Em Sintonia com a Música do Céu

Entrevista com o Pr. Jael Enéas


O pastor Jael Enéas defende o canto congregacional, a busca de novos talentos e a organização de um eficiente ministério de música na igreja local. Nascido em Santo André, SP, no dia 22 de fevereiro de 1954, pertence à terceira geração de adventistas de sua família. Seu avô Manoel Enéas foi um dos pioneiros da antiga fazenda do IAE, entre os anos de 1939 e 1953. É o primeiro dos filhos do casal Joel Enéas de Araújo e Santina Quintino de Araújo. Sua mãe, hoje obreira aposentada pela CPB, foi quem estimulou seus primeiros passos na música.

Compositor de vários hinos e canções evangélicas, obteve uma eclética educação musical, sendo aluno de Magdalena Tagliaferro (Masp-SP), do Maestro Federowiski (Funarte) e dos maestros Flavio Araújo Garcia e Willians Costa Junior (IAE). Em festivais internacionais, aperfeiçoou-se com Christofer Bockmann (Harmonia), Frank Forgione (Regência de Banda), Diogo Pacheco e João Faustini (Regência Coral).

Tendo formação teológica pelo IAE, pianista pelo IMSP e, posteriormente, Arte-Educador pela Universidade do Amazonas, atuou como secretário Executivo da ACARTE no IAE (1979-1981) e diretor do Conservatório do ENA e professor de música sacra para o SALT/SNB (1981-1984).

Casado com a professora Lusmar Duarte, tem três filhas: Marjorie Caroline, Meire Ellen e Evelyn Karen.

Foi em sua residência em São Luis, MA, que concedeu esta entrevista a Elizeu C. Lira, para a Revista Adventista.


Revista Adventista: O senhor estuda música desde os 8 anos de idade. Como é que foi esse início?

Jael Enéas: A minha mãe era obreira da CPB e morávamos perto da “Chácara dos Alemães”, como era conhecida a CASA Publicadora Brasileira [editora da literatura Adventista do Sétimo Dia]. Certo dia, enquanto limpava as janelas, ela me fez uma pergunta à queima-roupa: “Meu filho, você quer aprender violino ou piano?” Olhei para os chorões e roseiras bem cultivadas, à entrada principal da instituição, e respondi-lhe: “Piano, mamãe”.

A partir daí, surgiu um relacionamento de amor com a música e um caminho sem retorno.

Revista Adventista: Como vê o panorama nacional, em termos de música praticada em nossas igrejas?

Jael Enéas: A música sacra em nossas igrejas esta refletindo a época em que vivemos. Muitos de nossos conjuntos buscam uma música inovadora, experimental, tentando alcançar uma parcela expressiva de pessoas não-adventistas. Hoje, estamos passando por este processo de transição, onde alguns estão buscando uma forma de expressão que possa refletir mais o momento e outros uma forma que reflita mais a tradição da Igreja. Mas sinto que ambos buscam o melhor, buscam o testemunho e a adoração a Deus.

Revista Adventista: Quais devem ser os parâmetros para nortear os rumos tomados?

Jael Enéas: A bíblia não traça os dez mandamentos para a música dentro da Igreja. Mas, analisando desde o Gênesis até o Apocalipse, vemos que ela traz alguns indícios, alguns pilares, que podemos chamar de diretrizes básicas, por onde a música na Igreja deve se pautar. Paulo, escrevendo aos colossenses e efésios, diz que devemos crescer, admoestando-nos com salmos, hinos e cânticos espirituais. Então temos varias formas de expressão: salmos – aqueles que já conhecemos – e duas outras formas diferentes que são: hinos e cânticos espirituais.

Revista Adventista: Que diferenças seriam essas?

Jael Enéas: O hino se reporta a Deus, magnifica a Deus. Nele inexiste o pronome eu. Minimizar o homem e glorificar a Deus como Criador, redentor e mantenedor da vida, esta é a tônica do hino. Ele nos eleva para a glória divina, exalta as virtudes de Deus. Um aspecto fundamental no bom hino, é que ele reflete vida e vigor.

Revista Adventista: Quais seriam os critérios para a escolha de música adequada ao louvor e adoração?

Jael Enéas: Primeiramente, precisamos sentir o conceito de culto. Por que louvar a Deus? O culto é entrega, renovação, transformação, sacrifício. Então a música no culto de adoração e louvor deve ter uma função específica: levar a mente dos adoradores a essa postura. A atmosfera do Céu é de louvor e esse louvor é todo dirigido a Deus. A música, de uma forma geral, empregada no culto deve estar relacionada ao caráter de Deus, a uma macrovisão de Deus.

