Especial Liturgia

Astenia Homilética

por: Demóstenes Neves da Silva

O título deste artigo pode parecer provocante, visto que a palavra astenia, termo grego encontrado no Novo Testamento, refere-se a uma condição de fraqueza, falta de forças ou doença. Sendo que homilética é o nome da disciplina que estuda o discurso religioso, o preparo e pregação do sermão, trataremos neste artigo da perda de autoridade dos sermões e da necessidade de recuperá-la, especialmente considerando o sermão como elemento central no culto cristão adventista.

Parece que, atualmente, há uma preocupação dos pregadores com a pregação de resultados, independentemente de seu nível de autoridade bíblica e eficácia litúrgica. Quando piadas, efeitos especiais, devaneios criativos religiosos e historietas curiosas fazem sucesso, contanto que proporcionem algumas lições morais, a tendência imediata de muitos é ver isso como boa pregação que contribuiu positivamente para a adoração. Porém, a pregação destituída de autoridade biblica desonra e anula os efeitos de outros serviços litúrgicos. A medida da boa pregação e da boa adoração também tem sido o termômetro das emoções: se o povo gargalhou ou se aliviou as tensões com lágrimas pelo emocionalismo, então, para alguns, a pregação e o culto foram “uma benção”.

Autoridade bíblica

Evidentemente, a Palavra faz a alegria da salvação e leva ao choro do arrependimento, porém a verdade comove para a verdade, e a fantasia comove para a fantasia. Pode-se rir e chorar nos espetáculos mundanos; nem por isso pode-se dizer que houve salvação. Um sermão baseado em fantasias emotivas e bem contadas, rotuladas superficiamente com um texto bíblico, não passa de “estelionato” homilético. Promete-se um produto, a Bíblia, mas entrega-se outro, a fantasia. Como esperar que o Espirito endosse uma fantasia proclamada do púlpito como sendo a inspirada Palavra de Deus? O texto seguinte alerta o pregador:

“Linguagem floreada, contos agradáveis ou anedotas impróprias não convencem o pecador. Os homens ouvem tais palavras, como o fariam a uma canção aprazível. A mensagem que o pecador deve ouvir é: ‘Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho unigênito, para que todo aquele que nEle crê não pereça, mas tenha a vida eterna.’ A recepção do evangelho não depende de testemunhos eruditos, de discursos eloquentes, ou de argumentos profundos, mas de sua simplicidade, e de sua adaptação aos que se acham famintos do pão da vida.” [1]

Na ausência da autoridade bíblica no sermão, ouvintes sensatos e informados perdem a confiança no pregador e na mensagem que representa. Outros menos informados tomam tais pregações e pregadores como exemplo, tornando-se sua pseudo-pregação a pedagogia de um modelo equivocado de sermão e de interpretação da Bíblia. Portanto, rever o sermão a partir da autoridade bíblica se faz necessário no culto.

A autoridade bíblica do sermão tem preocupado especialistas na área de pregação. Entre os autores evangélicos tradicionais que abordam o tema encontram-se Farie D. Whitesell [2] e H. C. Brown Jr. Este último defende que a autoridade de um sermão está no uso da Bíblia: “Desde que o único documento autêntico para um conteúdo autorizado acerca da revelação pessoal de Deus é a Bíblia, a tarefa do pregador é usar corretamente a Bíblia no preparo e na pregação do sermão.” [3]

O mesmo autor classifica os sermões em graus ou níveis de autoridade bíblica e os denomina de bíblico direto, bíblico indireto, casual e combinado. [4] Neste artigo faremos uso dessa classificação, porém, com liberdade para contribuir com adaptações a situações que presenciamos atualmente, de modo a chamar a atenção dos leitores para a necessidade de resgatar ou reforçar a pregação verdadeiramente bíblica e seu papel na adoração.

Direto e indireto

O sermão bíblico direto é aquele que diz o que a Bíblia diz, por estar forte e claramente baseado na ideia principal do texto. Esse tipo de sermão comporta duas subclassificações: textual e expositivo, nas quais o texto bíblico fornece o tema, a tese e as partes principais do sermão. Embora a porção bíblica no sermão textual seja limitada, pois se restringe a um ou poucos versículos, esse tipo de sermão diz exatamente o que a Bíblia diz.

Avançando um pouco mais, o sermão expositivo amplia a porção bíblica e, consequentemente, os contextos e a análise, mas sempre dizendo o que a Bíblia diz. Em resumo, o sermão bíblico direto, entre os demais, é o que tem maior autoridade bíblica, uma vez que está comprometido com o texto e não com ideias fantasiosas, devaneios improvisados, interpretações subjetivas ou distorcidas que o pregador possa fazer da Bíblia.

