Música Sacra e Música Profana: Que Músicas São Essas?

por: Parcival Módolo

“Uma religião é um sistema solidário de crenças… e de práticas relativas a coisas sagradas, ou seja, separadas…; crenças e práticas que unem na mesma comunidade moral, chamada igreja, todos os que a ela aderem.” Émile Durkheim

Nos dias de hoje, a prática de música vocal e instrumental é intensa, constante e natural nas igrejas filhas da Reforma, isto é, alguma música, cantada ou tocada, está sempre presente no culto das igrejas evangélicas. Não há qualquer dificuldade em aceitar como parte dele – do culto – algo que costumamos chamar de “música sacra”. Essa expressão, porém, “música sacra”, pode causar alguma controvérsia, já que, de fato, nem sempre é fácil definir esse gênero.

Não raro ouvimos que música sacra é aquela música que acompanha texto religioso; que qualquer música cujo texto contenha coisas relacionadas à igreja, ou que palavras da Bíblia, deve ser sacra, já que fala de coisas sagradas. Mas neste caso definiremos como “sacras” dezenas de canções comerciais: de Roberto Carlos, com seu “Jesus Cristo, eu estou aqui”, ao grupo Legião Urbana, cantando o texto de 1 Coríntios 13, canções essas compostas sobre textos “sacros”, mas sem qualquer pretensão de “sacralidade”. Parece, assim, que não basta o texto conter palavras “sacras” para o conjunto letra-música tornar-se “música sacra”.

Também há quem acredite que a intenção do compositor é quem define se uma música é sacra: se o compositor escreveu qualquer música com a pretensão de que fosse “música sacra”, então ela deve ser. Há quem afirme, ainda, que o parâmetro do sacro é a qualidade: música bem escrita tecnicamente, por compositor bem preparado academicamente, deve ser sacra; qualquer outra, profana.

A discussão pode se tornar ainda mais complicada quando nos lembramos que, se o critério de avaliação for o funcional, é possível fazermos distinção entre “Música Sacra” e “Música Litúrgica”: “Sacra” seria toda música cujo tema central, ou gênero, ou forma, tem como ponto de partida o ambiente religioso, utiliza textos religiosos ou da história da religião, mesmo que não tenha sido composta para qualquer igreja ou culto. “Litúrgicas” são apenas as músicas produzidas para algum culto, comprometidas com alguma liturgia, com o ambiente, com o cultuante e o cultuado. É “sacro”, por exemplo, mas não litúrgico, o oratório O Messias, de G. F. Handel, já que não foi composto para qualquer culto mas sim como peça de teatro; são “sacras”, ainda, as grandes “Missas”, os “Te Deum”, os “Magnificat” dos compositores do Classicismo ou do Romantismo, mas não obras litúrgicas, já que seus textos, apesar de natos em ambiente religioso, não foram compostas para qualquer culto, não têm características litúrgicas, antes as de espetáculos musicais para o teatro. Por outro lado, são “litúrgicos” os Prelúdios Corais e as Cantatas Sacras de J. S. Bach, por exemplo, ou as obras de outros tantos compositores que compunham para a liturgia dos cultos das igrejas onde trabalhavam, comprometidos com o ambiente cúltico, com a tradição e com a forma da cerimônia. De acordo com esse critério, portanto, nem toda música sacra é litúrgica.

Como se pode perceber, definir música sacra não é tarefa tão simples quanto parece à primeira vista. Talvez devêssemos, antes, tentar conceituar o “sacro” – ou “sagrado” – e para isso, pensarmos em seu oposto, o “profano”.

Distinguir sagrado e profano, porém, não é tarefa simples e para ela necessitamos buscar referências que nos ajudem a construir sobre bases sólidas.

O Sacro e o Profano

Para algumas grandes perguntas que a humanidade tem feito durante sua história, diferentes ciências costumam oferecer respostas diferentes. Pergunte o que é a Verdade, por exemplo, a um matemático e a um filósofo; ou peça à Medicina e à Teologia para definirem Vida e Morte: você certamente obterá respostas diferentes. Também é assim com os conceitos de Sagrado e Profano – e de saída devemos deixar claro que “profano”, aqui, não é palavra que deve trazer qualquer carga negativa. É comum ao conceito de sagrado, ligar-se o de puro e bom, e ao de profano o de impuro, desprezível e mau. Porém, profano, por enquanto, significa simplesmente “aquilo que não é sagrado”. Nesse caso, sagrado e profano se opõe, portanto, e se complementam, como freqüentemente acontece com as antíteses.

Para os antropólogos, sagrado e profano são duas categorias utilizadas para analisar símbolos sociais. O sagrado seria tudo o que é extraordinário, anormal, especial, “do outro mundo”. O profano seria o normal, quotidiano, deste mundo.

