Identidade Ameaçada

Entrvista com Jetro Meira de Oliveira


Entrevista concedida a Wendel Lima, da Revista Kerigma

Jetro Meira de Oliveira é doutor em Regência e Literatura pela University of Illinois, EUA. É professor de regência e história da música no Centro Universitário Adventista de São Paulo, Campus Engenheiro Coelho. Além de atuar como palestrante em congressos e workshops, desenvolve pesquisa na área de música do Brasil colonial e coordenada o grupo de pesquisa “Educação Musical Através do Canto Coral”. É diretor musical e regente do coro de câmara Officina Vocalis e da Orquestra Filarmônica Adventista do Brasil. Além disso, participa como membro da Associação Paulista de Regentes de Coros e da Sociedade Brasileira de Musicologia. No último mês de setembro, palestrou no VIII Simpósio da Memória Adventista no Brasil, no qual discorreu sobre a história dos hinários adventistas no país. Nesta entrevista, o professor Jetro de Oliveira fala sobre a história, filosofia e identidade da música adventista brasileira.

Kerygma – O senhor fez uma pesquisa sobre a história dos hinários adventistas brasileiros. Explique, resumidamente, quais são as principais características de cada um deles.

Dr. Jetro Meira de Oliveira – É impossível “resumir” este tipo de informação, mas posso destacar que o estudo que fiz sobre os hinários usados pela Igreja no Brasil, revela que a mesma sempre teve muito interesse no canto congregacional. Isto fica bem claro pela quantidade de materiais produzidos ao longo dos anos. Outro ponto importante, que pode ser observado nas cronologias dos vários tipos de hinário, é o crescente desejo de aperfeiçoamento dos mesmos, seja quanto às regras da língua portuguesa, apresentação visual ou à acessibilidade dos hinos. Apenas para citar alguns itens.

Kerygma – O Hinário Adventista do Sétimo Dia (HASD), lançado em 1996, trouxe como uma das novidades a inserção de hinos e corinhos que se popularizaram entre os jovens. Como explicar essa nova postura da Igreja em relação às composições contemporâneas?

Dr. Jetro – Um dos principais objetivos do hinário lançado em 1996 era de que fosse usado por todas as faixas etárias e em todas as reuniões da Igreja. Por isso, pensou-se em cânticos para as crianças, jovens e adultos cantarem nos cultos divino, jovem, de oração, e na escola sabatina. Neste hinário, temos um leque mais amplo de assuntos e tipos de hinos. A inclusão de músicas de autores contemporâneos, quer sejam adventistas ou não, segue a tendência da igreja protestante em todo o mundo, de incluir hinos contemporâneos em seus hinários. É importante destacar que a maioria das músicas utilizadas nos hinários protestantes é do século XIX para trás. Ademais, somente no final do século XX é que autores contemporâneos começaram a aparecer nos hinários protestantes, mesmo nos EUA, onde compositores como Bill Gaither, André Crouch, Ralph Carmichael, popularizam-se. No caso específico da Igreja Adventista no Brasil, a inclusão de hinos ou corinhos de autores brasileiros adventistas é apenas um reconhecimento e conseqüência natural do trabalho desenvolvido, há muito tempo, por nossos compositores. Este é um ponto muito importante em relação ao desenvolvimento de uma identidade doutrinária dos hinos. Aproveito esta oportunidade para incentivar aos nossos compositores e letristas a escreverem músicas que falem das doutrinas adventistas. Por melhores que sejam os hinos de Lutero e Wesley, estes não receberam a luz de compreensão doutrinária que fomos privilegiados em receber. Desta maneira, creio ser imperativo a composição de hinos que falem da cosmovisão adventista.

Kerygma – O que fazer para revitalizar o canto congregacional?

Dr. Jetro – Poderia citar uma lista de “dicas” práticas, no entanto, concentrarei meu pensamento na necessidade de renovarmos nosso espírito de louvor e adoração à Deus. Creio que, como Igreja brasileira, temos focado muito de nosso interesse musical na estética. Assim sendo, com o passar do tempo nos “enfadamos” de cantar os hinos, ou simplesmente achamos que chegou a hora de mudar o repertório. Ao contrário disso, se focarmos nossas atenções no aspecto espiritual da adoração, descobriremos que o significado das mensagens contidas nos hinos é muito, mas muito mais importante do que nosso gosto pelo belo. Muitos de nós se sentam nos bancos das igrejas a cada sábado “esperando” receber algo, enquanto que o culto de louvor e adoração à Deus deveria ser uma ação de nossa gratidão por tudo que Ele nos tem feito. Isto muda por completo nossas expectativas com relação ao culto. Se tenho a expectativa de que o culto deve ser centrado nas minhas necessidades, naturalmente ficarei desapontado se hinos ali cantados não forem do meu gosto. Mas, se reconheço que estou na igreja para render preito de gratidão a Deus, então começarei a pensar no que Ele gostaria de receber de mim como louvor pela salvação em Cristo Jesus. Isto faz toda a diferença.

Kerygma – Quais são os princípios teológicos e musicais para a escolha da música de adoração na igreja?

