Em Busca de uma Teologia da Estética

por: Rolando de Nassáu

Ainda por intermédio da internet, tomamos conhecimento de um outro texto do teólogo Luiz Sayão, “Em busca de uma teologia da estética!”, veiculado em agosto de 2007 por uma fonte desconhecida.

O articulista, em seqüência, escreveu sobre a relação entre fé e arte na igreja cristã primitiva, a proibição divina da confecção de esculturas e imagens, o Canto Gregoriano e a música instrumental (na Igreja Católica e nas igrejas reformadas), a construção de templos evangélicos no Brasil, as artes na Bíblia e na sociedade contemporânea, os ritmos populares nas igrejas e as artes no Apocalipse.

Surpreendentemente, as suas ideias são parcas – apenas 81 linhas – e superficiais.

Na teologia do culto, cabe o estudo das condições e dos efeitos da criação artística, sob o ponto de vista teológico; essa teologia subordina a Arte ao Culto (ver: Roberto Torres Hollanda, Culto – Celebração e Devoção. Rio de Janeiro:JUERP: 2007).

Luiz Sayão, às cegas na busca de uma teologia da estética, acaba por subordinar o Culto à Arte.

As dificuldades do cristão no fazer e apreciar as artes não são apenas éticas ou estéticas, mas também teológicas.

Em atenção aos nossos leitores, comentaremos a evolução das manifestações artísticas na Igreja Católica, antes da Reforma Protestante.

Na literatura e nos cânticos, contidos nos livros do Antigo Testamento, os novos cristãos encontraram as primeiras manifestações para seu deleite.

O imperador César Augusto Otaviano (63 a.C.-14 d.C) cresceu sob a influência grega; no tempo de Jesus, Roma tinha-se tornado uma cidade de cultura helenística.

Dos séculos I a IV, houve improvisação na realização dos cultos. No culto do século I, o elemento artístico estava subordinado ao espiritual. No século II, alguns líderes achavam que os instrumentos musicais distraíam a congregação.

A partir do século III, somente a voz humana, sem acompanhamento instrumental, era considerada apropriada. Os instrumentos foram afastados do culto devido à clandestinidade das congregações ou à idolatria das comunidades (ver: Hollanda, op. cit., pp. 118-119).

No século IV, as igrejas passaram a cantar em latim; a salmodia implicou a necessidade de um coro de elite (“Schola Cantorum”), criado por Silvestre I (bispo de Roma, 314-335), com a incumbência de compor e executar o canto litúrgico.

A atitude típica dos primeiros cristãos foi a rejeição da cultura mundana, com base na primeira epístola de João (2:15). Essa atitude foi endossada pelo teólogo Tertuliano (155-222), que apresentava o Cristianismo como uma maneira de viver completamente separada da cultura, pois é especialmente na cultura que o pecado reside; Tertuliano via a mancha da corrupção atingir as artes (ver: Richard Niebuhr, Cristo e Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967).

As artes plásticas foram inicialmente apreciadas na igreja cristã primitiva entre os séculos III e VII.

Antes do Edito de Milão (313 A.D.), as artes plásticas restringiam-se à decoração dos lugares de culto. A maioria dos artistas trabalhava usando modelos derivados da arte romana. A iconografia destinava-se a visualizar conceitos cristãos. Supomos que os primeiros cristãos não viam essa arte como maneira de expressar a beleza (estética), mas de transmitir sua fé (teologia). Possivelmente escolheram rejeitar os ideais da perfeição técnica; procuraram apresentar imagens que poderiam atrair os espectadores pelo significado espiritual de suas obras.

A partir do Edito de Milão, o culto cristão poderia ser realizado em edifícios abertos ao público. Sob o patrocínio do Império Romano, floresceu a arquitetura da igreja. Os edifícios eram de dois tipos: basílicas e catedrais (ver: Hollanda, op. cit., pp. 178-183). O culto tornou-se mais formal e solene. O exterior dos edifícios era simples, mas o interior era ricamente decorado com piso de mármore, mosaicos, reposteiros e as guarnições do altar eram de ouro e prata. Eram raras as esculturas verticais, mas havia muitos baixos-relevos em mármore e pórfiro.

Os manuscritos usados no culto recebiam iluminuras.

As formas artísticas penetraram na Igreja durante o período de criação dos formulários litúrgicos (meados do século IV até fins do século VII); as igrejas de Roma, Antioquia e Alexandria estavam criando suas liturgias próprias.

Antes do início da Idade Média, cerca do ano 476 A.D., o elemento artístico no culto triunfou sobre o espiritual.

O desenvolvimento tecnológico da gravura propiciou, no rito bizantino, o surgimento do culto das imagens. Entretanto, no século VIII, lideres da igreja oriental, inspirados pelas proibições judaicas e islâmicas, fizeram objeções ao uso de imagens religiosas; foram consideradas formas de idolatria. Essas ideias foram adotadas como doutrina pelo imperador bizantino Leão III (680-741). Isto levou à destruição de obras de arte, ataque a templos, massacre de monges.

