A Seleção de Cantos Para o Culto Cristão – Capítulo VI

por: Denise Cordeiro de Souza Frederico

Critérios de Seleção de Cantos Para o Culto Cristão

6.1 – Introdução

O capítulo em questão tem o objetivo de retirar da história da música sacra, principalmente da observação de como foi enfocada a tensão entre tradição e contemporaneidade nos cantos, subsídios que ajudem a estabelecer critérios de seleção para a música do culto cristão. Essa releitura parte daquilo que já foi referido em capítulos anteriores e busca nesses dados os princípios que podem orientar essa seleção. Esses critérios, uma vez descobertos, fornecerão parâmetros norteadores tanto para a seleção de cantos do culto cristão quanto para o acervo de hinários.

Os passos utilizados para se chegar aos critérios ora em análise foram dados paulatinamente. Já o primeiro capítulo deu pistas de que o problema da tensão entre cantos atuais e antigos existe e tem sido vivenciado por comitês de hinários. Foi ainda no primeiro capítulo, durante a pesquisa social, que se começou a perceber que as comunidades locais podem contribuir para a seleção dos hinos. Depois de uma apurada busca, em cada capítulo, de como as pessoas que fizeram hinos ou estiveram diretamente relacionadas com o fazer musical de suas comunidades vivenciaram a tensão entre os cantos tradicionais e os contemporâneos, selecionaram-se as formas como essas pessoas solucionaram o conflito. Essas “soluções” foram sendo coletadas ao longo do percurso, verificando-se como e quando se repetiam. O levantamento, portanto, consistiu nessa verificação de soluções, as quais receberam designação própria e foram-se impondo por sua recorrência. Porque essas soluções envolveram múltiplas possibilidades, ainda foi necessária uma releitura em que se procurou associar todas as que pudessem ser catalogadas sob uma mesma denominação, que acabou escolhida por sua repetição. Dessa releitura resultaram os seguintes critérios de seleção dos cantos para o culto cristão que vão ser explorados: o povo e a contextualização, a teologia do culto, raízes históricas, o ensino e as doutrinas confessionais, a adequação litúrgica, a emoção e a estética.

A descoberta do primeiro e mais importante critério selecionado foi posteriormente confirmada através do que se pinçou em meio àquilo que renomados teólogos disseram acerca do culto. Tendo-se entendido que “culto é o encontro de Deus com a comunidade cristã”, o primeiro critério – “a seleção deve orientar-se pelo povo” – despontou como principal. Isso quer dizer que, na presente pesquisa, são considerados apenas os critérios que atendam preferencialmente às necessidades do povo, que também lhe sejam acessíveis ou que tenham sido requisitados pela voz popular. Paralelamente, é mister pesquisar uma linguagem que seja significativa para a cultura circundante: o cristianismo precisa ser relevante para a sociedade atual.

O segundo critério em ordem de importância é a teologia do culto. É necessário que as pessoas responsáveis pela escolha de hinos, quer a nível de hinário, quer a nível de culto, firmem primeiro uma teologia do culto. Entendidos os conceitos acerca do culto cristão, respeitado o critério “povo” e detectados os principais sustentáculos teológicos para o culto, pode-se passar a avaliar os demais critérios que vão ajudar o processo de escolha dos cantos.

Para uma escolha sábia de cantos, é necessário determinar o que se quer reter da história, dos valores passados, que outras gerações utilizaram e que ainda hoje podem ter significado para as gerações presente e futura. A manutenção de uma tradição dá identidade à comunidade cristã. Muitas confissões têm sido reconhecidas através do seu acervo hinódico. No cristianismo, conhecer o passado de sua confissão, os cantos sem os quais a igreja perde sua marca distintiva e os que por inúmeras gerações têm servido para disseminar aquilo que é imutável na fé cristã, é tarefa de todos os envolvidos com o fazer musical de uma comunidade cristã. Igrejas que se desvinculam facilmente de seu passado histórico ficam à mercê de todo “vento de doutrina”.

Os quatro últimos critérios, embora tivessem aparecido numericamente em menor grau, nem por isso deixam de ser importantes. O critério “ensino” aparece nos primórdios do cristianismo, quando a religião cristã era proibida e os cristãos sofriam perseguição. Como os novos conteúdos sobre a morte e ressurreição de Jesus Cristo poderiam ser veiculados? Através da palavra (querigma) e do canto, fato comprovado nos escritos do apóstolo Paulo, onde, além do convite às expressões musicais comunitárias, são também encontrados excertos de cantos.

O critério “o canto deve adequar-se à liturgia” aparece historicamente um pouco mais tarde. Embora durante a Idade Média o canto estivesse totalmente ajustado ao culto, em todas as suas partes, a época não serve de modelo para esta pesquisa em razão de ter excluído o povo como elemento ativo da ação litúrgica. Foi Martinho Lutero quem resgatou a participação popular no culto cristão e é através de suas “adequações” litúrgicas que se pode entender melhor o critério.

“Estética e emoção” vêm complementar a visão humana que decide ver o mundo com os olhos postos na beleza e naquilo que pode causar bem à alma. Não foi tarefa fácil separar cada um dos critérios, em virtude de serem, em algumas ocasiões, causa e efeito ou ainda porque os elos de parceria se complementam ou se ajustam perfeita e harmonicamente.

6.2 – A seleção dos cantos deve orientar-se pelo povo

6.2.1 Fenômenos anotados ao longo da história da música sacra

Seis exemplos extraídos da história evidenciam escolhas elitistas que acabaram por afastar o povo da liturgia e da possibilidade de execução das músicas. O primeiro deles aconteceu quando a schola cantorum foi tomando conta do canto na igreja. As peças musicais foram-se tornando mais complexas, a missa passou a ser executada somente pelos clérigos, o que afastou a comunidade da participação ativa na liturgia. A música de Palestrina também não serve de modelo para o critério que se está tratando. Embora possuidora de qualidades musicais e históricas notáveis, não estava no nível da execução popular, tanto que só podia ser apresentada por aqueles que se entregaram à tarefa de estudá-la profissionalmente. Além disso, a compreensão de culto como encontro da comunidade com Deus está ausente nesses dois casos. Até mesmo um dos mais brilhantes compositores de todos os tempos, J. S. Bach, não pode ser tido como criador de música pertinente para o canto congregacional, porque, dada a complexidade de sua música, precisava de pessoas mais treinadas para ser apresentada. O terceiro exemplo é retirado de Calvino, que acabou por oferecer um resultado paradoxal, em que teoria e prática não se acertaram. Com sua convicção de que a música deveria ser simples e modesta, resolveu adotar somente os Salmos e abolir os instrumentos e texturas musicais que impedissem a compreensão clara do texto. Por entender que a música popular vigente não seria digna para o uso sacro, pediu a colaboração de um grande músico contemporâneo para que escrevesse novas composições com um caráter que em nada lembrasse a profanidade daqueles cantos. Sua boa intenção terminou na produção de cantos tão requintados que a participação do povo ficou prejudicada. Amparado numa teologia bíblica tênue, Zwínglio errou também por não ouvir o povo. O quinto exemplo vem dos hinos pietistas que resolveram incluir as técnicas operísticas que estavam na moda na Itália e se disseminavam por toda parte. Incorporadas as técnicas musicais rebuscadas, cheias de ornamentos musicais e tessituras só alcançáveis pelos profissionais, esses hinos ficaram fora do domínio popular.

Tecidas as considerações acerca da música imprópria para o culto cristão em razão de ter excluído o povo, relembra-se que, depois de a igreja ter por longo tempo afastado os fiéis como participantes ativos da ação litúrgica, Lutero aparece como pioneiro na caminhada de revalorização da participação popular no culto. A adaptação do canto para colocá-lo ao alcance do povo foi conseqüência do embasamento teológico de sua Reforma, pois entendia a missa como beneficium e defendia o sacerdócio universal de todos os crentes. Sendo assim, o canto sacro deveria ser expresso numa língua compreensível para aqueles fiéis que não podiam entender a língua latina nem eram mais chamados a uma participação efetiva nas missas. Em razão de sua percepção acurada do gosto popular, ainda fez mais, tomando empréstimos da música popular vigente para tornar essa linguagem musical mais adequada à comunidade. Por exemplo, era comum aparecerem em hinos experiências cotidianas vividas por ele. Entre estas, sua discussão com os entusiastas, assim como a experiência da perda de amigos, como a do humanista Wilhelm Nesen, em 5 de julho de 1524.

Watts traduziu os Salmos numa linguagem cristianizada porque, na sua percepção, o texto hebraico falava de coisas distantes do cotidiano das pessoas freqüentadoras dos cultos. Segundo esse autor, os hinos deveriam falar de assuntos rotineiros da vida humana, como o amor, a alegria, o medo, a tristeza, as paixões. Quis, portanto, trazer para a sua realidade algo extremamente valorizado por inúmeras gerações de cristãos, mas com novo significado e acessível ao povo:

I have been long convinced that one great occasion of this evil arises from the matter and words to which we confine our songs. Some of them are almost opposite to the Spirit of the gospel; many of them foreign to the state of the New Testament, and widely different from the present circumstances of Christians.