Rudolf Otto 1 fala do sagrado como algo que denota a manifestação do numen, do poder divino, do “outro absoluto”, algo totalmente distinto de qualquer outra experiência. O sagrado é uma realidade de ordem absolutamente diversa da realidade natural. Mircea Eliade 2 fala em “momento sagrado” e o concebe como extraordinário, especial, quando há uma hierophany, ou seja, quando algo sagrado se mostra ao homem. O indivíduo só se torna consciente do sagrado na medida em que essa experiência se opõe ao profano. Para Émile Durkheim 3, sagrado e profano pertencem a dois mundos contrários, em torno dos quais gravita a vida religiosa: “Todas as crenças religiosas conhecidas […] supõe uma classificação das coisas […] em duas classes ou em dois gêneros opostos, designados […] pelas palavras profano e sagrado. A divisão do mundo em dois domínios, compreendendo, um tudo o que é sagrado, e outro tudo o que é profano, tal é o traço distintivo do pensamento religioso […].”(p. 68).

Assim, mesmo considerando suas diferentes ênfases, parece que os três autores concordam que estas são categorias opostas e excludentes: só é sagrado aquilo que não é profano.

Mas como é que podemos distinguir um do outro? Como é que as coisas sagradas se distinguem das profanas? Em linhas gerais parece que as coisas sagradas são facilmente consideradas como superiores em dignidade e em poder, às coisas profanas. Para Durkheim, o que melhor diferencia o sagrado do profano é exatamente sua enorme heterogeneidade, sua distinção. Aliás, ele acha que afora isso, essa heterogeneidade, essa oposição, não resta nada para qualificá-los. Ele explica: “o que faz com que essa heterogeneidade seja suficiente para caracterizar essa classificação das coisas [em sagradas ou profanas] e para distingui-la de qualquer outra é o fato de que ela é muito particular: ela é absoluta.” Seu argumento é que não existe na história do pensamento humano outro tipo de duas categorias de coisas tão profundamente diferenciadas, tão radicalmente opostas uma à outra. Para ele, “o sagrado e o profano foram sempre e por toda parte concebidos pelo espírito humano como gêneros separados, como dois mundos entre os quais não há nada em comum.” (p. 70). O profano não poderá jamais tocar impunemente o sagrado, pois nesse confronto certamente haverá atrito.

A partir de agora, e utilizando as ferramentas de que até aqui dispomos, podemos dizer que música sacra é tudo aquilo – mas somente aquilo – que não é música profana. Que não pode ser confundida em sua forma e essência. Nesse caso, porém, o conceito de Música Sacra terá que ser adaptado a cada cultura: ela será diferente da música secular de um povo; produzida por instrumentos musicais que não estejam unicamente associados à música profana daquela região, e deverá ser sempre coerente com o texto que a acompanha. Um bom exemplo disso é a música trazida ao Brasil pelos missionários evangélicos americanos no século XIX. Alguns daqueles hinos eram canções folclóricas do seu país – profanas, portanto – e com texto sacro adaptado. No Brasil, porém, soaram absolutamente sacras pois eram diferentes de tudo o que os brasileiros de então conheciam, associadas imediatamente à nova fé. Foram recebidas como a música sacra por excelência, como a música de igreja, parâmetro e modelo para toda música daquelas igrejas, mesmo a que foi sendo composta aqui. Afinal, ela era diferente da música profana conhecida em nosso país naquela época; tocada em instrumentos diferentes dos usados fora da igreja – os harmônios, trazidos pelos próprios missionários e nunca antes ouvidos por aqui.

Outro exemplo, agora hipotético, é a ida de um brasileiro contemporâneo ao Tibet, em missão evangelística entre monges budistas, oferecendo a eles uma cuíca como instrumento sagrado para acompanhar as canções da nova fé. Aceita pelo grupo, a cuíca será sagrada ali e produzirá, a partir de então, sons absolutamente sacros para aquelas pessoas!

Lembre-se como foi difícil para as igrejas evangélicas brasileiras aceitarem, em seus cultos mais solenes, guitarras e baterias, antes delas o violão, e ainda antes o piano. Isso por causa de sua identidade, cada qual a seu tempo, com o profano: o piano, nas décadas de 50 e 60, estava associado aos clubes e bares, apenas. O violão, nas décadas de 60 e 70, estava associado à música mais informal e boemia. Guitarras e baterias, mais recentemente, e ainda hoje, são por demais identificadas com música, postura e ideologia secular, profana, para que sejam aceitas “impunemente” no ambiente religioso, especialmente nos cultos mais solenes.

Por outro lado, podemos perguntar porque nunca foi difícil a inserção de violinos, oboés, violoncelos, no ambiente sagrado. Não é difícil perceber que é por sua identidade com o ambiente solene, nobre, características mais aproximadas às do sagrado, já que este – o sagrado – se identifica facilmente com o que é extraordinário, anormal, especial, e se liga ao que se mostra – ou ao que se supõe – puro e bom.