O bispo Gregório III (731-741) excomungou os que se opunham às imagens (ver: Hollanda, op. cit., pp. 48-49). A imaginária transportou-se de Bizâncio para Roma. A igreja católica ocidental acabou por aceitar as imagens; a exclusão sistemática seria contrária à Tradição …

A missa tornou-se “o supremo triunfo da Arte sobre o Culto” … A missa é um drama religioso (teatro) em sua forma artística mais altamente desenvolvida” (ver: Andrew Blackwood, The Fine Art of Public Worship. New York-Nashville: Abingdon Press, 1939-1950).

Na Idade Média (séculos V-XIII) a Igreja Católica fortaleceu o sacerdotalismo e prestigiou o sacramentalismo, além de começar a prática do canto litúrgico; Gregório I (540-604) organizou os textos e as melodias litúrgicas. O coro eclesiástico apresentava cânticos cada vez mais artísticos (ver: Hollanda, op. cit., pp. 110-112). Enquanto as práticas litúrgicas eram gradualmente codificadas, a liturgia romana necessitou de livros (ricamente decorados) para as orações, o canto e as leituras bíblicas selecionadas, de vasos para a hóstia e o vinho (pátena e

cálice), de cruzes para o altar e as procissões, de incensários e veladores, e de muitos outros objetos litúrgicos (ver: Hollanda, op. cit., pp. 60-67).

Justiniano I (482-565), imperador bizantino que promoveu grande desenvolvimento artístico (templos de Ravena e Constantinopla), escreveu que na “Hagia Sophia” havia centenas de vasos e guarnições, feitos de ouro puro, com pérolas e pedras preciosas incrustadas.

Contrariando a posição teológica de Tertuliano, o filósofo francês Pedro Abelardo (1079-1142), com sua doutrina do conceptualismo (o conceito tem uma realidade diferente da palavra que o expressa), facilitou o emprego cada vez maior dos vários gêneros artísticos no templo e no culto.

Durante a Idade Média, a dança era praticada nas igrejas de língua

grega e de língua latina.

Francisco de Assis (1182-1226) pregou a pobreza, num tempo em que a hierarquia eclesiástica (papa Inocêncio III, 1160-1216) vivia na riqueza material e no esplendor artístico, e a simplicidade, quando a liturgia asfixiava o sentimento religioso do povo.

Tomás de Aquino (1225-1274) fez a síntese teológica entre os pensamentos humanista (razão) e cristão (fé), entre o Humanismo e o Cristianismo. Não por acaso, Tomás foi grande defensor do papado (ver: Hans Küng, A Igreja Católica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002). Em sua época, cresceram as universidades e foram construídas catedrais no estilo gótico; a Igreja tinha interesse na usura.

O período gótico tardio (séculos XIV- XV) ocorreu entre o fim da Idade Média e a Renascença (séculos XV-XVI).

No século XIV estabeleceu-se uma corrente de pensadores destinada a lutar contra o que consideravam “o arcaísmo da Igreja”; eram os “modernii”.

As Cruzadas levaram para a Europa ocidental a arte bizantina; a xilogravura cristã recebeu a influência bizantina, que aparece no emocionalismo dos crucifixos de madeira.

A tapeçaria dos artistas de Paris entrou nos templos; são raríssimos os exemplares dessa obra artística (ver: Andrew Martindale, Gothic Art. London: Thames and Hudson, 1988).

Vitralistas e outros artesãos do período produziram grandes obras para serem colocadas nas naves e nas paredes das catedrais góticas.

A Renascença foi uma era de realização cultural, como resultado de renovado interesse nas artes clássicas da Grécia e de Roma. O Humanismo cria que, por meio do estudo dos tesouros artísticos da Antiguidade greco-romana, a humanidade alcançaria grandeza artística e espiritual; era uma concepção antropocêntrica, que divergia da concepção teocêntrica dos séculos anteriores. Entretanto, artistas da Renascença, mesmo os que não eram religiosos, ainda aceitavam a beleza pura, a música absoluta, a arte que possuía um significado espiritual.

Pouco tempo depois, a criatura humana novamente passou a acreditar na sua superioridade; aparecia retratada ao lado de figuras do reino celeste; há um pretensioso sentimento de igualdade entre Deus e os homens! A redescoberta do mundo clássico alterou a arte da pintura, mudou o seu conteúdo ideológico. A arte religiosa, de patrocínio ou de orientação eclesiástica, tornou-se humanizada, quase humanista. Entretanto, Savonalora pregava a simplicidade nos costumes eclesiásticos (ver: Tim Parks, Banco Médici. Rio de Janeiro: Record, 2008). Entre 1420 e 1550, escultores e arquitetos italianos, pintores flamengos e alemães, produziram arte pictórica para a Igreja. No século XVI, a Igreja estimulou a pintura afresco.

