A Forma da Adoração / Debate Sobre a Música na Igreja

Por Que Ainda Existem Controvérsias Sobre Adoração Entre Adventistas?

por: Pr. Douglas Deis

Há meses contatei um editor cristão sobre a possibilidade de escrever algo sobre critérios para a adoração. Responsável por revista voltada aos jovens, ele foi sincero: “tenho fugido desse tipo de discussão!”. Não sei se posso culpá-lo, porque, infelizmente, discutir sobre o assunto parece ser ultrapassado ou soar uma declaração de guerra, dividindo gostos e tendências. Claro que dentro de um repertório aceitável haverá espaço para se gostar mais daquele ou desse hino. O problema surge quando o gosto nos leva a abandonar critérios revelados por meros critérios pessoais (moldados pela natureza pecaminosa, que se coloca contra o que Deus revelou).

Adoração constitui algo multifacetado e envolve o tipo de música a ser escolhido (embora não se restrinja a isso). Nisso reside boa parte da controvérsia sempre em pauta. Não é simples questão de música antiga ou nova, como alguns pretendem simplificar; tal simplificação empobreceria a discussão! No mais, o gosto de qualquer época não me parece critério confiável e final para estabelecer se determinado tipo de música seja aceitável a Deus ou não. Em todos os tempos, há produções boas e ruins, o que parece inegável. A grande questão: é contraditório assumir a moldura teológica do grande conflito e continuar concebendo a música como mero fenômeno artístico de seres humanos, como se toda música fosse equivalente e não passasse de "música". Há cosmovisões regendo a arte e influenciando toda a liturgia, desde a maneira como cantamos, o que cantamos, quando cantamos e o que mais fizermos durante o culto.

Músicas imperfeitas, mas bem direcionadas

No fundo, encontramos a relação entre cristianismo e cultura. Logo, não é qualquer música que serve para a adoração, da mesma forma que muitas atitudes não seriam toleráveis ao cristão, embora culturalmente aceitáveis. Um exemplo: ir ao cinema é culturalmente aceitável, uma forma de entretenimento “inocente”. Contudo, seria apropriado a um cristão? Nós, como adventistas, temos luz sobre o assunto? A revelação ultrapassa os limites da cultura, reformando aquilo que, em nossa vida, contraria os princípios da palavra de Deus. O que torna algo apropriado é sua coerência com a revelação.

Tenho conversado com muitas pessoas e agradeço pelo que aprendi com pastores, músicos, acadêmicos e todo tipo de gente. Refletir sobre música e adoração pode levar a uma cilada, se não se estabelecermos alguns limites. De que tipo de música estamos falando e em qual contexto de adoração? Se vamos falar de música adventista, isso inclui pautar a discussão pela Revelação – Bíblia e Espírito de Profecia. Evidentemente, a melhor música humana não é fruto de uma revelação direta de Deus; os salmos entrariam nessa categoria, porém, o que restou deles foi a letra. Ninguém seria capaz de estabelecer que algumas melodias judaicas atribuídas a certos salmos sejam de fato as composições originais. Desse modo, toda música é tentativa de adoração limitada (pela pecaminosidade humana, em primeiro lugar, mas também pela cultura, pela compreensão da revelação, etc). Entendo que Deus aceite nosso melhor quando obedecemos Seus critérios, assim como o demonstra a história da salvação. E como isso funciona na prática?

O melhor para a sua saúde

A relação entre o adventismo e a adoração pode ser compreendida se recorrermos à ilustração de uma mulher que deseja se manter saudável. A moça leu sobre princípios dietéticos e descobriu que fatores simples garantem a boa saúde. Elementos como alimentação balanceada, exercícios físicos regulares, ar puro, luz solar, descanso apropriado, comunhão com Deus, uso abundante de água e equilíbrio não apenas regulam o peso, mas dão condições para se viver bem.

Infelizmente, um dia a mulher se cansa de todas essas regras. Como é difícil evitar doces e frituras – sem contar que uma alimentação regrada não se harmoniza com sua vida social! Dormir bem é um luxo que o trabalho não permite; beber a quantidade suficiente de água em dias frios é desafiador; luz solar e ar puro em uma cidade grande? Claro que o estilo de vida desengonçado gera estresse e sobrepeso. A mulher se preocupa. O que fazer?

Existem sempre dietas à disposição: regime da sopa, da lua, dos carbo-hidratos, dieta do sangue… A cada nova tentativa, resultados satisfatórios apenas a curto prazo (quando muito!). O efeito sanfona (emagrecer e voltar a engordar rapidamente) gera mais frustração (e estrias!). Logo chega o dia em que a pobre mulher se lembra de como era feliz vivendo com os princípios de uma vida saudável, quando não precisava se torturar para emagrecer.

Com o adventismo não é diferente. Os pioneiros inovaram a teologia quando levaram o princípio sola-scriptura (a Bíblia como única regra de fé) às últimas consequências. Olhe para eles: não eram perfeitos. Tinham muitas limitações e demoraram para abrir mão de sua herança teológica anterior, a qual variava quase de indivíduo para indivíduo. Muitos renegavam a trindade ou fumavam, comiam carne de porco e entendiam as mesmas verdades sobre prismas completamente opostos (como eles não se mataram, eu não sei!).

