Música Tripartida: Herança do Século Dezenove

por: Parcival Módolo

Quando pensamos na música das nossas igrejas hoje em dia, podemos questionar sua qualidade e divergir quanto a sua utilidade. Alguns temem pelos rumos que possa tomar; outros anseiam por mudanças ainda maiores, que nos libertem de qualquer fardo do passado.

O momento que vivemos hoje, entretanto, só será corretamente compreendido se soubermos levar em conta nossa herança cultural, religiosa e musical mais recente, e se admitirmos que o momento atual é conseqüência direta da nossa história e do tempo imediatamente anterior ao nosso tempo. “Aussi important que la véritable approche esthétique est le chemin historique” (+) (1).

Se entendermos o processo que nos trouxe até aqui, talvez tenhamos mais sabedoria para tomarmos as decisões que determinarão o nosso futuro. Só entenderemos o nosso século se nos lembrarmos do nosso passado mais recente, do século anterior ao nosso. “Que la connaissance du passé soit indispensable à la compréhension du présent, que la perspective historique indique le point où nous nous trouvons, voilà qui se passe de demonstration” (++) (2).

Nosso século tem suas raízes mergulhadas no século dezenove, e muitas das nossas atitudes e preferências atuais são fortemente influenciadas pelas preferências e atitudes do último século.

O Século Dezenove

O século dezenove é o tempo da Revolução e da Restauração.

É o século dos grandes prospectos e das máquinas. O século do materialismo e do material. O século da declaração da morte de Deus. O século do drama. O século do cidadão e de sua arrogância. O século do artista e do seu atrevimento. O século das Nações e de sua elegante soberba. O século da questão social … Mas é também o tempo de um mundo, pintado pelos Impressionistas, frágil e passadiço. Um mundo … de anseio à morte prematura, um século de tolhedora tristeza e de branda melancolia. Da esperança perdida, de ideais abandonados. É o século do medo, da morte, e do medo da morte que agora devia ser enfrentada sem Deus. O século que, ao acabar, denominou, ao referir-se ao final de um século: “Fin de siècle”.(3)

Mudanças profundas na sociedade, nas artes, nos conceitos científicos, na produção de bens de consumo, caracterizaram o século dezenove. Dirigindo a nova orientação do período, havia a Revolução Francesa, do final do século anterior, última conseqüência das mudanças processadas pelo Iluminismo. Havia a violenta substituição do Absolutismo pelo “terceiro estado da burguesia”, sufocada no terror sanguinário da Ditadura Jacobina. Essa ditadura só será subjugada por Napoleão e suas guerras imperialistas, que por sua vez, fizeram reforçar o anseio doentio por um nacionalismo exacerbado.

A Produção Cultural do Período

No que se refere à produção cultural, há enormes mudanças já na própria situação em que os artistas viviam e trabalhavam.

Academias e exposições, críticos e entendidos, empenham-se ao máximo para introduzir uma distinção entre Arte com “A” maiúsculo e o mero exercício de um ofício, fosse ele o de pintor, de músico ou de construtor. Agora, os alicerces em que a arte se assentara durante toda a sua existência, estavam sendo abalados de outro lado. A Revolução Industrial começou a destruir as próprias tradições do sólido artesanato; o trabalho manual cedia lugar à produção mecânica, a oficina à fábrica.(4)

Os fatos mais imediatos destas mudanças eram visíveis na arquitetura. A quantidade de construções feita no século dezenove foi, talvez, maior do que em todos os períodos anteriores somados. Mas essa época de ilimitada construção não possuía estilo próprio.

O homem de negócio ou a comissão de planejamento urbano que projetavam a construção de uma fábrica, estação ferroviária, escola ou museu, queriam Arte pelo dinheiro investido.(5)

Assim, depois de determinadas as dimensões e a forma final do prédio, encarregava-se algum arquiteto de “inventar” uma fachada em estilo gótico, de converter o edifício em um arremedo de castelo normando, palácio renascentista ou até mesquita oriental.