Vejamos o que diz Durkheim sobre esse fenômeno: “Uma vez que a noção do sagrado é, no pensamento dos homens, sempre e por toda parte separada da noção do profano, porque concebemos entre elas uma espécie de vazio lógico, ao espírito repugna de forma irresistível o fato de as coisas correspondentes serem confundidas ou simplesmente postas em contato.” (p. 71). Ele vai mais longe ao afirmar que esse contato deixa seqüelas: “A coisa sagrada é, por excelência, aquela que o profano não deve, não pode impunemente tocar.” (p. 72). Trazer o profano para o sagrado demanda desse alguma mudança de característica: “Mas, além desse relacionamento ser sempre, por si mesmo, operação delicada que exige precauções e iniciação mais ou menos complicada, ela sequer é possível sem que o profano perca seus caracteres específicos, sem que ele próprio se torne sagrado em alguma medida e em algum grau.” (p. 72). Você já notou que canções sacras compostas nos ritmos mais populares, samba, rock, sertanejo, só são razoavelmente aceitos no ambiente litúrgico quando sofrem alguma alteração, ou em sua estrutura rítmica, ou em sua instrumentação, ou ainda na postura dos intérpretes? Novamente Durkheim: “Os dois gêneros não podem se aproximar e conservar ao mesmo tempo sua natureza própria.” (p. 72).

A Igreja

Podemos, finalmente, perguntar por que a música tem dividido tantos grupos religiosos e causado tanto distúrbio nas igrejas. Novamente Durkheim: “Uma sociedade cujos membros estão unidos pelo fato de conceber, da mesma maneira, o mundo sagrado e suas relações com o mundo profano, e de traduzir essa concepção comum em práticas idênticas é o que se chama de igreja.” (p. 75). Isso é, um grupo religioso só se mantém unido, coeso, quando seu conceito de sagrado é comum, quando tem a mesma opinião ao discernir o sagrado do profano. Quando há discórdia em relação ao sagrado e ao profano o grupo tende a desfazer-se, ou no mínimo viver em constante atrito. Afinal, uma religião é, nas próprias palavras de Durkheim, “um sistema solidário de crenças … e de práticas relativas a coisas sagradas, ou seja, separadas, proibidas; crenças e práticas que unem na mesma comunidade moral, chamada igreja, todos os que a ela aderem.” (p. 79). Religião é, pois, inseparável da ideia de igreja, o que, ainda segundo Durkheim, “faz pressentir que a religião deve ser coisa eminentemente coletiva.” (p. 79).

Tudo isso nos leva de volta ao início, à definição de “Música Sacra”. Depois do arrazoado acima, creio que devemos perguntar: Sacra para quem?

É que o conceito de sagrado terá que ser válido pelo grupo chamado igreja, a partir do conceito de grupos maiores, as religiões, inseridas em diferentes culturas. Para todas elas, porém, igrejas e religiões, Música Sacra será sempre – e necessariamente – diferente da secular praticada pelo povo da região; produzida por instrumentos musicais que não estejam unicamente associados à música profana daquele lugar. E terá que ser sempre coerente com o texto que a acompanha, servindo não como espetáculo, em si, mas como veículo fiel para a mensagem que deve proclamar. Assim, se para você o samba está sempre e unicamente associado ao carnaval, aos seus ouvidos jamais soará “sagrado”, mesmo que seja um samba sobre texto bíblico. Você pode até se esforçar muito por aceitá-lo no culto: será sempre música profana. Mas você deve estar consciente de que, para uma geração que nasceu e cresceu numa igreja ou num grupo religioso que tinha como prática comum e usual o cântico de músicas em ritmo de samba durante seus culto, tal música soará tão “sagrada” quanto o “Castelo Forte”.

O que fazer, pois? Penso que bom senso, paciência, conversa e respeito mútuo, muito ajudarão. Afinal, uma igreja é uma coletividade e o culto é a manifestação pública e comunitária da sua fé. “Comunitária”, note bem! O culto particular, individual, praticado no cotidiano de cada pessoa, será da forma que ela quiser, em local e hora que ela preferir – e desse culto “particular” somente essa própria pessoa prestará contas a Deus. O culto da igreja, porém, é “da igreja”, e não individual; é do grupo que se juntou solidariamente em torno de um conceito de sagrado, formulado coletivamente e que deve ser compreendido, respeitado e fortalecido, sob pena de vermos aquela comunidade desfazer-se.

Como está a música da sua igreja? Igreja de que fé religiosa?


Notas:

1 OTTO, Rudolf. O Sagrado. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985. Otto (1869-1937) foi professor de teologia em Gottingen, Breslau e Marburg. O Sagrado, sua obra mais importante, é o resultado de uma série de palestras proferidas na Escócia.

2 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. A essência das religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1995.

3 DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Paulus, 1989.


Fonte: Revista Servos Ordenados, 1º trimestre de 2007, Editora Cultura Cristã