Dr. Jetro – É muito triste quando vemos tantos divagarem sobre este assunto, colocando suas opiniões pessoais acima da revelação bíblica. Muitos dizem que não há princípio bíblico que se aplique a música. Discordo disso e gostaria de destacar dois conselhos de Paulo: “Quanto ao mais, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se há alguma virtude, e se há algum louvor, nisso pensai” (Filipenses 4:8). Paulo nos oferece seis critérios para avaliarmos a “nossa música”. Temos nós buscado passá-la por este teste? Ou, estamos nós dispostos a seguir este conselho? “Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convêm. Todas as coisas me são lícitas; mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas (I Coríntios 6: 12).”

Kerygma – Lutero ficou conhecido por utilizar letras religiosas em melodias populares de sua época. Esse é um dos grandes argumentos dos que defendem a mescla de estilos seculares com letras sacras. O senhor acredita que esse pressuposto está correto?

Dr. Jetro – Este é um assunto que mereceria por si só um espaço mais amplo. Mas tentarei esclarecer alguns pontos, que geralmente, são apresentados de forma fragmentada. Em primeiro lugar faço a seguinte pergunta: quantos exemplos de hinos de Lutero você conhece no qual este poeta, músico e teólogo fez este “arranjo” de paródias? Aí está o verdadeiro problema. A grande maioria dos que utilizam este pressuposto para justificar suas ações na Igreja hoje, o fazem em total estado de ignorância. O que sabemos de concreto sobre Lutero é que escreveu 37 hinos (chorales luteranos), melodias, das quais:

  • 15 destas melodias são composições originais de Lutero;
  • 13 melodias vêm de músicas em latim (liturgia em latim);
  • 4 melodias de canções alemãs de folclore religioso, os chamados cânticos espirituais;
  • 2 melodias de canções religiosas de peregrinação, algum tipo de romaria;
  • 2 melodias de origem desconhecida;
  • 1 melodia de canção folclórica secular.

Como podemos ver, apenas uma única melodia dos 37 hinos de Lutero é de origem secular. Um único exemplo em 37 não pode ser considerado “regra” para afirmarmos que Lutero simplesmente pegava melodias populares da época, e substituía suas letras seculares por religiosas. Além disso, há o agravante de que Lutero não pegou simplesmente esta melodia de música secular e a transplantou para a igreja. Observamos que Lutero modificou a estrutura rítmica da melodia. É como se ele tivesse “desritmado” esta melodia, dando-lhe um caráter diferente do original.

Kerygma – Até que ponto a música sacra tem que se acomodar a uma cultura específica?

Dr. Jetro – Entendo que este é um ponto que tem gerado discussões animosas. Sugiro uma resposta com a seguinte pergunta: “o que é mais importante, ser cristão ou brasileiro?” Muitos têm falado da importância de se respeitar a cultura local quando estamos evangelizando. Creio que esta preocupação é legítima e não deve ser ignorada. No entanto, compreendo e aceito que a minha identidade cultural humana, seja lá qual for, africana, européia ou latina, não deve e não pode estar acima de minha identidade com a “cultura” de Cristo. Creio que a polêmica nesta área se dá em grande parte, por alguns crerem que exista uma “cultura humana” que seja espiritualmente superior a outras. Por exemplo, a cultura européia ocidental como sendo superior à cultura africana. Até que existem alguns argumentos interessantes nesta direção. É possível articular o pensamento de que foi a própria vontade de Deus que fez da cultura européia ocidental o veículo para o nascimento e desenvolvimento da igreja cristã. Com este pensamento, alguns podem deduzir que se a cultura européia ocidental é “essencialmente” cristã, então, esta é superior a todas outras “essencialmente” pagãs, como as africanas e asiáticas. Pode até parecer lógico e racional, mas este pressuposto tem sido usado através da história para justificar todo o tipo de abominações, das Cruzadas ao Terceiro Reich de Hitler. Infelizmente, tal pressuposto tem sido também usado na música. Os principais movimentos de evangelismo protestante no Terceiro Mundo, durante o século XX, foram em grande parte marcados por certo “imperialismo” cultural religioso. Idéias carregadas de preconceito, como branco é “bom” e negro é “mau,” e ilustrações de um Jesus branco, loiro e de olhos azuis, seguramente contribuíram negativamente neste aspecto. Ao chegarmos às últimas décadas do século passado, houve um despertar, mesmo que tardio, para este tipo de comportamento, tanto por parte dos evangelizadores, como dos evangelizados. Assim, tivemos o movimento do pêndulo para o outro extremo, aceitando tudo que a cultura local possui. Ambos os extremos são errados, e o ponto de equilíbrio entre estes extremos é apenas temporal. Explico melhor. O grande objetivo da salvação é uma contínua revelação de quem Jesus Cristo é. Isto quer dizer que quanto mais conhecemos Jesus como Salvador pessoal, mais desejamos ser como Ele é. Mais desejamos aquilo que Ele deseja. Isto é essencialmente uma “identidade cultural”. Chamo isto de “cultura espiritual”, uma cultura que vai muito além da dimensão da existência humana presente. Durante TODA a eternidade os salvos em Cristo Jesus estarão desenvolvendo esta cultura espiritual. Concluo, reiterando que nosso compromisso com Cristo Jesus precisa estar acima do compromisso com nossa identidade cultural humana. Se isso não acontece na minha música sacra, então posso dizer que ela tem muito a melhorar.