Para alcançar esse objetivo, lançou mão dos seguintes critérios: os hinos deveriam reproduzir o evangelho tal qual o Novo Testamento apregoa, o que significava expurgar tudo o que tivesse ligação forte com o Antigo Testamento; deveriam ser compostos livremente, sem a rigidez da Reforma; deveriam expressar os pensamentos e sentimentos das pessoas que fossem cantá-los. Em razão dessa última exigência, usou versos e métrica da poesia comum, com a qual a população estava familiarizada: “In the original edition of his Hymns, he confined himself to the three simplest and most often used metres of the current Sternhold and Hopkins, common, long and short”.

Seus hinos também foram amplamente usados nas reuniões do “Grande Reavivamento” empreendidas em New England, na América do Norte. Muitos hinários que apareceram nessa época eram publicados apenas como suplementos para o hinário de Watts. No fim da primeira metade do século XVIII, na Inglaterra, também virou moda cantar os hinos de Watts em quaisquer reuniões e até durante o percurso para elas. Tanto é verdade que os salmos cristianizados por Watts como também os seus hinos caíram no gosto popular, que ainda no final do século XIX muitos dos congregacionalistas mais antigos não se levantavam dos bancos para cantar se o hino não fosse do Dr. Watts.

A diversidade dos temas abarcados pela hinodia dos irmãos Wesley evidencia estarem atentos à diversidade exigida pelo contexto em que viviam. Nas sucessivas edições de hinários, não só conservaram os Salmos e hinos de Watts e a versão famosa de Trade and Brady, como também inseriram os novos temas que iam sendo necessários ao movimento metodista. Eram comuns os hinos que satirizavam as doutrinas a que se opunham (legado dos reformistas), os que serviam para os tempos de perseguição, para o dia de Ação de Graças, hinos para o jejum e hinos patrióticos. Continuaram a compor para o calendário eclesiástico e, assim, tinham hinos para o Natal, Páscoa, Ascensão, funerais e vigílias. Além disso, compuseram hinos para serem usados no ambiente doméstico (como aqueles destinados para o uso antes das refeições) e ainda outros específicos para as crianças. Existiam até mesmo hinos para a pessoa se preparar para a morte. Outros tratavam de assuntos gerais, como os hinos para os famintos e para os saciados e para os cultos de oração. Charles dedicou-se ainda a escrever hinos sobre passagens da Bíblia. Foram também adeptos do ecumenismo, tanto que escreveram em 1753 os Hymns and Spiritual Songs, Intended for the Use of Real Christians of All Denominations. A grande edição de 1780 (525 hinos) viria preencher a necessidade de uma publicação inclusiva, com assuntos variados ao alcance de todas as pessoas (as edições anteriores eram por assunto), a um preço acessível. Das reformas empreendidas na edição de 1780 nasceria o The Methodist Hymn Book de 1904, com 981 hinos, sendo 300 do século XIX. Quanto à contextualização melódica, os Wesley usavam as melodias populares da época: “The store of Methodist tunes was increased by adaptation of popular melodies and by local tunes which came upon in his travels”.

O estilo da música usado nas campanhas de reavivamento do século XIX foi o mesmo das baladas românticas ouvidas fora do ambiente eclesiástico. Esse estilo musical, associado a textos de caráter pietista e individualista, produziu um canto “funcional”, que atendeu eficazmente aos objetivos emocionalistas e conversionistas daquelas campanhas.

Nos anos 60 do presente século, a Igreja Católica Romana entendeu que não seria mais possível prosseguir sem dar uma maior atenção à participação popular. Com os editos do Concílio Vaticano II, a igreja substituiu o latim, incompreensível para a grande maioria dos fiéis, pela língua vernácula, incentivando a participação do povo ainda nas aclamações e orações litúrgicas. Quanto à música, considerou imperiosos os ajustes que a tornassem mais próxima da cultura popular e fomentou a composição de novas peças no estilo folclórico. Os protestantes aderiram à contextualização cultural quando adotaram, também a partir da década de 60, os estilos da música “pop”. Com a expansão das igrejas pentecostais carismáticas, mais e mais essa tendência de contemporaneização da música sacra foi sendo efetivada. Perguntado a respeito das influências que sua música teria recebido, o músico inglês Graham Kendrick respondeu: “(…) it certainly is true that I was strongly influenced by both the traditional hymns of my church upbringing and the popular music of the sixties”.

Nos ambientes cristãos, sempre houve receio do que se pode copiar do ambiente profano. Na história, abundam exemplos de defensores do uso das características retiradas da música secular na música sacra e de contrários a esse procedimento. O problema de sacro versus profano aparece no banimento dos instrumentos musicais nas primeiras reuniões cristãs. Os cristãos não queriam usar os instrumentos que eram empregados nas festas pagãs. Outrossim, a ênfase transferia-se para a proclamação da Palavra. João Crisóstomo também considerava a música profana degradante em virtude de ser apresentada em lugares públicos por gente de vida moral não condizente com os princípios bíblicos. Por essa razão, fez acirrada oposição a que esse tipo de música fosse usado na igreja. Já Ambrósio pensava diferentemente e considerava oportuno usar melodias provenientes do âmbito secular, mesmo porque não achava justo que só os heréticos pudessem utilizá-la. Por outro lado, condenou o emprego da flauta, por ser um instrumento que também os pagãos usavam e por servir aos ritos “judaizantes”. Na Idade Média, o canto gregoriano perpetuou por longo tempo a tradição musical, mas não pôde resistir à influência dos cantos usados nas festas que iam sendo acrescentadas ao calendário e ao contexto local para onde o canto ia sendo levado. Já bem mais à frente, no século passado, para não aproveitar a música popular secular, a qual considerava “mundana” e provocadora de associações profanas, Thomas Hasting solucionou o problema de maneira diferente: resolveu adaptar os cantos cristãos às melodias clássicas alemãs. Nesse século, as igrejas evangelicais também seguiram fazendo esse tipo de adaptação e foram bastante contrárias aos estilos gospel folk e gospel rock, considerados mundanos e impróprios para o culto cristão. A atitude das igrejas protestantes não-litúrgicas parece paradoxal, pois, embora elas rotulassem com facilidade de “mundanas” as músicas provenientes do âmbito secular, não hesitaram em se apropriar do estilo das baladas vitorianas para usá-lo nos hinos que proliferariam nos hinários do século XIX e seriam estendidos ao XX. Hoje, em igrejas protestantes brasileiras não-litúrgicas, essas são as melodias consideradas “sacras”. Uma análise pormenorizada de seus hinários revela que contêm melodias folclóricas de outros povos, hinos nacionais e patrióticos de outros países com adaptações “cristãs”, o que contradiz a posição contrária que tiveram/têm em relação à música no estilo gospel folk dos anos 60. Talvez por isso o compositor Ralph Williams tenha declarado, no prefácio do English Hymnal de 1906: “Good taste is a moral rather than a musical issue”.

A interação entre culto, canto e cultura foi uma das preocupações do relator do HPD, estudado no primeiro capítulo, tanto que, escrevendo sobre os procedimentos que iriam ser adotados, assim se expressou:

Na escolha de hinos constantes em outros hinários cristãos – orientar-se pelo conteúdo e pela forma dos mesmos – tendo sempre em vista a composição de nossas comunidades. Isso significará que se deverá dar preferência a hinos mais simples, de mais fácil acesso para os membros comuns da Igreja.

De igual modo a subcomissão de música do comitê que preparou o HCC destacou um dos critérios para a seleção da hinodia como sendo o que deu relevo às composições de natureza congregacional: “músicas para serem cantadas pelo povo não treinado musicalmente ou adaptações de outras músicas que mantenham a mesma característica”.

Ao reler as respostas que as pessoas entrevistadas deram à pesquisa social relatada no primeiro capítulo desse estudo, chamou a atenção a posição do Ivo, que chegou à conclusão de que os hinos “falam pelas pessoas”, querendo expressar que os hinos falam poeticamente de assuntos de interesse das pessoas que vão aos cultos, com palavras que talvez as próprias pessoas dificilmente conseguissem dizer. As palavras de Ivo explicitam bem as implicações profundas que os hinos têm para o povo:

Hinos bons é que devem ser cantados, independentemente se são antigos ou novos. Hinos bons são os que têm conteúdo teologicamente correto, de fácil compreensão e com palavras conhecidas e que a linha melódica e a estrutura harmônica natural do hino sejam agradáveis, adequadas ao gosto musical das pessoas. Exemplo de hino bom de cantar que até as pessoas que não o ouviram conseguem é o 260: “Cantai ao Senhor um cântico novo”. Ouvem a primeira estrofe e saem cantando as seguintes. É mais popular. Esse veio da Igreja Católica e não do folclore brasileiro, como diz no hinário. Outro hino que gostam muito é o “Segura na mão de Deus”, que é um pouco mais “água com açúcar”. Não é negro spiritual. Não é a época de quando foram feitos que diz se ele é bom ou não é bom. O pessoal tem que poder cantar. Quando o hino é difícil de ser cantado, então ele não é bom.