O segundo tipo de sermão foi classificado como sermão bíblico indireto. Alguns autores preferem o termo secundário porque sua interpretação do texto pode incluir aspectos e significados possíveis, mas não explícitos na passagem. São implicações tiradas do texto, mas não estão diretamente mencionadas. Adicionamos que essas implicações são algumas vezes coletadas de livros bíblicos diferentes. Então, várias ideias são recortadas de vários textos tirados de contextos diversos para atender um tema previamente escolhido. Esse tipo de sermão tem predominado nos púlpitos evangélicos e também entre os adventistas.

Quando utiliza implicações de textos diferentes, o sermão indireto desafia o pregador a lidar com várias passagens e conservar a fidelidade ao propósito de cada uma delas, sem “forçar” o texto. Nesse sentido, o sermão indireto, propõe um desafio extra para a habilidade do pregador de lidar com textos diferentes e fazer justiça ao contexto de cada um deles.

Há o entendimento de que sermões resultantes da combinação de várias passagens de contextos diferentes enquadram-se no modelo indireto, e com razão. No sermão bíblico direto, é o texto que fornece e rege o tema, caracterizando forte autoridade bíblica. Diferentemente, no indireto, composto de vários textos, um tema é eleito para aglutinar as diferentes passagens, e esse tema passa a reger o sermão. Isso é feito normalmente a partir da seleção de passagens que juntas apóiem o tema.

Essa forma de construir o sermão organizando textos em torno de um tema previamente escolhido pode comprometer os contextos originais das passagens utilizadas, caso o pregador não seja cuidadoso nesse ponto. Porém, mesmo respeitando os contextos, a mensagem não terá surgido nem estará construída sobre o texto, mas esse estará a serviço do tema, as passagens serão usadas indiretamente para apoiá-lo. Outro aspecto é a possível perda de profundidade na análise dos textos coletados para apoiar o tema, uma vez que ao lidar com vários textos o pregador tende a ser superficial na leitura e reflexão.

Há também a questão do material usado para construir alguns sermões indiretos. Alguns são construídos a partir de textos simbólicos cuja interpretação fica a critério do pregador. Sem a objetividade do texto, a mensagem estará se alicerçando em uma ideia secundária da passagem ou, na pior das hipóteses, na percepção subjetiva ou indireta do pregador, embora ele use algumas ideias bíblicas que imagina estar na passagem exposta. O sermão indireto ou secundário é um sermão com autoridade bíblica, porém, como se fundamenta numa implicação, e não em sua declaração principal e direta, tem autoridade reduzida.

Casual e combinado

O sermão casual desenvolve ideias não intencionais do autor bíblico, mas que o texto pode sugerir. Por não ser nem a ideia central nem uma implicação clara do texto, essa sugestão se constitui um sermão de menor autoridade bíblica. Normalmente é nesse tipo de sermão que há maior chance de se “forçar” o texto.

Aproveitamos a nomenclatura utilizada por Brown, para considerar que além do conceito básico, podemos adicionar que a autoridade da Bíblia é comprometida no sermão quando o pregador usa a Bíblia apenas para dar a impressão que vai pregá-la, enquanto seu discurso não está comprometido com a investigação da Escritura, mas com sua imaginação, acontecimentos do mente enquanto fala. É o jornal do dia com lições morais e espirituais, é a reflexão do pregador e sua performance que arrebata a plateia sem precisar se preocupar em pregar a partir da Bíblia. Esse tipo de sermão desbanca a Bíblia e coloca outras fontes de reflexão e a autoridade do próprio pregador no lugar dela. Às vezes, lê-se um ou outro texto bíblico avulso como reforço ao que o pregador diz, ou como maquiagem para “biblificar” o discurso. É o sermão dos pastores “ocupados”, que se sentem à vontade diante do público e precisam “dizer alguma coisa”, mas não conseguem construir o discurso estritamente a partir da Bíblia. Quanto ao sermão combinado, trata-se de uma mistura dos três tipos de sermão apresentados. Embora o belo e tocante combinem muito bem com a Palavra, Ellen White advertiu sobre a subjetividade presente nas interpretações das mensagens bonitas, porém fantasiosas.