Certas convenções eram mais ou menos aceitas, mas não ajudavam muito a melhorar a situação. As igrejas eram quase sempre construídas no estilo gótico, porque este predominara no que foi chamada a “Era da Fé”. Para teatros e casas de ópera, o estilo barroco, com toda a sua teatralidade, era freqüentemente considerado adequado, enquanto se achava que palácios e ministérios teriam um aspecto mais digno nas formas suntuosas da Renascença Italiana.(6)

A arte, em geral, e também a música, torna-se destinada e produzida em função, ou pelo menos, a partir daquela a quem poderíamos chamar de nova burguesia intelectualizada. Só que essa nova classe sócio-cultural vinha com as mais diferentes exigências e pretensões, e eventualmente com estranhas reivindicações, freqüentemente de gosto extremamente duvidoso. Assim, ao lado de obras de arte de alto nível, o século dezenove também conheceu e conceituou o Kitsch.(7)

No caso da música, a fabricação em série e o consumismo exacerbado multiplicam a produção de instrumentos, especialmente do piano, e de partituras musicais, como nunca antes. Surgem grandes salas de espetácu particulares, construídas nos grandes pa bel canto atingem seu apogeu romântico, para, algum tempo depois, conhecer seu declínio.

O aprimoramento técnico e uma espécie de pensamento tecnicista do período, refletem-se na execução da música, fazendo florescer o virtuosismo instrumental. Figuras como as de Paganini e de Liszt, e o modo como foram cortejados, são frutos desse período.

As ideias de liberdade, e especialmente as de igualdade, proclamadas pela revolução francesa no final do século anterior, promovem os ideais de socialização do ensino da música: todos tinham o direito de aprender música, se assim o quisessem. Desenvolvem- se os Métodos de Ensino dos mais diversos instrumentos musicais: bastava-se ir tocando os números do Método, na ordem publicada, que qualquer pessoa poderia aprender o instrumento musical que escolhera. Esse princípio era uma forma de aprender totalmente desconhecida nos séculos anteriores.

Nasce o Conservatoire National de Musique em Paris, na França, em fins do século dezoito, e em 1822 a Royal Academy of Music, na Inglaterra. Como essas, várias outras escolas importantes vão surgindo em todo o mundo, instituições que são uma espécie de marco na socialização do ensino musical.

Ars Musica

Levando-se em conta todas as novas ansiedades do século, as manifestações artísticas precisavam ser “reorientadas” e à Música, em especial, foi reservada uma função de Arte como nunca tivera antes, diferente de outros tempos. Agora, começa a ser considerada Arte superior e é destinada a um público “selecionado”, “iniciado em seus mistérios”. A partir daí, torna-se exclusivista e, por isso mesmo, supérflua, dispensável. O compositor anterior ao século dezenove era um artesão, um artífice, como eram o ferreiro ou o vidreiro. O produto do seu trabalho era consumido pelas pessoas da sua própria comunidade, imediatamente depois de pronto.

O compositor do século dezenove, trabalha não mais a serviço de um aristocrata ou de uma instituição, como o Estado ou a própria Igreja, mas sim para um ouvinte desconhecido, para um público, seu estranho.

O ser humano que sabe compor músicas passa a ser considerado uma espécie de “ente superior”; um “profeta” na opinião de Schumann e dos seus admiradores; um “verdadeiro Sacerdote da sua Arte”, segundo Carl Maria von Weber(8); um artista, com toda a conotação negativa que o termo também podia trazer consigo.

Música Popular x Música “Erudita”

Inicia-se aí uma cisão importante, o fracionamento da música em música de concerto e música popular. O contraste entre os dois tipos de música, uma para ouvidos “especializados”, “eruditos”, e outra para o povo, esta última freqüentemente acusada de mau gosto e de má qualidade pelos apreciadores da primeira, torna-se tão grande que dificilmente consegue-se construir pontes entre os dois gêneros. Tal cisão só estará totalizada no século vinte, mas é no século dezenove que se inicia.