Perguntada sobre os critérios que usaria para incluir os cantos no culto, Diana, outra entrevistada do estudo de caso, formulou a seguinte resposta: “Escolheria as músicas que a comunidade adere, que gosta”. Nessa frase, uma representante da comunidade está reconhecendo que, sem a adesão do próprio povo, a escolha dos cantos não teria sucesso.

Esses pontos de vista extraídos do primeiro capítulo vêm corroborar o que já havia sido apregoado por Routley e outros renomados pesquisadores: que os hinos são porta-vozes dos cristãos, porque, como as canções populares, dizem respeito a assuntos que mais interessam ao povo e falam por ele:

(…) where a hymn in a service of worship beckons to the worshipper at his or her best and causes that worshipper to feel or say, ‘That is what I wanted to say, but I am grateful to whoever put the words in my mouth,’ then it has done its work.

Uma igreja que não aborda temas da atualidade nos seus cantos está fadada a falar uma linguagem distante e diferente daquela que o povo entende. Além disso, sempre há o perigo do enfraquecimento numérico. Se observados os exemplos anteriores de Lutero, Watts, Wesley, da Igreja Católica Romana depois do Vaticano II e das que se tornaram partidárias da música “pop”, conclui-se que todas estavam tentando falar a linguagem entendida e aceita pela maioria, numa tentativa de contemporaneização e de coadunação entre canto e cultura.

6.2.2 – Considerações teológico-musicais

O mais importante critério de seleção de cantos para o culto cristão, retirado da tensão entre tradição e contemporaneidade nos cantos, é o povo. A história da música sacra cristã forneceu amplos e esclarecedores exemplos vistos anteriormente, em que isso está fundamentado. A escolha foi corroborada por conceitos sobre “culto cristão” de abalizados teólogos, os quais passam a ser enfocados.

J. J. von Allmen vê o culto como uma anamnese, ou seja, uma reatualização da história da salvação de forma a trazê-la para o presente. Além disso, ao reler o passado, o culto antecipa o futuro, numa visão dos acontecimentos da segunda vinda de Cristo: “O culto é, por conseguinte, a recapitulação da história da salvação, na medida em que reatualiza o passado, antecipa o futuro e glorifica o presente messiânico”. Esse estudioso entende que o culto precisa ser visto na perspectiva do qâhâl de Israel, que era “a assembléia do povo salvo do Egito e confirmado, enquanto povo santo, ao pé do Sinai (Dt 4.10)”. Em vários momentos da história de Israel, sempre que o povo se reuniu em assembléia solene, três fatos importantes puderam ser destacados. O primeiro deles é que a iniciativa do encontro sempre partiu de Deus. O segundo aspecto tem relação com a ocorrência da proclamação da Palavra, e só então vinham os sacrifícios. A palavra grega usada pela Septuaginta para o vocábulo qâhâl foi ekklesia. Von Allmen declara que seria muito oportuno lembrar-se do significado veterotestamentário da palavra hebraica toda vez que se notasse o termo ekklesia no Novo Testamento. Para ele, portanto, “(…) a Igreja é, em essência, o povo escatológico reunido para encontrar-se com o seu Senhor e tornar-se ele mesmo nesse encontro e por meio dele”.

James White, estudando culto e cultura, as mudanças significativas pelas quais o culto passou desde 1875 até os anos 70 deste século e o quanto os dois elementos interagem, concluiu que culto cristão é a assembléia de cristãos com um objetivo claro e definido:

We meet, assemble, come together, gather, congregate as those called out to assemble in Christ’s name. (…) We come together, deliberately seeking to approach reality at its deepest level by becoming aware of God in and through Jesus Christ and by responding to this awareness (…).

O mesmo pesquisador fez uma análise minuciosa das palavras-chave que historicamente serviram e ainda hoje servem para nomear o culto cristão. Destacou a riqueza do termo alemão para designar culto: Gottesdienst, que tanto pode significar a ação de Deus para com a humanidade quanto o serviço dos seres humanos a Deus. Lutero já havia lançado mão do recurso que a palavra alemã tem: usava “culto” com duplo sentido, um mais específico, outro mais amplo. Em “Comércio e Usura” essa diferença fica esclarecida:

Que tipo de “serviço a Deus” praticas? Servir a Deus significa cumprir seu mandamento, não roubar nem tirar nada de ninguém, não lograr a ninguém, e coisas semelhantes, mas dar e emprestar ao necessitado. Tu, porém, queres arrasar esse genuíno serviço a Deus, para depois construir igrejas, doar altares, encomendar missas rezadas e cantadas, coisas que Deus não te ordenou. Dessa maneira arrasas o verdadeiro serviço a Deus com teu serviço de Deus. Acabas com o serviço a Deus que ele ordenou, e depois vens com o serviço a Deus que tu mesmo escolheste.

Foi também J. White que fez um levantamento histórico das palavras serviço, ofício, liturgia, culto e do termo inglês worship. Para as pessoas cuja língua materna é a portuguesa, o termo culto tem um significado histórico bastante rico, pois vem do latim colere, cuja tradução é cultivar.

A ideia que J. D. Crichton tem de culto é dual: por um lado é um fenômeno religioso, por outro é humano. Enquanto fenômeno religioso, lida com o temor que sempre acompanha o rito sagrado e revela o mysterium: por trás e nesse mysterium, ocorre a revelação do Transcendente. Ao enfatizar o caráter humano do culto, o autor refere-se ao costume que existe de se ritualizarem todos os grandes eventos que acontecem na vida das pessoas, como nascimento, casamento e morte, e lembra que, para o homem primitivo, a própria vida não era desvinculada do sagrado. O rito servia como uma forma de o ser humano relacionar-se com a comunidade na qual vivia. Justamente em razão dessa vida em sociedade, as refeições sagradas possuíam maior importância que os ritos de passagem. Nas sociedades primitivas, ao prestigiarem essas refeições entre as diversas atividades humanas, as pessoas revelavam a dependência de um Deus responsável não só pela criação do mundo, mas também pela conservação da própria existência. Durante a ação ritual, a narrativa sagrada (o mito) era contada e recontada, a qual consistia em narrar a criação do mundo ou daquela comunidade em particular:

The events had taken place in a kind of timeless time (…), and since they “explained” how the community came to be, it was vital to keep in touch with them if the community was to retain its cohesion. Hence the, usually annual, re-enactment of the myth, for which ritual, with fixed patterns allowing of repetition, was the predestined instrument. The story was retold, though the word-element seems to have been small, and the actions were re-enacted as if for the first time. The past event was in a way made present, so that the community could come into contact with it and restore its life.

O culto cristão, além da dimensão transcendente, traz à realidade os elementos que podem ser encontrados nos ritos mais primitivos, ou seja, a restauração de acontecimentos do passado, revividos de maneira a refrescar a memória das raízes e da história para a comunidade.

No culto cristão, é o ser humano que responde à iniciativa da ação divina, pois a história da salvação foi iniciativa de Deus, que se fez humano: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai”. Segundo Crichton, o culto precisa ser visto no contexto da história salvífica, pois é onde se traz à lembrança a iniciativa da ação de Deus em favor da salvação da humanidade. Ressalta, entretanto, que o culto é mais que memória de um feito passado, pois quer

(…) to preserve the realism of the liturgical action (…) and to give it a depth that goes beyond merely verbal or psychological reactions. (…) It is an action that uses signs, themselves pregnant with reality, and the principal symbols of the liturgy are those chosen by Christ himself : water and bread and wine.

O aspecto mais relevante concernente à visão de culto como iniciativa de Deus e resposta do ser humano consiste no fato de que é no culto que essa resposta pode ser expressa. A igreja reunida em assembléia litúrgica proclama sua fé em Cristo e torna possível o encontro das pessoas com o Deus transcendente. Para Crichton, um dos pontos fortes dessa concepção é que dessa forma o culto preenche as necessidades do ser humano.

De modo pitoresco e claro, a assertiva a seguir resume tudo o que foi dito anteriormente acerca da interação entre povo e culto: “O culto é o rancho na roça da comunidade cristã, porque culto é o encontro de Deus com sua comunidade. (…) Qualquer atividade da comunidade cristã que não brote do encontro com Deus no culto ou que não leve a esse encontro, não tem qualquer importância”.