Com o passar dos anos, sua fé na Bíblia foi capaz de reformá-los e levar a uma compreensão de seu papel no mundo: tinham de anunciar o Juízo final e convidar as pessoas para adorar o Criador (Apocalipse 14:6-7). Sua identidade e missão foi derivada da verdade bíblica, baseada em uma compreensão única do ministério de Cristo no santuário celestial. Todavia, lembre-se de que muitos pioneiros demoraram para deixar o fumo, a carne de porco e chegar à conclusão de qual o horário para a guarda do sábado. Meu ponto é: eles são nosso modelo pelas fidelidade às convicções teológicas e pela hermenêutica radicalmente voltada para a Bíblia por si (ignorando a tradição). Não acertaram em tudo, mas experimentaram crescimento, justamente por confiar na Bíblia e somente nela. Nós não avançamos como eles porque (1) nos acomodamos; (2) passamos a nos identificar com os evangélicos e seguir suas tradições e (3) o resultado veio: ignorância bíblica (embora ainda vivamos com algum crédito que os pioneiros suaram para conquistar!).

Qual o desafio?

Qual o desafio atual da igreja na área da adoração? É refinar a cultura. Não estou aludindo ao “eruditismo”, mas ao princípio sola scriptura – se usássemos a Bíblia para nos dirigir em reformar a cultura, teríamos um culto vivo, sem a necessidade de apelar ao sensacionalismo. Alguns acreditam que músicas diferentes, de teor mais próximo aquelas cantadas por igrejas carismáticas dariam nova vida ao culto adventista. Voltando ao exemplo anterior, seria como apelar a todo tipo de regime enquanto abandonamos os princípios de saúde! Por que isso não daria certo?

Já falamos sobre como tudo na adoração deveria ser regido por uma cosmovisão bíblico-cristã, que assumisse o fundamento da Bíblia e o aplicasse na transformação da cultura (um processo que exige a participação de uma igreja reavivada, especialmente de músicos que apliquem seu talento na direção da revelação). Enquanto reproduzirmos os que os evangélicos fazem, apenas chegaremos onde eles estão –  divididos entre si, presos a tradições e tendências extra-bíblicas. Porém, podemos construir uma teologia de adoração bíblica, que nos leve a uma experiência vibrante, sem cair no modismo de algumas formas de adoração contemporânea e sem ser passadista.

Quando adotamos músicas de tendências carismáticas, ocorre lentamente uma transformação macro-hermenêutica. Quer dizer que isso afeta os pressupostos (quem é o ser divino e como Ele deve ser adorado). Podemos sustentar as mesmas doutrinas (nível meso-hermenêutico), mas a abordagem será diferente, modificando a relevância delas e até seu conteúdo. É claro que isso tem um impacto sobre à teologia em nível prático, afetando o que as pessoas creem a médio e longo prazo. A maior demonstração de que estamos passando de uma base bíblica para outra, carismática e ecumênica, é a divergências entre estudiosos no meio adventista em questões envolvendo adoração e, sobretudo, estilo de vida. Para simplificar: qualquer um de nós brasileiros (ou sul-americanos) estranharíamos profundamente o perfil dos adventistas europeus ou de algumas regiões dos Estados Unidos (onde alguns já usam o rótulo de adventistas contemporâneos, em contraponto aos adventistas históricos e demais configurações diferentes do mesmo movimento!).

Ajudaria “apimentar a relação”?

Um exemplo mais. Quando um casal vai mal, quando a relação dos dois parece marcada por tédio e insatisfação, imagine se eu lhes sugerisse trocar de parceiros, apenas para “experimentar algo novo”? Obviamente, eu não salvarei o casamento deles assim, mas eu o destruirei de vez! Não vejo que o culto adventista seja o problema, mas é nossa relação com Deus que se acha desgastada. O pecado e a inércia nos impedem de progredir na direção apontada pelo próprio Senhor. “Apimentar a relação” com músicas comuns aos cultos pentecostais (concebidas e usadas com outra função) não restabelecerá o princípio do culto bíblico, apenas nos afastará dele (e de Deus, consequentemente).

Volto a afirmar: não creio que toda produção atual seja descartável, nem que tudo o que o passado produziu deve constar em um altar! Acredito que haja espaço para músicas novas e seleção de boas músicas do passado. O ponto nevrálgico se encontra justamente nos critérios de seleção e produção de coisa nova. Se não nos pautarmos pela Revelação, vamos continuar justificando tudo o que produzimos em nome do Senhor, como se a desobediência pudesse ser justificada! Por outro lado, acredito em um Deus que ama professores e forneceu a base para uma pedagogia adventista adequada (mas nunca vi um plano de aula entre os escritos de E.G. White!); da mesma forma, Deus nos deu um regime alimentar saudável (e olha que E.G. White não deixou receitas ou cardápios!); profetas bíblicos constantemente se envolviam em assuntos político-econômicos (e você não verá o esboço de um plano de governo escrito por Jeremias ou Ezequiel!). A revelação dá diretrizes, princípios. São os músicos que têm de estudá-los e aplicá-los, com a ajuda daqueles que estudam esses escritos inspirados. Deus trabalha com instruções específicas, mas não com regras fixas. Discernimento espiritual é o que nos ajuda a diferenciar um do outro.


Fonte: Questão de Confiança


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