Até meados do século dezenove não havia contraste tão marcante entre música popular e erudita. Havia música boa e música ruim. Os compositores anteriores a essa época, considerados eruditos hoje, não o eram em seu tempo. Mozart, Beethoven, escreveram música boa, para ser tocada, cantada, ouvida e apreciada por pessoas comuns, que iam aos seus concertos como hoje se vai ao cinema ou aos shows de música popular.

Conseqüências para a Música Sacra

Para a Igreja, esse novo conceito de música, o de uma manifestação superior do espírito, destinada a público especializado, trouxe sérias dificuldades. É que essa música, que trazia em si mesma sua própria aura mística, sua própria “santidade”, não mais podia servir como parte do culto. Tal música não tinha mais função litúrgica, muito menos cúltica. Não servia mais para o culto, onde se esperava dela que tivesse a figura de serva, de veículo fiel para o texto, de explicatio textus.(9) Como poderia “…a mais romântica de todas as artes… aquela a quem só o infinito pode impor limites”(10), encontrar no culto possibilidade de … expressar-se condignamente e desdobrar-se, como era do seu “direito”(11)?

Mais profunda do que nunca antes torna-se a vala divisora entre a arte da música e a música da igreja. Inicia-se nova cisão considerável. A cisão entre música de concerto e música sacra.

Música X Música Sacra

A música sacra no século dezenove não tem a mesma importância que tivera nos séculos anteriores. Não mais desempenha papel central no culto, nem na vida das pessoas. Isso vale especialmente para a música litúrgica, aquela que semanalmente acompanha o ofício religioso.

Os grandes compositores do século dezenove não estarão mais a serviço da igreja como estiveram Bach em Leipzig ou Mozart em Salzburg. As composições sobre temas sacros que agora aparecem, destinam-se a concertos públicos e não mais ao ambiente litúrgico. Compunha-se um Requiem ou um Salmo por decisão pessoal do compositor ou para atender uma encomenda especial, nunca pensando-se na liturgia, no fiel ou em Deus. Tais obras, mesmo quando executadas em templos, utilizavam-se do espaço muito mais como teatro do que como igreja propriamente.

É a partir daí que se entende esta cisão considerável, profunda, a cisão entre a música de culto e a música impropriamente chamada clássica ou de concerto, a música de melhor qualidade técnica, melhor elaborada. A cisão é, portanto, tripartite: inicia por tornarem-se independentes três ramos que serão mais tarde totalmente distintos e freqüentemente incompatíveis, a Música Popular, a Música “Erudita” e a Música Sacra.

A Questão do Ouvinte

Quando os grandes compositores serviam a igreja, a música melhor elaborada era exatamente a música da igreja. Bach, talvez o maior compositor de todos os tempos e cuja produção musical foi das mais elaboradas e complexas, não escreveu música para intelectuais bem vestidos, sentados em auditórios de concertos. Escreveu-a para adorar a Deus nos cultos da sua igreja. E escreveu-a o melhor que pode, exatamente porque era para Deus. Música destinada aos ouvidos divinos tinha que ser a melhor.

Há aqui uma importante questão a considerar: A música sacra anterior ao século dezenove destina-se aos ouvidos de Deus. A música sacra do século dezenove é para o público, para os ouvidos do homem.

É preciso ficar bem claro que quando se fala em música aqui, refere-se às estruturas musicais de ritmo, melodia e harmonia, independentemente do texto.

O que se analisa é a técnica da composição musical. O texto pode até ser dirigido ao homem, como nas exortações ao trabalho: “Vem trabalhar”, “Tome o arado nas mãos”, “Mãos ao trabalho” e tantos outros. Textos desse tipo sempre existiram. Mas a música que os acompanhava antes do século dezenove, a técnica da composição utilizada, era comprometida com o divino, diferente da que se praticava fora da igreja. Havia princípios técnicos claros que diferenciavam a música sacra da música secular. Se por acaso a música secular fosse composta observando-se tais princípios técnicos de composição, ela agradava a Deus, mesmo não sido escrita para o culto.

As Campanhas Evangelísticas e a Gospel Song

O século dezenove conheceu as grandes campanhas evangelísticas que tornaram-se uma espécie de modelo do evangelismo de massa da época. Elas cresceram e ganharam contornos definidos naquele período.