“Pode o pastor pensar que com a sua eloquência fantasiosa fez grandes coisas na alimentação do rebanho de Deus; ou os ouvintes podem pensar que nunca dantes ouviram temas tão belos, que nunca viram a verdade revestida de linguagem tão bela, e como Deus lhes foi apresentado em Sua grandeza, sentiram um ardor de emoção. Mas examinem a causa para o efeito todo esse êxtase de sentimento causado por essas fantasiosas apresentações. Poderá haver verdades, mas demasiadas vezes elas não são o alimento que os fortalecerá para as lutas da vida diária.” [5]

Exegese e hermenêutica

Na recuperação da autoridade bíblica, a exegese e a hermenêutica são duas ferramentas importantes. Referem-se, respectivamente, à investigação e interpretação do texto e nos remetem a II Timóteo 2:15, entre outras passagens. Nesse verso Paulo se refere ao obreiro “que não tem do que se envergonhar” o qual maneja bem a Palavra da verdade. Aqui, o verbo manejar é o verbo grego ortotoméu, palavra composta de orto (certo, correto) e tomo (parte), e significa cortar certo, corretamente, um trabalho preciso de análise, evitando perversão e distorção do significado do texto.

O corte deve ser tão preciso no estudo da Palavra e depois no púlpito, que cada parte pregada conserve a coerência com o todo da Bíblia. Uma investigação sem desvios que conduz a uma interpretação correta. Nesse sentido, nada substitui a pesquisa contínua e reflexiva da Bíblia, pois a boca somente poderá falar (com conhecimento de causa) daquilo de que o coração está cheio (Lucas 6:45). Acreditamos que o pastor que prega bem a Bíblia não somente pela sua oratória, mas pelo alinhamento correto com o sentido do texto, é aquele que “tem os olhos cansados” pelo estudo e o coração repleto de conhecimento útil da Palavra.

Esse “bom manejo” comporta a investigação (exegese) e a interpretação (hermenêutica) que aprofundam o conhecimento e produzem uma mensagem que enriquece a adoração, cujo ponto alto é o encontro pessoal com Jesus em Sua Palavra. No culto, Cristo, o Redentor, aparece falando na linguagem de hoje a Sua mensagem. Essa é a Palavra da Verdade que nenhum pregador capaz e honesto deve jamais alterar, pois isso seria modificar ou caricaturar o próprio Jesus, a Palavra viva, apresentando-O desfigurado àqueles que foram à Sua casa para encontrá-Lo, contemplá-Lo e segui-Lo de acordo com a pregação da Escritura. Portanto, a superficialidade ou desvirtuamento da Bíblia na pregação é uma ofensa direta a Jesus e, em alguns casos, é a falência do ponto alto do culto cristão que acontece no sermão.

Compromisso com a verdade

Os erros relativos à pregação no que se refere à autoridade bíblica, geralmente são mais comuns em sermões promocionais nos quais a Palavra é omitida, ou quando o pregador carece de tempo ou habilidade exegética e hermenêutica. Entender o que o texto diz no seu contexto original e para os leitores e ouvintes de hoje é um constante desafio para os pregadores responsáveis e eticamente comprometidos com o evangelho.

Tais pregadores não venderão seu compromisso com a verdade para surfar a onda do evangelho do lucro, ou por falta de plano de estudo da Bíblia e treino homilético, apresentar alimento pobre e destituído de poder às pessoas que a cada culto vão à igreja para ver Jesus, a Palavra Viva. Certamente, a pregação pode ser avaliada por diferentes critérios. Sejam relativos ao desempenho do pregador, aos resultados medidos pela reação dos ouvintes ou o estilo daquele que prega. No entanto, o primeiro compromisso do pregador, sem desconsiderar outros aspectos, é com a Palavra. Esse compromisso é medido pela autoridade bíblica do sermão que, infelizmente, vem sendo negligenciada, ou devido ao pouco tempo dedicado ao estudo e comunhão espiritual ou devido à incapacidade exegética e hermenêutica do pregador. A crise de autoridade representada pela crescente ocorrência de sermões casuais e alegóricos e o decrescente contato com sermões bíblicos diretos indica uma astenia homilética com repercussões na qualidade da adoração. Para que o culto seja edificante e salvífico, Jesus precisa estar presente em cada momento da liturgia e, certamente, aí se encontra a razão de tanto a Bíblia quanto Ellen White, além do bom senso e os especialistas, apelarem para que os pregadores reflitam e atendam à orientação para que se “pregue a Palavra”.


Referências:

  1. Ellen G. White, Evangelismo, p. 189. (voltar)
  2. Farie D. Whitesell, Power in Expository Preaching (Old Tappan, NJ: 1963). (voltar)
  3. H. C. Brown Jr., A Quest of Reformation in Preaching (Nashville, TE: Broadman, 1968), p. 35. (voltar)
  4. __________, Sermon: Analysis for Pulpit Power (Nashville, TE: Broadman, 1971). (voltar)
  5. Ellen G. White, Ibid., p. 182. (voltar)

Demóstenes Neves da Silva é professor na Faculdade Adventista de Teologia do Iaene, Cachoeira, BA


Fonte: Revista Ministério, julho/agosto 2013, pp. 25-27


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