Estudando a antropologia do culto, Senn encontrou quatro características relevantes acerca dele: o culto é social, experimental, simbólico e celebrativo. A primeira dessas características é a mais pertinente para o que se tem abordado aqui. Senn afirma ser o culto um acontecimento social e não individualista. Lembra que, mesmo orando a sós, o cristão ora o “Pai Nosso“. O padre ou o pastor, que atende a uma necessidade pastoral particular, o faz em nome da comunidade. Sem sombra de dúvida, é no culto que esse caráter social e público mais se evidencia. Para que esse culto se torne compreensível e racional, conforme a sugestão paulina, são imprescindíveis os ajustes e as adaptações culturais:

(…) liturgy is obviously a human act performed by a human community for the glorification of God and the edification of its members. As a human act, liturgy ought to be humane; that is to say, people should be able to be themselves in worship. This means that the forms and styles of celebration should be expressive of the indigenous culture.

To take seriously the liturgical assembly means to relate the style of celebration to the nature of the congregation present.

O conceito de culto para os católicos romanos foi fixado de maneira inequívoca no Concílio Vaticano II, que determinou princípios básicos, apresentados nos artigos 7, 10 e 14 do documento “Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia” (SC). Esses conceitos básicos podem ser assim resumidos: o culto é o exercício do ofício sacerdotal de Jesus Cristo; a liturgia é o ápice da vida da igreja e, ao mesmo tempo, o elemento de onde nasce a força que a revigora. Interessa destacar o artigo 14 que reza: “(…) na reforma e na promoção da liturgia, a participação plena e ativa de todo o povo é a meta que deve ser considerada antes de mais nada”. Essa a razão por que o Concílio recomendou que houvesse abertura para as adaptações à cultura e tradição locais. Anscar Chupungco esclarece que, para se conquistar a aculturação, é necessário recorrer à criatividade litúrgica:

Por criatividade litúrgica entendemos que os novos textos litúrgicos são compostos independentemente da estrutura do eucológio romano. (…) A criatividade textual significa que novos modelos de formulários são elaborados de acordo com o padrão lingüístico e os traços retóricos do povo. O conteúdo teológico não será fornecido exclusivamente pelo formulário romano, mas pode ser extraído de outras tradições eucológicas ou inspirar-se nas conclusões da teologia litúrgica contemporânea. (…) A aculturação, a inculturação e a criatividade são três maneiras de realizar a adaptação litúrgica ou aggiornamento visados pelo Vaticano II.

Outros teólogos e alguns músicos também preocuparam-se com que o canto sacro fosse contextualizado, tanto que sugeriram a paridade desses cantos com os arraigados no domínio popular. Erik Routley, por exemplo, aludiu à qualidade básica de um hino: sua acessibilidade às pessoas comuns. Esses cantos populares tratam daquilo que as pessoas mais prezam ou com que se preocupam: o amor, o trabalho e a morte. Esse canto do povo, ao objetivar esses assuntos, permite, através de sua melodia e de suas palavras, que o cantor extravase esses sentimentos que estão sempre presentes no seu cotidiano. Se essas coisas o afligem, a canção pode abrandá-las, tornando-as mais leves e suportáveis. É por essa razão que Routley afirmou que os hinos, por sua característica primordial de canto comunitário, têm estreitas ligações com as canções populares:

Hymns are the folk song of the Christian folk. (…) folk song celebrates what means most to the folk. That is true of hymns. So if you know what hymns a person loves most, or what hymns a congregation is most addicted to, you will be able to infer what, in Christianity, means most to that person.

Em outra obra, Routley reforça a ideia de que a adequação do canto deve acontecer no nível da capacitação musical da congregação:

(…) but what we have lost sight of is the fact that convention also means people meeting each other. In the church people do just that, and the meeting significant for our purpose is the meeting between those who are musical and those who are not. If there is no ground upon which they can agree, church music becomes useless.

Joseph Gelineau, que escreveu inúmeros salmos tornados mundialmente conhecidos dadas as suas características de música simples e acessível, da mesma forma concluiu que a linguagem musical do canto sacro deve possuir marcas da cultura musical vigente na comunidade, ou seja, deve ser simples e comum, sem cair na vulgaridade: “A melodia mais simples, bem cantada, pode trazer à liturgia toda a viva e sóbria beleza que lhe convém. A maior obra-prima, executada com esforço ou pretensão, pode, ao contrário, soar estranhamente falsa para a liturgia”.

Carl Halter, de procedência luterana, escreveu:

The music for Christian hymnody is by definition the music of the people. Its closest musical relative in the secular realm is the folk song rather than the art song (…) it is music of the people, for the people, even if not always by the people…

Edward Dickinson também já concordava com esse ponto de vista, chamando a atenção para o fato de que o nível da música não devia estar aquém daquele produzido na comunidade circundante.

Em termos de Brasil, João Faustini constatava no ano de 1968 a necessidade de contextualizar os cantos “aos problemas de cada dia”, pois os hinos tradicionais majoritários em hinários protestantes brasileiros enfatizavam o “pietismo um tanto egocêntrico”, centralizando a principal teologia de seu acervo em “Quando ao fim da jornada eu chegar…”. Perguntava o ensaísta: “(…) onde estão os hinos a respeito do Cristianismo numa era industrial, de poluição, de grandes cidades, de favelas, de grandes prisões, de guerra e injustiça social?” Mais adiante, considerou oportunas algumas adaptações do canto tradicional, entendendo que “o reexame permite que nossa fé seja mais real, mais racional e mais despida de mitos”.

Os anglicanos trouxeram para o Brasil a liturgia da Inglaterra e, influenciados pelos norte-americanos, acabaram também desenvolvendo um culto distante do cotidiano das pessoas. A liturgia consistia na tradução do rito herdado dos ingleses. O apego à tradição litúrgica e o medo de tornar-se uma Igreja Católica Romana distanciaram o anglicanismo do povo brasileiro. A insensibilidade dos líderes para com os problemas contextuais do povo na nova terra e a pregação proselitista dos seus missionários colocaram-no num patamar similar ao das outras denominações protestantes. Ao invés de falar sobre os problemas sociais, políticos e econômicos que preocupavam o povo, falava de uma vida eterna distante no céu. Segundo Jaci Maraschin, a igreja precisa sair dessa alienação, mostrando, na liturgia, expressões paralelas às utilizadas pelo povo no seu dia-a-dia. Tanto a forma quanto o conteúdo do culto devem falar a linguagem da pessoa comum. É por isso que o autor sugere que se reformule o canto, se se deseja renovar o culto, através da empatia popular:

A renovação litúrgica anglicana, para contextualizar, precisa não apenas se relacionar com os problemas sociais, políticos e econômicos de nosso continente, mas também deve procurar as possibilidades de se relacionar com a cultura dos nossos povos, aprendendo com eles a cantar, a tocar seus instrumentos e a transformar esse “ruído” em louvor ao nosso Deus.

Buscando analisar a realidade do presente momento protestante brasileiro, Rubem Amorese, ao avaliar o Hinário Evangélico, constata que a média do período em que viveram os compositores dos hinos desse hinário fica em torno de 1920. Ao enfocar o evangelho no contexto de uma cultura urbana, ele pergunta:

Até que ponto esses hinos podem ajudar-nos a celebrar a vitória do Senhor Jesus sobre as drogas, a opressão do metrô lotado, a tentação do sexo livre, o descompromisso da amizade colorida, a facilidade do “trem da alegria”, a naturalidade do vídeo-cassete pornográfico ou a enganosa solução da clínica de abortos?

Para Amorese, a celebração do evangelho “é vivenciar uma nova realidade existencial no âmbito pessoal, social, espiritual e cósmico”.

Vistos os conceitos sobre culto e defendida a ideia de que culto é o encontro da comunidade com Deus, a música que servirá para essa concepção é aquela escolhida através dos critérios que prestigiam a participação popular. Não se está somente defendendo aquela participação popular que leva os fiéis a serem agentes ativos da ação litúrgica. É mais que isso: é principalmente advogar a música concebida para ser entendida e facilmente cantada pelas pessoas ordinárias, analfabetas na arte musical, que vão aos cultos. Mas há um aspecto que não pode passar desapercebido quando se fala em povo. Quanto a isso, existem “dois lados da mesma moeda”: de um lado está o apelo popular, aquilo que mais de perto interessa ao povo e que lhe é familiar; de outro lado estão as necessidades do povo ou lacunas a serem preenchidas, o que só uma liderança sensata poderá resolver a contento. O que se defende é que, tendo os critérios clareados, as pessoas envolvidas com a confecção de hinários e/ou escolha de cantos sejam sensíveis em coadunar aquilo que é necessário com o que é familiar e acessível ao povo em geral. E mais: na medida do possível, transferir essa acessibilidade aos conteúdos que forem considerados vitais para preencherem alguma lacuna e/ou contextualização. Para definir o papel que a música exerce nesse culto, achou-se a seguinte máxima: “Music is how to convert a collection of people into a community”.