Nomes como os de Moody, Sankey, Torrey e Finney entraram para a história do cristianismo, inaugurando um estilo próprio de evangelismo baseado exatamente nessas grandes campanhas. Com elas nasceu um estilo musical próprio, a gospel song ou canção evangelística. Era um gênero musical bem definido e que vinha com uma finalidade específica: sensibilizar os grandes auditórios. Era música que já não tinha mais compromisso com a Ars Musica, com a arte que procurava aperfeiçoar-se para servir a um Deus perfeito. Já não mais se preocupava em diferenciar-se, em ser melhor, tecnicamente, do que a música que se fazia fora do ambiente do culto. Ao contrário, procurava identificar- se com a música mais popular da época.

A gospel song, assim, vem com características claras: a melodia é sempre muito fácil e intuitiva, assemelha-se muito à música profana da época e é facilmente aprendida pela massa. Quanto ao estilo, é sempre romântico e extremamente emotivo, utilizando-se fartamente de cromatismos melódicos. Os textos que as acompanham são de caráter pessoal e emocional, raramente racional. São quase sempre de apelo ou exortação, falando diretamente ao ouvinte, ou fazendo com que ele mesmo fale: vêm quase sempre na primeira ou na segunda pessoa: “Meu amigo, hoje tu tens a escolha, vida ou morte, qual vais aceitar? Amanhã pode ser muito tarde!”(12) Ou ainda, “Na cegueira eu andei e perdido vaguei … Mas eu surdo me fiz, converter-me não quis…”(13), são bons exemplos do estilo das gospel songs, bem conhecidos no Brasil.

Música Para o Homem

É a primeira vez em toda a história da música ocidental que a música sacra destina-se ao homem, compromete-se com o público, é dirigida a ele. Até então, a música da igreja era cantada e tocada para Deus. Lembre-se de que aqui estamos considerando o elemento puramente técnico e musical, independentemente do texto. É claro que podia-se cantar e tocar para Deus enquanto se dirigia às pessoas. Só que mesmo nesse caso a música que acompanhava os textos era “sagrada”, diferente da secular.

Na época do Antigo Testamento cantavam-se salmos. Salmos de adoração, confissão, exaltação a Deus. No início do cristianismo, cantavam-se ainda os salmos vétero-testamentários e hinos de adoração a Deus. A partir do século seis e sete, a música gregoriana, criada especificamente para o ambiente litúrgico, dirigia a liturgia e cantava as diferentes partes da cerimônia, sempre para Deus. Desde o século dezesseis, a música nascida da Reforma, o Coral Alemão, vinha especialmente com finalidades doutrinárias, ensinava os dogmas e fixava as verdades protestantes.(14) E o fazia cantando a Deus e contando dele. O hinário de Calvino, o Saltério de Genebra, era formado pelos 150 Salmos metrificados, e depois musicados por Louis Bourgeois, um dos melhores músicos da corte francesa da época. Eram novamente os velhos salmos e, como antes, cantavam para Deus.

É só a partir de século dezenove que o alvo da canção sacra é o homem.

Talvez seja essa a principal razão da cisão entre a música melhor elaborada, de melhor qualidade técnica, diferenciada, e a música de culto. É como se, os olhos, que visavam o homem imperfeito, deixassem de focalizar a perfeição divina. Música comprometida com o homem não tinha mais a obrigação de aperfeiçoar-se, de diferenciar-se. Ao contrário, devia “nivelar por baixo”, pelo homem e para o homem. O auditório era outro agora: tratava-se de música para ouvidos e emoções humanas, comprometida com o ser humano. Não tinha mais que ser diferente da música profana, melhor que a profana, aperfeiçoada. A música chamada erudita já se afastara do povo. Ganhara status de arte superior e especializada, para público selecionado. Também ela não “nivelava por baixo”. Ela também distancia-se da igreja.