Kerygma – O documento sobre Filosofia da Música de 1972 recomendava que os adventistas não escutassem estilos como blues, jazz e rock. Quais critérios que os cristãos devem usar para ouvir uma música secular? Existem estilos intrinsecamente maus?

Dr. Jetro – Como já disse anteriormente, a Igreja Adventista, no Brasil e no mundo, tende a colocar o foco na estética musical. Quando falamos de blues, jazz, rock, samba ou qualquer outro gênero musical, estamos em linhas gerais falando dos elementos estéticos que caracterizam cada um desses estilos. Neste sentido, não existe uma estética sacra e outra secular, assim como não existe uma língua portuguesa sacra e outra secular. O mais importante não é a discussão de estética, apesar de esta ser de grande importância, mas sim uma compreensão do significado das manifestações musicais. Vou tentar explicar melhor. Não basta saber ler português para se entender o significado de um poema ou poesia. É necessário um sentido de reflexão que envolve contextualização, análise e interpretação. Se é assim com a literatura, imagine só como é então com a música, que é uma manifestação artística muito mais temporal do que a literatura. Talvez influenciados pela cultura do “fast-tudo”, muitos crêem que a música da Igreja deve ser sempre de fácil e rápida apreensão, fechando assim, a possibilidade dela tratar de assuntos mais profundos, que necessitam de reflexão para uma melhor compreensão de seu significado. Assim também deve ser com o nosso uso da música secular que nos rodeia. Não adianta simplesmente ponderarmos sobre a estética musical, porque sempre encontraremos exceções. Mas se focarmos no significado das manifestações musicais, teremos alguma chance de fazer melhor distinção entre o que devemos ou não ouvir.

Kerygma – O senhor acredita que a música adventista brasileira tem uma identidade? Qual?

Dr. Jetro – Diria que sim, no sentido de que certos padrões estéticos podem ser observados em grande parte das composições e arranjos feitos por nossos músicos. A música evangélica/gospel brasileira tem se manifestado como um paralelo religioso das várias vertentes de música brasileira secular. A música adventista não tem sido muito diferente disso. No entanto, destacaria que há sim uma distinção entre a música adventista brasileira e a música dos evangélicos em geral, e esta seria o esmero de nossos músicos em suas produções. Como exemplo, cito o uso de arranjos com orquestra. Desde os primeiros “LPs” produzidos por brasileiros adventistas, podemos observar a predileção pelo uso de arranjos com orquestra. Isto pode parecer apenas um detalhe, mas creio que é um importante elemento de identidade estética.

Provavelmente, ainda não respondi a esta pergunta da maneira como você esperava. Há sim uma forte influência estética das várias vertentes de MPB na música adventista nacional. Creio que, infelizmente para alguns, isto tem sido mais importante do que a identidade de Cristo. Não desejo fazer nenhum trabalho de apologia, e espero que ninguém distorça o que vou dizer a seguir. Creio que este “namoro” da música adventista brasileira com a MPB é um importante passo para a música sacra em português. Um importante passo, mas não um fim. Como maestro, sempre me perguntei a razão de não haver um repertório sacro em português como o que existe em inglês ou alemão. Isto é fácil de entender. A colonização do Brasil foi católica, e por tanto, a música sacra foi até o início do século XX quase que exclusivamente em latim. Foi na música secular que nossa língua nacional recebeu atenção no passado e recebe até hoje, muito mais do que na música sacra. Musicar o português não é tarefa simples. Creio ser esta a grande lição que podemos tirar da MPB: como musicar o português, trazendo para a música o significado do texto. Um dos maiores erros que podemos cometer em nossa jornada espiritual é ficar acomodados pensando que já atingimos a plenitude da graça de Cristo Jesus. Assim como tudo na vida, na música também ainda temos muito, mas muito o que ainda descobrir e aprender. Meu sincero desejo e oração é que permitamos que Deus continue nos revelando Sua santa vontade para tudo em nossa vida, incluindo a nossa música sacra.

Kerygma – É saudável a Igreja promover debates sobre a filosofia da música?

Dr. Jetro – Sim. Mas destaco que deveríamos aprender a discutir ideias, e não pessoas. Talvez seria melhor chamar isto de “diálogo”, e não de “debate”. Há muito o que estudarmos sobre a música, e sobre o seu uso a serviço do Mestre Jesus. Não podemos nos esquivar da grande responsabilidade de nos aprofundar neste assunto. Isto exige, naturalmente, um esforço pessoal para ler, estudar, meditar, orar, trocar ideias, e acima de tudo, estar disposto a descobrir que uma determinada ideia que parecia tão correta, pode em verdade, estar completamente errada.


Fonte: http://www.unasp.edu.br