6.2.3 – Observações conclusivas

Quando se fala em povo, não se está aludindo a obras vulgares, ordinárias e mal compostas. Entende-se sobretudo que são obras com boas estruturas musicais, mas acessíveis ao canto congregacional dos fiéis. Existe música composta que, por sua complexidade artística e dificuldade técnica, fica apenas acessível aos profissionais da área. Tais peças não podem fazer parte do acervo de um hinário ou ser introduzidas no culto cristão, pois estão distantes das possibilidades das pessoas comuns. Doran e Troegger enumeraram algumas características que tornam a música acessível à pessoa ordinária. A música “cantável” segundo eles, teria as seguintes feições:

Singability means a maximum range about an octave. The rhythm must not be too complex or tangled looking when it is printed on the musical staff. (…) the melody itself must be memorable – not just a string of notes that have been chosen to go along with a progression of chords. A good melody is marked by the sequential development of a musical idea which brings satisfaction to our ears, mind and heart.

Tomando-se como exemplo a música folclórica, podem-se traçar características pertinentes a essa música. Em geral, a música própria do povo tem um registro vocal que não excede o de uma oitava. Também não apresenta grandes saltos de intervalos em sua melodia, nem ritmo desconhecido pela cultura local. Apresenta, em sua melodia, frases não-extensas, com repetições e seqüências musicais usadas sensata e equilibradamente, de maneira que sua estrutura musical mais geral pode reproduzida e memorizada com facilidade. O ritmo é perfeito para o texto, sem produzir má prosódia, ou seja, os acentos tônicos das palavras são articulados em tempos fortes ou partes fortes de tempo, e os acentos fracos nos tempos fracos do compasso. O texto respeita as normas lingüísticas e está estruturado sem cacófatos, sem erros gramaticais, numa linguagem poética e não chula. Se vier impresso ou for exposto pelo retroprojetor, não haverá erros ortográficos nem será mostrado em tipos gráficos inalcançáveis pelos olhos da maioria. Existindo partitura, a colocação da letra obedecerá rigorosamente à nota musical à qual a sílaba pertence. O andamento da música, para sua execução, não é rápido demais, a fim de que as pessoas tenham tempo de respirar entre as frases, nem é lento em demasia, tornando o canto enfadonho e pesado. A harmonia a mais vozes, se houver, ajusta-se ao domínio das leis que regem a música tonal do mundo ocidental, com variedade harmônica que ressalte as cadências e estruture bem as frases. Enfim, não é música “ousada” que afugente o fiel, nem é “simplória” que exclua o senso estético e beire a vulgaridade

6.3 – A comunidade deve possuir uma teologia do culto

6.3.1 – Fenômenos anotados ao longo da história da música sacra

Inequivocamente é Lutero quem oferece uma legítima coadunação entre teologia do culto e teologia do canto. Sua posição teológica sobre o culto concebia-o sob três principais aspectos. Primeiro, considerava-o uma oportunidade para o louvor e adoração a Deus (teologia litúrgica):

Amado Deus, a ti louvor,
Honrado sejas com fervor.
Prostrados, eis-nos a adorar,
Tua honra, ó Deus, glorificar.
Em todo o tempo gratidão
Rendemos-te com devoção.
És Rei no céu, ó Deus Senhor,
O Pai, potente protetor.

O segundo aspecto era que os hinos eram instrumentos auxiliares para a devoção e piedade cristãs, beneficiando a educação cristã e a propagação do evangelho (teologia querigmática):

2 – Ensinam-se doutrinas vãs,
por homens inventadas.
Deturpam as palavras sãs,
na Bíblia bem lavradas.
Discordam entre si também,
confundem-nos com vil desdém,
brilhando na aparência.

3 – Senhor, ó vem fazer calar a tais ensinadores
que nos ensinam falsas aparências!
Ousados são em seu falar
e dizem quais doutores:
Nós temos a revelação,
decretos, leis e tradição;
da Bíblia somos mestres.

4 – Por isso diz o Santo Deus:
dos crentes afligidos
os brados sobem já aos céus,
ouvi os seus gemidos.
Meu Verbo mando com vigor
aniquilar a sua dor
e as hostes inimigas.

5 – Provada a prata é no calor,
no fogo acrisolada.
A sã palavra do Senhor
na angústia é confirmada.
Provado o Verbo pela cruz,
revela então poder e luz,
iluminando a terra.

Na tensão entre escolher a tradição e/ou a contemporaneidade, Lutero soube avaliar criteriosamente, optando pela forma de comunicação de acordo com o nível dos membros das diversas comunidades. Exemplo disso foi a maneira como resolveu manter os diferentes cultos. Eram três as possibilidades que oferecia: igrejas grandes, com uma liturgia mais tradicional, para onde acorriam pessoas mais bem educadas; nas igrejas de vilas, introduziu a língua vernácula, querendo fazer-se mais compreensível; para os ambientes domésticos, cultos mais espontâneos. Não perdeu de vista sua concepção teológico-doutrinária, a qual, sabiamente, propagou através de seus hinos.

Na história da Reforma, há um exemplo que reflete uma posição teológica que foi desastrosa para a música no culto, pois terminou por bani-la. Trata-se de Zwínglio, segundo cuja interpretação teológica humanística existiam dois tipos de culto: o culto em que as leis litúrgicas eram as que geriam toda a ação (culto do ser humano) e o que era centrado na Palavra de Deus (culto de Deus). Optava por este último culto, mas o entendia como sendo de domínio particular e não comunitário. A música, que Zwínglio conhecia melhor do que todos os demais reformadores, não podia suplantar o lugar da Palavra. Além disso, a execução musical de uma peça requisitava das pessoas uma concentração que fatalmente inibia sua efetiva e sincera participação no culto. Outrossim, na sua perspectiva de que a igreja havia decaído na Idade Média, decidiu que o modelo por excelência do culto deveria reiniciar a partir do NT e daquilo que os pais da igreja haviam pregado, interpretando os versos paulinos em que aparece a expressão “louvando de coração ao Senhor” como adoração interior, inaudível externamente e distinta da que os judeus faziam.

Os responsáveis pela grande mudança do enfoque teológico dado aos hinos na língua inglesa foram os morávios, dos quais os Wesley receberam influência. Aliás, na América, John já tinha sido advertido pelo júri de Savana por causa das alterações não-autorizadas que efetuou nos Salmos e nas composições de hinos, em virtude dessa influência. Por essa mesma causa, já os primeiros hinos publicados pelos irmãos Wesley para as reuniões devocionais não davam tanta ênfase ao calendário eclesiástico da Igreja Anglicana. O grande objetivo que tinham era sustentar a devoção cristã.

Quando se perde a razão teológica principal que fundamenta o culto cristão, pode-se cair em deformidades musicais que mutilam a compreensão de culto. Exemplo característico de uma concepção questionável de culto (culto = trabalho) foi aquela passada pelas campanhas evangelísticas empreendidas na América do Norte no século XIX às igrejas americanas protestantes livres, que, através de seus missionários, transplantaram para todo o mundo esse conceito de culto como trabalho, inclusive para o Brasil. Nas igrejas brasileiras protestantes não-litúrgicas ainda é forte o sentido de culto evangelístico, efetuado quase sempre no domingo à noite. Nesses cultos, os crentes “trabalham”, trazendo convidados não-conversos para participarem. Nessa ocasião, usa-se a linguagem horizontal não por causa de uma teologia koinoníaca, mas para falar ao não-crente sobre a necessidade de conversão. Um estudo dos hinários dessas igrejas revela um suporte teológico ainda preso aos ideais românticos. Sente-se a ausência de cantos fundamentados na teologia social ou na teologia da libertação (mesmo que esta só tenha aparecido a partir dos anos 70), que representam a teologia koinoníaca. Suspeita-se que isso ocorra ou porque essas denominações ainda estão “engatinhando” nessa área, ou porque não podem falar publicamente de teologias que não praticam. Muitas dessas igrejas vivem mais a teologia escatológica do que a social, ou, como disse Antônio Mendonça, estão mais no “além” do que no “aqui e agora”:

A mentalidade conservadora e individualista do protestantismo, condicionada e alimentada pelo tripé escolasticismo-pietismo-apocaliptismo, afastou-o dos movimentos sociais que, ao longo de um século, mudaram a fisionomia do Brasil. Daí, sua quase nula presença na política, na cultura e na participação efetiva nos movimentos de mudança social.

Este não é o caso das igrejas protestantes históricas episcopal e luterana, que têm publicado com regularidade cancioneiros para acolher a teologia do social, como O Povo Canta , da IECLB, e o Novo Canto da Terra, este um empreendimento de um grupo de pessoas ligadas ao IAET.