Repita-se aqui que estamos considerando música no seu aspecto técnico e estritamente elementar. Não nos referimos ao texto, que poderá ser bom ou ruim, dirigir-se ao homem como apelo ou exortação, ou a Deus como louvor, gratidão ou oração. Nossa afirmação é que a aprtir do século dezenove deixa de haver uma música tecnicamente diferenciada, santa, distinta da secular e somente identificada com o divino. Não há mais uma forma de compor diferente para Deus. A música que se faz para o culto é tecnicamente idêntica à do bar ou do clube.

Evidentemente não se questiona aqui a atitude e a devoção de quem canta ou toca. Isso cada músico, seja ele do século dezessete, dezenove ou vinte, resolverá com Deus quando chegar a hora. O fiel com um coração puro e com lábios purificados certamente adorará a Deus de modo agradável, com qualquer música ou sem música alguma. O que se analisa aqui é o movimento artístico-intelectual, não a devoção individual.

O Brasil

No século dezenove o Brasil começa a ser “denominacionalizado”. Os missionários que aqui chegaram, não trouxeram o evangelho somente, mas também, naturalmente, os princípios de suas denominações de origem.

Simonton desembarca em 1859 no Rio de Janeiro, trazendo em sua bagagem as sementes do presbiterianismo, que aqui semearia, ajudado por Blackford, Schneider e Fletcher, alem do padre convertido José Manoel da Conceição.

Com os missionários, chegaram também nossos primeiros hinários, todos formados basicamente por hinos traduzidos dos hinários da origem dos missionários, muitos deles composições típicas do século dezenove. E já que a maior necessidade naquele momento era de músicas de evangelismo, a gospel song tornou-se o estilo mais cantado e, conseqüentemente, mais conhecido e apreciado pela nascente igreja evangélica brasileira.

Mais do que isso, a gospel song foi identificada no Brasil (e em outros países evangelizados na mesma época) como o estilo litúrgico por excelência. Aqueles sons, nunca ouvidos anteriormente, foram assimilados pelos primeiros brasileiros convertidos como a música sacra; como única e verdadeira música de igreja. De fato, ela era: 1) diferente da música profana conhecida em nosso país naquela época; 2) tocada em instrumentos diferentes dos usados fora da igreja, exatamente os harmônios trazidos pelos próprios missionários; 3) um bom veículo para os textos aos quais estava associada.

Essas três características juntas são suficientes para conceituar Música Sacra para um determinado grupo sócio cultural religioso.(15)

E Nós, Agora?

Afirmamos no início deste artigo que, quando pensamos na música das nossas igrejas hoje em dia, podemos questionar sua qualidade e divergir quanto a sua utilidade. Mas precisamos nos lembrar que o momento atual é conseqüência de uma série de eventos importantes que antecederam os nossos dias. Somos herdeiros de uma divisão tripartite da Música, divisão esta historicamente recente e que a estratificou em Erudita, Popular e Sacra. Só que, aparentemente, não estamos todos totalmente satisfeitos com ela. Nem com a divisão nem com a música. Se estivéssemos todos satisfeitos, nossas igrejas não estariam tão divididas por causa da sua música como hoje estão. A música sacra, distanciada da “erudita”, comprometida só com o público, deixou de preocupar-se com qualidade técnica, que hoje é baixíssima. Mesmo assim, os líderes e pensadores de nossa igreja ainda não encontraram estímulos ou razões suficientemente fortes para de fato repensá-la, melhorá-la.

Alguns de nós, apesar de ansiarem por uma música sacra melhor elaborada, não conseguem encontrar um lugar para a música “erudita” no culto pois costumam considerá- la espetáculo teatral. Ao mesmo tempo, boa parte de nós não consegue associar música pop e comercial com verdadeiro culto a Deus. E quando falamos em música mais própria para o culto, todos nós temos dificuldades ao tentar idealiza-la, ao tentar encontrar um tipo de música objetivamente sacra, verdadeiramente litúrgica, essencialmente “eclesiástica”.(16)

Desconhecemos, por conta da nossa herança musical mais recente, o conceito, muito antigo, de música especial, diferente da secular, melhor que a profana, aperfeiçoada, utilizada no culto a Deus exatamente porque é destinada a um Deus perfeito. Assim, a rigor, no que se refere ao aspecto técnico da composição e independentemente do texto, podemos dizer que a música tocada e cantada nas nossas igrejas, do século dezenove até hoje, é música destinada a ouvidos humanos, é dirigida a homens. É por isso que, infelizmente, os critérios para avaliá-la, hoje em dia, passam sempre pela discussão do gosto pessoal do ouvinte, das suas preferências individuais. E o ouvinte aqui é o homem, não Deus.

