fazerem coisas que não convêm.” (Romanos 1:28).

Enquanto isso, nosso Pai estende o Seu lamento: “O meu povo está sendo destruído, porque lhe falta o conhecimento” (Oséias 4:6). Esse não é apenas o conhecimento humano. De nada adianta encher-se de teorias sobre “o que é teologicamente certo”, ou que é “formalmente aceitável a Deus”, e pouco também importa o conhecimento técnico do que é sacro, se não há o conhecimento de Deus, se não há noção de Quem é o Deus a quem adoramos. Só é santo quem conhece a Sua santidade.

Tantos se debatem buscando firmar sua religião em opiniões e regras humanas, quando uma só Pessoa assevera: “Eu Sou a Verdade.” (João 14:6). Quem não conhece a Cristo, não pode reivindicar para si a verdade. Conhecê-lo, no entanto, pode nos fazer ver erros que nos aprazem, e pecados de que não queremos abrir mão. Mas se quisermos de fato conhecê-lO, não poderemos deixar de amá-lO. Se O amarmos, amaremos tudo que reflita Sua glória e caráter. Aceitaremos com prazer viver conforme os altos padrões de vida e religião que Ele nos ensina.Perguntemo-nos: por que rejeitar os tão temidos padrões da Verdade, ao invés de experimentar o gozo sublime de incorporá-los a nossa vida?

A “loucura” dos mandamentos divinos, a aparente dificuldade em seguir seus princípios, se esvaece quando nos permitimos ser envolvidos em Seu amor, que lança fora o medo. Permitir-se uma aproximação sincera e total de Deus, pode fazer toda a diferença entre permanecer no deserto do erro, ou conhecer as delícias do céu, rejeitar ou amar a verdade. E a atmosfera celeste pode começar aqui mesmo, se decidirmos fazer o que é certo, seguir a Pessoa da Verdade, para podermos dizer como o salmista: “Deleitar-me-ei em teus mandamentos, que eu amo.” (Salmo 119: 47)


Notas:

[1] PRIOLLI, Maria Luisa de Mattos. Princípios básicos da música para a juventude. Vol. 2. Pág. 88.

[2] Virtuosismo é como chamamos a técnica exímia na execução de uma música. Qualidade de virtuose. Há quem goste de ver circenses fazendo malabarismos e contorcionismos com o corpo. Outros gostam de ver instrumentistas e cantores fazendo isso com a música.

[3] MASSIN, Jean. História da Música Ocidental. Pág. 197.

[4] MASSIN, Jean. História da Música Ocidental. Pág. 283.