Nos dias atuais, existe a insistência numa prática que remonta aos primeiros tempos do cristianismo, respaldada pela teologia koinoníaca e enfatizada por segmentos cristãos distintos. Existe uma ala mais atual, nas igrejas protestantes não-litúrgicas e dentro da Católica Romana, que tem priorizado a comunhão entre os irmãos, o que faz com que se estruture o culto de forma diferente. O movimento nasceu nas igrejas pentecostais-carismáticas. É difícil definir, no presente momento, que tipo de cantos estão sendo empregados aí, mas se desconfia que sejam aqueles que têm a mesma procedência. Quanto à influência dos cantos carismáticos, na opinião de Felipe Mesquita, a igreja protestante histórica tem sofrido o que chamou de “esclerosificação” do culto. Acha a contribuição carismática “eficaz e inestimável”, pois ela acrescenta “espontaneidade” e faz com que se pense mais acerca do “sentido de festa” que o culto tem. Embora com todo o respaldo bíblico assinalado, a teologia koinoníaca, que tão intensamente tem influenciado o culto e o canto de igrejas protestantes históricas e até da Católica Romana, precisa de uma reflexão mais séria, nesses recintos onde tal prática tem sido assimilada há pouco, para que as características denominacionais dessas igrejas não venham a se fragilizar ou sofram danos históricos irreparáveis.

No século XX, as igrejas litúrgicas protestantes e a Católica Romana têm-se movimentado no sentido de chegar a uma unidade, inclusive com a promoção de cultos em que seguem uma liturgia ecumênica. Desses encontros têm brotado inúmeros cantos, dos quais o hinário Thuma Mina, analisado no primeiro capítulo, é excelente depositário. Mais uma vez crê-se que a teologia que privilegia a koinonia tem sido a norma condutora desses encontros e, por conseguinte, do canto. Geoffrey Wainwright considera que o movimento litúrgico voltado para o ecumenismo tem favorecido o entendimento das diversas igrejas em razão de promover liturgias comuns, além de fazê-las restaurar os sacramentos nas suas próprias fileiras. Os hinários surgidos na década de 60, cujas edições foram intensificadas nas décadas seguintes, mais os centros ecumênicos que fomentam a liturgia e o canto, como Taizé, na França, o ministério episcopal Fisherfolk, nos Estados Unidos da América, e a Comunidade de Iona, na Escócia, testemunham e disseminam essa prática de aproximação das pessoas, dando atenção ao canto.

O documento The Milwaukee Symposia for Church Composers: a Ten-Year Report (MSCC), de 1992, estudando as adaptações que deveriam ser efetuadas na música tradicional da Igreja Católica Romana para se ajustar às novas exigências decorrentes do Concílio Vaticano II, chegou à seguinte conclusão:

A theology of Christian ritual music is necessary if we are to adapt traditional music forms to renewed liturgy, to forge new forms and to shape our ritual music so that it is appropriately united to the liturgy. Such a theology is founded on the pastoral conviction that music shapes the relationship of believers to God and to each other. These most cherished relationships will be strengthened when we understand how music serves as a unique language of faith.

Em qualquer tipo de concepção teológica do culto, não se pode ficar distante da razão principal que faz o povo se congregar num determinado local e num horário certo para o culto. A teologia a adotar deve primeiramente fundamentar a concepção de culto, para depois atingir o canto desse culto. Conhecer os motivos pelos quais o povo se congrega para cultuar, defini-los e ordená-los é tarefa que precede a escolha dos cantos de um hinário que será usado nesse culto.

6.3.2 – Considerações teológico-musicais

A fim de selecionar o acervo para um hinário, é necessário que a liderança envolvida defina que conceitos teológicos sobre o culto deseja valorizar:

A third reason for the strong feelings Christians have about church music is the importance it plays in both worship and faith development. It is not an exaggeration to say that many Christians learn their theology from the hymns they sing. Hymns shape, ratify, and proclaim a worshiper’s service experience of God.

James White prescreveu pelo menos “três normas” a serem usadas na seleção de cantos para os recintos cristãos:

If the art forms become simply toys that we enjoy playing with, they can be demonic and destructive. And it is very likely that this is what will happen if we do not think through the pastoral, theological, and historical norms of Christian worship.

Ao descer à terra em forma de ser humano, Deus revelou-se de maneira clara, de modo compreensível. Na perspectiva teológica, o quadro da encarnação divina transmite três qualidades básicas: comunicação, relevância e conteúdo. A música usada no culto deve da mesma forma assegurar comunicação. A comunicação da mensagem cristã tem que ser feita de forma que as pessoas comuns possam entendê-la e, para isso, essa música precisa aproximar-se do nível de compreensão dessas pessoas:

The incarnation suggests that God came to man in a form to which man could relate. Relevancy is important in that there must be some common ground between parties. A congregation’s musical profile must be taken into account in choosing music. It is imperative that there be a common musical frame of reference between church music and the listener.

Essa clareza, em termos musicais, só será obtida se a música se tornar relevante para a cultura onde está, acessível à congregação. Segundo Calvin Johansson, para ser relevante, essa música precisa possuir as mesmas qualidades artísticas universais adotadas por Deus na criação do mundo: coerência, unidade, continuidade, dominância e variedade. Além disso, por ser análoga ao evangelho, sua forma deve incorporar o conteúdo evangélico mostrando verdade, dignidade, integridade, pureza, beleza, graça, excelência e valor. Sendo a maior tarefa da igreja comunicar o evangelho à humanidade de forma inteligível, espera-se que também a linguagem musical esteja no nível de compreensão da congregação.

Ao fazer uma análise das assembléias cristãs partindo da observação de como vivia a igreja primitiva, Gelineau notou existirem três aspectos de seu funcionamento: o anúncio do evangelho (a Didascália ou “ensinamento dos apóstolos”), o sustento mútuo (koinonia) e o culto (oração e sacramento). Embora no decorrer da história tenha havido muitas transformações, a partir da reforma do Vaticano II a Igreja Católica Romana quis tornar a dar equilíbrio às três características, principalmente ao restituir o prestígio à pregação da Palavra. David Pass também traçou uma teologia para uma igreja cristã comprometida com sua missão. Sua posição é similar à de Gelineau ao distinguir três formas de expressão da igreja primitiva: a querigmática, que dá relevo à proclamação da Palavra, a koinoníaca, que valoriza a comunhão entre as pessoas de uma mesma congregação, e a litúrgica, em que as pessoas falam a Deus através das orações e do louvor. Fundamentando-se em Cl 3.16, versículo que Pass entende ser a “versão musical” de At 2.42, o autor traça uma concepção teológica paralela para a obtenção de uma teologia para a música do culto. Ele compreende que a natureza da música sacra é determinada pela natureza da igreja e que o modelo ideal, na óptica humana, baseia-se também na comunicação.

Para ilustrar a questão da comunicação e de sua relevância para que o culto seja compreensível, veja-se o seguinte exemplo da atualidade. Mark Jaeckel, músico norte-americano da Trinity Lutheran Church, em Orlando, na Flórida, questionado por alguns, que acharam sua música muito similar àquela produzida nos bares de esquina, assim se explicou:

We’re trying to let people know that Lutheranism is not this old, stodgy religion but it’s a religion that we want to be part of their everyday life. (…) Martin Luther – the 16th-century church reformer – rewrote bar songs into hymns so people would know the tunes. That Theology continues to come down.

A música sacra não tem uma existência autônoma. Robin Leaver constatou essa interdependência entre música e teologia:

Music and theology are interrelated and interdependent. The Bible is concerned with practical theology, the understanding and explanation of the interaction between God and man, and also with practical music, the accompaniment to that interaction. Theology prevents music from becoming and end in itself by pointing man to its origins – in the doxology of creation. Music prevents theology of becoming a purely intellectual matter by moving the heart of man to consider its ultimate purpose – the doxology of the new creation.

É preciso determinar uma teologia de compreensão de culto para poder usá-la e escolhê-la criteriosamente. A concepção teológica do culto vai ajudar para que a música seja escolhida não somente pelos seus méritos de boa composição estrutural, ou porque atende ao gosto pessoal daquele que a escolhe, mas pelo significado que tem para a comunicação querigmática, litúrgica e koinoníaca.

6.3.3 – Observações conclusivas

Os três suportes teológicos oferecidos por Gelineau e Pass (teologia querigmática, koinoníaca e litúrgica), se usados equilibradamente, podem contribuir na seleção dos cantos de um hinário ou de um culto cristão. As comissões dos hinários e os responsáveis pela escolha de cantos de uma comunidade cristã deveriam dar atenção ao embasamento teológico que prestigia os três aspectos da comunicação relatados anteriormente. São eles: a música do culto deve comunicar o evangelho, deve incentivar a comunhão entre irmãos e ser canal para as orações e o louvor a Deus. Os textos dos cantos podem ajudar nesta tarefa, principalmente se se cuida de sua linguagem. Outrossim, para o equilíbrio das três formas de comunicação, há de se estar atento à proporcionalidade a ser retida de cantos que expressem equilibradamente os três aspectos.