Cabe a nós, conhecendo o processo que nos trouxe até aqui e sabedores dos fatos que influenciaram nossas preferências e atitudes de hoje, sermos sábios para fazer escolhas acertadas e tomar as decisões corretas, que determinarão um futuro nosso enriquecido e o de nossa igreja abençoado.


Notas

+ – Tão importante  quanto a abordagem puramente estética é o processo histórico.

1 – Alphons Siberman, Les Principes de la Sociologie de la Musique (Genebra: Librairie Droz S.A., 1968) 25.

++ – Que o conhecimento do passado é indispensável à compreensão do presente, que a perspectiva histórica indica o lugar onde nós nos encontramos, isso é evidente, dispensa-se demonstração.

2 – Ibid.

3 – Peter Wapnewski, Der Magier und sein Mythos. Richard Wagner und das 19. Jh., em Die Zeit 30 (16 de julho de 1976).

4 – E.H. Gombrich, The Story of Art (Oxford: Phaidon Press, 1978; 13a. ed.) 395.

5 – Ibid.

6 – Ibid., 396.

7 – Não se pode definir o Kitsch como um movimento cultural, muito menos como uma escola estética. É, antes, uma definição, um conceito. A palavra Kitsch, de origem gemânica, foi utilizada, a partir do século 19 para classificar, um tanto pejorativamente, qualquer forma ou obra de arte de gosto duvidoso ou de evidente mau gosto, pretensiosa e de exagerado sentimentalismo. A princípio usada só como crítica, semelhante a gírias nossas contemporâneas tais como “cafona” ou, mais recentemente, “brega”, a palavra Kitsch passou a conceituar um tipo de arte própria do período.

8 – Weber, Carl Maria von, em Leyer und Schwert (Berlim: Körner, 1814), introdução.

9 – Para uma visão mais profunda sobre este papel da música, consulte Parcival Módolo, “Música: Explicatio Textus, Prædicatio Sonora” em Fides Reformata 1 (1996) 60-66.

10 – Ernst Theodor Amadeus Hoffmann, “Die Musik”, em Allgemeinen Musikalischen Zeitung, 10 (1819).

11 – Bernsdorff-Engelbrecht, Christiane, Geschichte der evangelischen Kirchenmusik, Vol. II, (Heinrichshofen, 1980) 234.

12 – João Diener, A Última Hora, 1909 (Hinário Novo Cântico, nº 213).

13 – H. Maxwell Wright, A Conversão, 1890 (Hinário Novo Cântico, nº 334).

14 – Conceitos aprendidos com música ficarão indelevelmente fixados em nossa memória. Qualquer referência à melodia nos trará de volta o texto, mesmo depois de muitos anos ou mesmo quando estava aparentemente esquecido. Só que música fixa verdades teológicas ou mentiras ideológicas.

15 – Essas características tem sido usadas modernamente para tentar definir o que seria Música Sacra. Concorda-se que, tecnicamente, o conceito de Música Sacra terá que ser regionalizado, adaptado a cada cultura. Ela será: diferente da música secular daquele povo; adaptada a instrumentos que não estejam unicamente associados à música profana daquela região. E terá que ser sempre coerente com o texto que a acompanha, servindo não como espetáculo de si própria mas de veículo fiel para as verdades que deve proclamar. Eis aí o que é Música Sacra.

16 – Vide nota 14.


Fonte: Publicado originalmente em http://www.mackenzie.com.br/teologia/fides/vol01/parcival2.pdf