Revista Adventista: Nesse contexto de adoração, objetivando essa postura ideal, qual é o papel e os efeitos do canto congregacional?

Jael Enéas: As pessoas chegam à igreja com suas experiências semanais, suas alegrias e frustrações. As mentes estão dispersas; algumas chegam carregando ossos secos de suas provações diárias. É possível que haja um casal de namorados numa situação de relacionamento inadequado, outros que tiveram atritos no caminho para a igreja, e outros pensando nos problemas e negócios da família… Então, a música do culto tem que ter o papel de unificar. Isso ocorre através do canto congregacional. Ele une, aproxima os adoradores, direciona e “funde” as experiências individuais e reaviva as emoções.

Revista Adventista: O que pode ser feito para implementar a música nas pequenas e médias igrejas, tendo em vista a falta de instrumentos?

Jael Enéas: Primeiro precisamos conscientizar os membros da importância da música na testificação e no crescimento espiritual da igreja e do lar. A outra sugestão é fortalecer o canto congregacional nas igrejas. Os membros precisam voltar a cantar os tradicionais hinos de nossa fé; o Hinário é uma segunda Bíblia e deve ser visto como tal.

O passo seguinte é organizar esse ministério na igreja local, com uma comissão, de três a cinco pessoas, e uma pessoa responsável para orientar a música. Esse ministério passa a ensinar novos hinos à congregação, deve verificar o aparelho de som, orientar quanto ao seu uso correto e verificar se os membros possuem hinários, incentivando-os a adquiri-los.

Revista Adventista: Como estabelecer condições para o surgimento de novos talentos musicais?

Jael Enéas: O surgimento de novos talentos está intimamente ligado com oportunidades. Os jovens precisam de novas oportunidades, a Igreja precisa estabelecê-las. Ela deve colocar os novos talentos na sua escala de música e pensar num pequeno percentual das suas entradas para apoiá-los financeiramente. A igreja local deve ter a visão de levar seus novos talentos para os cursos de verão e simpósios de música realizados em nossas instituições.

Revista Adventista: Que aspectos ressaltaria concernente à preparação da música e dos músicos para o culto de adoração?

Jael Enéas: A música deve ser bem preparada e bem selecionada em termos de letra e melodia. Os músicos devem se preparar para a adoração assim como o pastor toma tempo para o sermão. O mesmo vale para o coral, os conjuntos e solistas. Todos esses devem estar consciente de que antecipam a atmosfera de louvor e estabelecem a condição ideal para que os adoradores possam responder positivamente aos apelos do Espírito Santo, através da exposição da Palavra de Deus.

Essa visão dos músicos é muito importante porque a música sacra é funcional; ela cumpre um papel especifico. A arte pela arte tem o seu lugar, mas nesse caso, é arte em função do culto; o objetivo naquele momento é levar os adoradores a terem uma visão, pela fé, da presença de Deus.

Revista Adventista: Há pessoas que dizem que, em se tratando de hinos sacros, não existe essa música profana; é só uma questão de música “boa” ou “má”. Como vê essa questão?

Jael Enéas: Creio que todas as músicas, todas as formas de expressão e louvor, têm que estar embasadas no princípio de que nós, como cristãos justificados por Cristo, temos uma ética diferente de vida. Essa ética de vida deve nos levar a pensar, a falar, a proceder e a cantar em conformidade com o nosso estagio de preparação para a Nova Terra.

Essa é a coluna vertebral, a escala e prumo que deve pautar a escolha da música, inclusive da música de entretenimento, porque há música que usamos na igreja, há música que usamos no lar e há música para se ouvir num acampamento ou viajando. No entanto, mesmo essa última, que usamos no carro ao estar viajando ou andando pela cidade, deve estar respaldada no princípio desse novo estilo de vida.

Revista Adventista: É possível compatibilizar o moderno com a nossa filosofia em termos de música?

Jael Enéas: Os princípios filosóficos que regem o ministério de música em nossa Igreja, são definidos e imutáveis: glorificar a Deus, enobrecer e elevar os pensamentos do cristão, influenciando-o positivamente, visando a desenvolver nele o caráter de Cristo.

Dessa forma, a música deve servir a comunidade na qual está inserida. As pessoas devem ser abençoadas pelo ministério da música. Se a música que vou usar para essa comunidade gera conflito, devo ter o equilíbrio e humildade para fazer as correções e adaptações necessárias.