Usa-se a linguagem vertical para o ensino (proclamação da Palavra) e/ou admoestação, e para o louvor a Deus. Aqui, espera-se que alguém transmita uma mensagem a outro alguém. Com o uso da linguagem vertical, imagina-se beneficiar primordialmente os ouvintes, dos quais, com a mensagem, se quer obter resposta. Prestam-se bem a essa teologia querigmática de culto os hinos que usam as próprias palavras da Bíblia. Outros dois exemplos são os hinos de adoração e louvor (doxológicos) e aqueles que expressam orações. Nesse caso, também é empregada a linguagem vertical e monodirecional: o crente é o sujeito da comunicação, sendo Deus o receptor da mensagem.

A música de koinonia usa essencialmente a linguagem da comunicação horizontal e caracteriza-se pela informalidade. Nesse tipo de comunicação, as pessoas falam a pessoas: “The function of koinoniac song is to focus on the needs of people in a caring and loving way (…) It has to match stylistically the music that people are comfortable with, both as listeners and as active participants in the singing.” Essa característica tem sido muito usada nos cultos dos carismáticos, que têm reforçado a importância da unidade comunitária através de grupos menores de crentes, por eles denominados de “células”, que se reúnem para estudar a Bíblia, orar e trocar experiências da vida cristã cotidiana que ajudem no fortalecimento da fé e da espiritualidade do outro. Chama-se a atenção para o fato de que esses cânticos devem ser entoados por grupos que se conhecem mais intimamente. Eles são muito eficazes nessas situações, mas podem ser altamente constrangedores se usados por uma congregação que não dá prioridade à teologia da comunhão entre os crentes. Tal linguagem, que fala verticalmente, também é característica do “hino de apelo”, usado nas reuniões avivalistas, chamando os não-cristãos à conversão.

São interessantes, para uma teologia litúrgica, os hinos de adoração e louvor (doxológicos) e aqueles que expressam orações. Neste caso, também é empregada a linguagem vertical e monodirecional: o crente é o sujeito da comunicação, sendo Deus o receptor da mensagem.

6.4 – A comunidade deve respeitar suas raízes históricas, buscando sua identidade

6.4.1 – Fenômenos anotados ao longo da história da música sacra

Um dos primeiros que se preocupou em resgatar práticas antigas do canto foi Ambrósio. Ele trouxe de volta a maneira de cantar os salmos através de responsos e antífonas, forma herdada da tradição judaica, mas também não hesitou em usar melodias mais populares, adaptando a elas os próprios Salmos. Foram os seus cantos e ainda os cantos escritos segundo o modelo ambrosiano que fixaram as principais doutrinas sobre a Trindade e a fé dos que eram perseguidos por causa do evangelho.

Os irmãos Wesley souberam avaliar bem o que reter da tradição histórica dos cantos. Como amavam os salmos e hinos de Watts, peças literariamente muito bem construídas e por isso valorizadas, conservaram-nas em muitos dos hinários que publicaram. Embora estivessem voltados ao movimento de reavivamento e tivessem composto muitos hinos destinados às campanhas de evangelização, seus hinários estão cheios de hinos para todas as situações, inclusive os que mantiveram da Igreja Anglicana. Os Wesley colocaram-se teologicamente numa linha intermediária, evitando tanto o que julgavam errado nas doutrinas da Igreja Católica quanto os extremismos das igrejas da Reforma. Desejando valorizar a Eucaristia, retomaram os cantos gregorianos, agora traduzidos para o inglês. Era tão intenso o ardor desse movimento pelos hinos medievais que até o canto congregacional foi levado a adotá-los, restaurando os cantos litúrgicos da Igreja Anglicana.

O Movimento de Oxford inspirou a confecção de novos hinários com os cantos medievais, tendo inclusive despertado grupos que se organizaram em sociedades para o aprimoramento desse canto. Em 1861, nascia o Hymns Ancient and Modern, hinário que vigorou por mais de 100 anos, tendo sido o primeiro publicado com música e letra casadas na impressão. Tudo isso aconteceu em virtude de professores ligados à Universidade de Oxford terem sentido que a história da igreja, seus cantos e tradições poderiam-se esvair, deixando a denominação desprovida de sua identidade litúrgico-confessional. Na segunda metade do século XIX, as influências desse movimento atingiram outras denominações cristãs, afetando a confecção de hinários. Os congregacionais e os batistas organizaram seus hinários seguindo a divisão do Hymns Ancient and Modern: a primeira seção com melodias típicas anglicanas, a segunda com litanias e salmos, a terceira com antemas e cânticos para o livro de oração. Também alguns que haviam trabalhado no hinário anglicano foram chamados para ajudar na confecção de hinários de presbiterianos e congregacionais. A sua influência atravessou as fronteiras da Europa e atingiu algumas igrejas americanas, que também se interessaram por resgatar os cantos em latim.

Na primeira metade do presente século, a Igreja Católica Romana promulgou dois decretos que mantiveram a tradição do canto gregoriano: o Motu Proprio de 1903 e o Mediator Dei de 1947. O primeiro decreto proibiu a música no estilo operístico então vigente. O de 1947 fez concessões à contextualização, permitindo um estilo mais moderno de composição. No Brasil, em decorrência dessa encíclica, foram organizados seminários e cursos para o cultivo da tradição do canto gregoriano. Ao promulgar a SC em 1963, o Concílio Vaticano II continuou enfatizando a importância de reter o canto gregoriano e estimulou que os seminários oportunizassem o estudo desse canto. Também sugeriu que os cantos de eras passadas fossem mantidos para os textos em latim, desde que se respeitassem as novas normas da liturgia. Quanto ao acompanhamento instrumental, lembrou que seria sensato não permitir que os instrumentos encobrissem o texto. Embora fosse forte o texto a respeito das adaptações do culto à cultura local, o decreto não esqueceu de valorizar a tradição musical, que “deu à Igreja um verdadeiro tesouro para o culto divino”.

O tipo de liturgia adotada pelas igrejas protestantes não-litúrgicas afetou muito diretamente o seu canto. A própria história dos anabatistas, aliada às posições de Calvino e Zwínglio acerca da música sacra, ajuda a justificar aquilo que as igrejas livres adotaram na “liturgia”. A justificativa dos anabatistas centralizava essa escolha no que podia ser respaldado pelas Sagradas Escrituras. Como o NT pouco informa acerca do tipo de música a ser usado nem fala de como essa música deve ser usada, não houve embasamento histórico que consolidasse uma tradição litúrgica de culto. Essa liberdade litúrgica resultou numa liberdade maior na área musical dessas igrejas, que acabou por apagar as marcas da tradição do canto nelas. Atualmente, nas igrejas protestantes não-litúrgicas, o maior vínculo que se tem com o passado está nos hinos da era avivalista, datados do século XIX, estruturados segundo as normas românticas do período.

Foi no hinário American Catholic Book que se achou uma justificação de seleção de texto que ilustra bem uma das preocupações do comitê acerca da tradição da igreja:

But for Catholics, the important principles affecting hymns are the needs of the faith, the principles of the liturgical renewal. The main ideas that influence our texts are those that come from the Church herself, not the wider culture. Renewal of hymnody is a question of discovering our own roots, our own origins in faith, our most essential and central beliefs.

6.4.2 – Considerações teológico-musicais

O cristianismo não é algo completamente novo, antes tem sido sedimentado ao longo de muitos séculos. Muito antes da concretização da vinda de Cristo ao mundo, ela foi profetizada durante largo espaço de tempo e esses registros acham-se no AT. Segundo relato bíblico, em tempo oportuno, as profecias veterotestamentárias cumpriram-se com a vinda de Jesus Cristo ao mundo, em forma de homem, para uma missão redentora, ou seja, reatar a relação entre o ser humano e Deus, rompida no princípio da criação do mundo com o pecado. Pelo que se viu no segundo capítulo, o canto dos primeiros cristãos não era totalmente uma novidade, pois herdou práticas cúlticas dos judeus já milenarmente solidificadas. O cristianismo, portanto, possui fortes raízes em tempos remotos:

While there is nothing inherently wrong with change, there is something wrong with the wholesale rejection of tradition. Christianity is not just new, it is classic language, time-honored and time-polished expression. Christianity is not just quick news, it is hard news, it is historically validated news, and it is longterm news.

Um dos entrevistados do estudo de caso deu uma definição bastante pertinente de música sacra tradicional. Ao explicar a razão pela qual essas músicas ainda faziam parte dos hinários atuais, declarou: “Porque elas sofreram o teste do tempo e foram aprovadas”. As comissões que se empenham em escolher o acervo hinódico de hinários e as equipes de liturgia devem considerar que há uma história não somente a ser preservada, mas também transmitida à geração presente e futuras gerações. O passado precisa ser trazido ao presente, ao mesmo tempo em que se fazem as devidas contextualizações, para que esse passado não seja um simples “museu”, depósito de “relíquias sem significação”. O canto cristão criteriosamente preservado produz uma identidade comunitária que alimenta a fé e renova os laços que dão sentido à existência do grupo, principalmente de sua identidade confessional.

