A Audição

Uma Cultura Destrutiva

por: Daniel Azevedo

“Arte dos sons” é uma das definições mais comuns para o termo música. De acordo com o dicionário Michaelis, música é a “arte e técnica de combinar sons de maneira agradável ao ouvido”.

No entanto, para onde vai essa arte quando o som é mal utilizado a ponto de se tornar não somente desagradável, mas perigoso para a audição? Deveria a arte dos sons prejudicar os órgãos utilizados na percepção e apreciação dos mesmos sons? Certamente não.

Em 14 de setembro de 2006, o jornal Zero Hora trazia a seguinte declaração do guitarrista inglês Eric Clapton:

“Minha audição está arruinada e, se paro para escutar, ouço uma espécie de assovio constante em meu ouvido. Acho que sofro de tinnitus. Provavelmente toquei diante de alto-falantes com cem watts de potência. Foi uma loucura.”

Na semana seguinte, a revista Veja publicava a mesma declaração, enquanto o jornal Zero Hora retomava o assunto com este comentário do médico otorrinolaringologista José Seligman, intitulado A Surdez do Guitarrista:

“O guitarrista britânico Eric Clapton fez uma declaração pública que, seguramente, vai contribuir para a prevenção da surdez devida a ruído de forma muito mais efetiva que todos os trabalhos científicos sobre este assunto publicados na última década. […] Na verdade sua doença é bastante comum, sendo conhecida sobremaneira por otorrinolaringologistas, médicos do trabalho e fonoaudiólogos e designando-se, no Brasil, como PAIR – perda auditiva induzida por ruído). Desde 1993 há um esforço por parte dos profissionais para convencer as pessoas que vivem sob efeito do barulho de que, de uma forma ou de outra, não podem se descuidar de sua proteção. […] Trata-se de uma inversão de valores. O fumo, o álcool, as drogas, o ruído, entre tantos outros agressores conhecidos, merecem uma avaliação mais correta por parte da população. Mas parece que as pessoas só se conscientizam de seus efeitos danosos quando uma personalidade como o guitarrista inglês vem a público para denunciar.”

Nessa mesma época, havia um colega de trabalho que estava sofrendo com o seu recém-diagnosticado tinnitus, fruto da exposição contínua ao ruído em ensaios com bandas de rock na sua juventude. Lemos o texto acima, no dia de sua publicação. Lembro-me claramente do desconforto expresso em seu semblante, causado pelo zumbido, enquanto pronunciava a seguinte frase: “Esta é uma cultura destrutiva”.

A realidade profissional do instrumentista em diferentes contextos musicais o expõe a estes perigos para a audição, infelizmente. Como exemplo, posso citar a minha própria experiência com a música popular ao longo de dez anos (de 1995 até 2005), dos quais os seis últimos foram os de maior exposição a volumes extremos. Foram muitas horas despendidas em ensaios, passagens de som e shows, além do tempo de permanência em eventos com música mecânica em níveis de volume excessivamente altos. Por vezes, procurei reduzir o desconforto e a dor nos ouvidos com algodão ou com diferentes tipos de protetores auriculares (earplugs), mas sem alcançar resultados efetivamente satisfatórios. Uma audiometria realizada durante este período já revelava certo grau de perda auditiva.

Mesmo hoje, após alguns anos de férias para os tímpanos, os sintomas de uma audição prejudicada já começam a surgir, lentamente. Meus cuidados têm sido redobrados, evitando a permanência em locais com muito ruído ou música alta, pois pretendo preservar ao máximo o que ainda resta desse maravilhoso sentido.

Este é um assunto que merece profunda reflexão e exame de valores. Com cuidado e bom senso, posso escolher abandonar o que me prejudica e ficar com a música que não agride, mas beneficia o corpo, o intelecto e as emoções. Lembre-se de que estamos inseridos numa “cultura destrutiva”, que nos cerca e consome.


Fonte: Publicado originalmente em http://baixoempauta.blogspot.com.br/2013/02/uma-cultura-destrutiva.html


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