Como líder da área de música, não devo ver a música pela música, ou relacioná-la simplesmente pelo meu gosto pessoal, como aquele que está regendo o coral ou tocando piano. Meu gosto pessoal deve ser anulado em função da grandiosidade do papel da música, que é levar as pessoas para mais perto de Deus. Nessa posição, estando consciente dessa enorme responsabilidade, é possível compatibilizar o moderno com a nossa filosofia. Isso só ocorre quando o princípio básico – coerência – é devidamente observado.

Revista Adventista: Tem havido algum excesso nessa área?

Jael Enéas: Isso é algo que precisamos analisar com muito cuidado e equilíbrio. Todas as vezes que a música me leva a uma associação com aquilo que não exalta a Deus, que não esta em coerência com o meu novo estilo de vida, em função da minha condição como cristão justificado por Cristo, eu devo refutar. Uma coisa importante é analisarmos alguns elementos, como harmonia e ritmo. Eles devem estar afinados com aquilo que professamos.

Revista Adventista: A “febre” dos conjuntos não estaria pondo fim a outros gêneros musicais em nossas igrejas?

Jael Enéas: O ministério da música deve atender a todas as necessidades da igreja. Há lugar para conjuntos, corais, trios, duetos e instrumentais. O importante é que os conjuntos não se sintam reis, mas sim, contribuidores do ministério local.

Eles fazem muito, têm feito grandes coisas, mas precisam estar em sintonia com o ministério de música de suas igrejas locais. Outra coisa: Devemos ter o cuidado de não criar uma hegemonia em torno de determinados conjuntos-chave; devemos dar oportunidade a outras formas de expressão musical dentro de nossas igrejas.

Revista Adventista: Que orientações daria aos lideres de música?

Jael Enéas: Compartilharia as seguintes orientações: 1º) para termos êxito e sermos abençoados por Deus nessa carreira, é preciso manter um relacionamento pessoal e uma consagração e dedicação exclusiva a Deus. A música é muito importante e Satanás tem todo interesse em sabotá-la. 2º) O ministério da música na igreja não deve ser divisor de águas ou pomo de discórdia, mas uma bênção como um todo. Seja companheiro daqueles que estão envolvidos nesse ministério.

Revista Adventista: Que conselhos daria para os cantores e instrumentistas?

Jael Enéas: A todos diria que precisamos ter bastante equilíbrio e humildade, para reconhecer que trabalhamos com uma linguagem que mexe com as emoções. Aos instrumentistas: Deve haver planejamento, não escolham os hinos de última hora. O instrumentista tem que estar na plataforma, saber os hinos que vão ser cantados. Aos cantores, diria: Evitem chamarem a atenção para si, mas busquem uma consagração a Deus para que a mensagem seja o ponto principal. Deve haver uma interação entre a mensagem cantada e a vida pessoal; que a música seja um reflexo da vida, que ao estarmos cantando esse seja o hino do coração, fruto de nossa experiência com Cristo!

Revista Adventista: O que diria aos seus colegas compositores?

Jael Enéas: Aqueles que escrevem música ou textos devem beber de fonte pura. Devemos ouvir boas e excelentes composições. Devemos evitar ouvir o secular, o banal, porque escrevemos e compomos como fruto daquilo que está interiorizado no coração e na mente. A produção de texto ou de músicas tem poder na proporção e medida em que eles refletem o relacionamento que temos com Deus e favorecem o testemunho. Finalmente, afirmo que é possível estar afinado com nosso tempo sem, contudo, romper com os princípios.

Revista Adventista: Há alguma experiência inesquecível?

Jael Enéas: Sim, há. Em maio de 1987 fui fazer uma visita aos índios adventistas nas aldeias de Bananal e Sorocaima. Fui acompanhado do Pastor Gilberto Oliveira, então líder do J.A. do Campo, e do distrital de Boa Vista, em Roraima.

Ao chegar, fomos conduzidos ao centro da aldeia e, em taorepan (dialeto indígena da região), ouvimos um cântico pelos juvenis. Mas o inesquecível foi ver o coral congregacional da comunidade indígena. Em uníssono, eles cantavam o hino “Há um Lar Perenal e Feliz”, acompanhados por um velho acordeão. Adventistas e não-adventistas cantavam com convicção. A letra era ininteligível, mas não a música. Através dela nossos corações se uniam em fé e esperança, enquanto a massa sonora se perdia na imensidão da floresta. A barreira idiomática fora quebrada pelo poder do canto congregacional.

A congregação é o mais importante coral da igreja. Precisamos, como igreja, voltar a cantar os tradicionais hinos de nossa fé. Foi assim que a igreja neo-testamentária venceu, e será assim que os salvos se aproximarão do trono de Deus.


Fonte: Revista Adventista, Setembro, 1992, pp.5-7.