Nos pontificados de Júlio II (1503-1513) e Leão X (1513-1521), com o dinheiro arrecadado com a venda de indulgências, foi acelerada a construção da basílica de São Pedro, em Roma.

De 1500 a 1525, as artes na Itália atingiram seu clímax. A pintura “religiosa” de Da Vinci, Michelangelo, Rafael, Ticiano e Tintoretto deixou obras-primas (“A sibila”, “O dilúvio”, “A santa família”, “Maria Madalena”, “Adão e Eva”) de competência técnica e imaginação estética, de harmonia e equilíbrio, que ocultavam os ideais humanistas de seus criadores.

O papa Leão X (1475-1521) acima de tudo gostava da arte renascentista; talvez por isso não deu a devida importância ao movimento reformista que se esboçava na Igreja. Mas, depois de longo período sem contestação, as artes na Igreja voltaram a receber críticas, obviamente por parte de teólogos protestantes.

No século XVI, a Igreja Católica Romana estava plenamente aberta às diversas manifestações artísticas. Pelo relato que fizemos a respeito de sua evolução, é possível perceber que, ao longo de 1500 anos, na Igreja Católica ocorreu uma mudança: da liberdade no ambiente de culto, usufruída nos tempos apostólicos, para a fixidez da liturgia; da simplicidade, para a ostentação dos lugares de culto, sob o bafejo do Império Romano.

Para a hierarquia católica, o culto era mais uma arte; esquecia que deveria ser uma arte genuinamente religiosa. A Igreja queria a Arte, buscava a Estética. Para tanto, muito contribuíram o sacerdotalismo, o sacramentalismo e o mercantilismo; este, impulsionado pela família Médici.

O interesse pelas manifestações artísticas significou uma volta aos ritos do Antigo Testamento. O que Arão e os levitas tinham sido no culto judaico, foi o clero na Igreja Romana.

A Igreja, colocando-se, na pessoa do papa, como autoridade acima da Bíblia, dos concílios e das paróquias, e justificando as obras humanas para a salvação, por meio da missa, dos sacramentos, da penitência e do purgatório, assumia uma atitude humanista. Os intelectuais católicos entendiam as Artes como oferenda da Igreja a Cristo. Por isso instauraram o culto da Arte, inclusive subordinando a Liturgia à Arte. O conteúdo ideológico da pintura de Rafael equiparava Roma a Atenas, a Religião à Arte; o de Miguel Ângelo colocava os profetas e as sibilas lado a lado. Os humanistas deram o primeiro passo para a secularização.

O Protestantismo tomou posição contra o Humanismo, quando procurou a simplicidade nos atos de culto, para restaurar o equilíbrio entre Religião e Arte (ver: Francis Schaeffer, “A fé dos humanistas”).

Luiz Sayão busca a Estética, colocando-se, de certo modo, entre os “modernii” do pensamento gótico. Imitando a linguagem deles, considera que a herança dos evangélicos no Brasil é arcaísmo; que os evangélicos têm “dificuldades de dialogar com a estética e com a cultura nacional contemporânea”. É oportuno lembrar que a “estética” contemporânea frequentemente não possui significado moral. Ele busca uma nova Teologia da Estética, evidentemente não a que vigorou na Renascença, um estilo em nível muito mais elevado do que o contemporâneo; basta dizer que ele se compraz com “ritmos como valsa, rock e samba”, na opinião dele (sic) “usados por Deus para o benefício do reino”. Com uma “estética” desse nível chegaremos perto da “teologia” proposta.

Afirma que Francis Schaeffer (1912-1984) criticou a atitude do evangelicalismo americano “de afastar-se da arte”. O que, com efeito, Schaeffer censurou foi “a entrada do conceito humanista na igreja protestante”. Em sua época já eram fortes os pensamentos humanistas na Igreja Católica e nas igrejas protestantes, que, convergindo, atenderiam ao propósito principal do papa João XXIII: o ecumenismo, sob a égide da Igreja Romana.

A igreja primitiva e as igrejas da Reforma Protestante não adotaram princípios humanistas, nem o relativismo teológico e moral. Às igrejas atuais pouco falta para adotarem as artes marcadas pelo desespero.

Luiz Sayão afirma que “foi mortal para a Igreja”, quando os cristãos conservadores entregaram (?) as artes do espetáculo aos artistas mundanos.

Devemos com esmero prestar culto a Deus; isto não significa que o nosso culto prestigie a Arte e os artistas, sejam quais forem.


Rolando de Nassau é organizador do “Dicionário de Música Evangélica” e tem sido, por vários anos, colunista de O Jornal Batista, atuando como um perspicaz comentarista dos rumos que a música evangélica tem tomado. Informações mais detalhadas sobre o autor poderão ser encontradas em http://www.nassau.mus.br/


Fonte: O presente artigo foi diretamente entregue pelo autor aos editores do Música Sacra e Adoração. Agradecemos muito ao Rolando de Nassau por esta iniciativa.