Ao avaliar a tensão entre tradição e contemporaneidade, Wainwright chegou à conclusão de que o mau uso da tradição não é salutar. Também concluiu que o uso de linguagem vulgar não seria de bom alvitre. O conflito foi descrito por ele da seguinte forma:

Christianity has a history and a memory, and the psychological power of traditional associations is great; but archaisms in liturgy threaten intelligibility. Christianity intends to actualize the gospel in every situation; but worship should not fall into the language of barber’s-shop conversation. Official revisions incline to the traditional, unofficial compositions incline to the contemporary.

A história da música sacra na Idade Média é conseqüência da postura rígida e política da igreja que via o culto como sacrificium, o ser humano como protagonista de um papel equivocado de personagem principal durante a liturgia (o sacerdote é quem vive esse papel). Também reflete o distanciamento do povo nesse acontecimento e a profissionalização do canto, através da participação exclusiva de monges nele. Em termos gerais, o canto gregoriano predominou como “a verdadeira música sacra”, a “tradição” a ser retida a qualquer preço, tanto que a Igreja Católica, na Contra-Reforma, impôs como oficial a música polifônica de Palestrina. Segundo os critérios aqui eleitos, não é essa a forma que se apregoa para a manutenção de uma tradição. Mesmo impregnada da tradição eclesiástica, essa música, além de não passar pelo crivo da acessibilidade popular, é sustentada por uma concepção não-condizente com a postura de que “culto é o encontro de Deus com a comunidade”. Durante o estudo empreendido através da história da música, constatou-se que a tensão entre reter a tradição e/ou inovar buscando alternativas de contextualização tornou-se muitas vezes um problema que colocou em posições distintas e até contrárias líderes eclesiásticos e laicato. A insensibilidade dos líderes para com as necessidades populares pode trazer conseqüências danosas para o canto. Por um lado, existe toda uma história da igreja e de procedimentos tradicionais amplamente aceitos e formatados. De outro, há a necessidade de atualização dos temas e até das estruturas cúlticas, em que os cantos se acham incluídos, para que possam abrigar os novos conceitos teológicos. A liderança equilibrada saberá discernir o que reter da tradição, principalmente em função da preservação de valores passados que dão identidade ao grupo. Saberá, se for sensível e considerar os critérios da acessibilidade popular e da teologia, o que modificar para que esse mesmo grupo mostre sua adequação aos tempos e necessidades modernos. O que deve permanecer evidente para os que estão encarregados da escolha de cantos é que as comunidades cristãs possuem marcas históricas, muitas vezes conquistadas arduamente, que não devem soçobrar ante modismos transitórios ou sofrer influências inescrupulosas.

6.4.3 – Observações conclusivas

É muito difícil falar de tradição e identidade de uma comunidade isolando sua tradição litúrgica de sua tradição hinódica. Quando se tem delimitada a tradição litúrgica, a tarefa de reconhecimento dos cantos próprios para essa liturgia é agilizada. É por isso que as igrejas de tradição litúrgica, ou seja, as que seguem um padrão litúrgico mais rígido, justamente por estarem embasadas numa prática há bastante tempo familiar à comunidade, podem falar de uma tradição do canto com mais facilidade.

Toda comunidade cristã possui um corpo de doutrinas que a distingue das demais. O canto nas igrejas cristãs tem ajudado na manutenção dessas marcas distintivas. Quando se olha um hinário denominacional, é possível determinar que assuntos e que teologia têm sido priorizados. O hinário serve como um “atestado” daquilo que é mais importante na denominação, revelando os seus principais postulados doutrinários bem como as tendências teológicas abraçadas. O canto dá identidade à comunidade: mostra seu passado e seu presente. Desnuda os conceitos cristãos do grupo, revela suas preocupações e define sua identidade confessional.

Por outro lado, entretanto, existe um acervo hinódico comum a todas as igrejas cristãs que deve ser valorizado. Atualmente, os esforços do movimento ecumênico têm sido justamente no sentido de realçar mais os pontos convergentes das comunidades cristãs e não suas diferenças. Sabe-se que, durante cerca de 1500 anos, a história da igreja cristã ocidental foi uma só. As divisões e distinções só viriam com a Reforma de Lutero. Há, portanto, um passado histórico comum bastante longo e intenso, que permite cantos comuns a respeito de temas comuns. Sendo assim, a música tanto pode servir a uma causa “particular” de caráter denominacional, ajudando a solidificar doutrinas específicas do grupo, quanto pode servir a uma situação maior, que celebra um passado histórico ao qual todas as denominações cristãs ocidentais se ligam.

Se de um lado o canto tem servido para determinar características específicas e confessionais de um determinado segmento cristão, por outro ele serve para unificar a fé de todos os cristãos, mostrando à humanidade um cristianismo forte e desejoso de cada vez mais aprofundar a comunhão e a amizade fraternas de todos os cristãos. O estudo da tensão entre tradição e contemporaneidade na música sacra ocidental mostrou que é importante manter a tradição dos cantos, principalmente quando seitas estranhas rondam o grupo ou quando se quer acentuar um aspecto da verdade cristã necessário para a manutenção da identidade dessa comunidade. Seja em comunidades locais, com seus próprios credos confessionais, seja na cristandade em geral, os cantos dão identidade e solidificam as raízes de uma história cristã comum.

Outro aspecto a ser considerado diz respeito às boas lembranças que os hinos evocam, em geral experiências vividas na infância. No quinto capítulo, por exemplo, foi visto que os protestantes brasileiros cedo deram-se conta da importância do estudo da Palavra de Deus pelas crianças, pois sabiam do valor daquilo que é retido ainda em tenra idade. Por essa razão, implantaram no país as escolas dominicais tão logo aqui chegaram. Nas entrevistas da pesquisa social, relatada no primeiro capítulo, alguns disseram o quanto as músicas aprendidas na infância ainda lhes falavam ao coração e o quanto era salutar lembrarem-se desses cantos. Os cantos, assim repetidos, assemelham-se a ritos, solidificando o sentido de “pertença” da pessoa, dando-lhe segurança de que faz parte do grupo e de que seu lugar ali é estável. O Deus de seus pais é o seu Deus e esse mesmo Deus da infância ainda hoje pode atuar igualmente em sua vida.

6.5 – A seleção de cantos deve visar o ensino e a solidificação das doutrinas

6.5.1 – Fenômenos anotados ao longo da história da música sacra

Quando se olha retrospectivamente para a história da igreja cristã, é fácil reconhecer que, bem no seu início, quando as comunidades foram perdendo as características do culto da sinagoga e ganhando novas ênfases, o canto acabou adquirindo nova estruturação que lhe deu uma conotação mais espontânea, com caráter improvisatório. Influenciado pela glossolalia, pela ênfase na koinonia e limitado a espaços domésticos, esse canto passou a enfocar novos temas, diferentes dos Salmos. Embora as informações do NT sobre a música desses primórdios sejam bastante limitadas, sabe-se que ela existia, tendo sido prestigiada nos escritos paulinos. Os cristãos cantavam os novos hinos e cânticos espirituais para avivar os recentes e memoráveis feitos da morte e ressurreição do Senhor Jesus Cristo. É por essa razão que Paulo usa a expressão “instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente”. Era necessário repassar repetidas vezes o inusitado acontecimento através de palavras e canto, para que, mesmo sofrendo perseguição, a igreja cristã fortificasse e moldasse sua fé. Os cantos eram novos, porque novos eram os fatos. Além disso, serviam ao ensino, principalmente porque grande parte dos conversos era gente iletrada, que precisava desse reforço. Coube a Plínio, o Jovem, governador da Bitínia, um dos registros que ficou célebre: trata-se de uma carta que escreveu ao imperador Trajano, em que narrava o crescimento dos cristãos. Nesse documento, que data de cerca do ano de 112 d.C., o governador descreveu os hábitos cúlticos dos cristãos, pois informava que eles se reuniam nas manhãs de domingo, para cantar louvores a Deus, em antífonas. Entre esses cantos, citem-se três: o Ter-Sanctus (baseado em Isaías 6); o Gloria in Excelsis (o canto dos anjos); o Lucernarium (usado na cerimônia do acender das luzes, na Vespera). Os dois primeiros exemplificam o tipo de canto usado por uma igreja que, embora vivesse na ilegalidade, já podia se sentir vitoriosa e celebrar o Deus presente na história humana. S. Basílio (330-379 d.C.) encontrou na tradição dos Salmos material relevante para o ensino da fé cristã: “(…) the psalms are provided with melodies to attract children and youths to the end that their souls and minds may be enlightened while, as they think, they are surrendering themselves to the pleasures of music.”

O canto ambrosiano entoado em Milão tinha como finalidade combater as heresias da rainha Justina e dos defensores do arianismo que a seguiam e firmar a fé autenticamente cristã. Mais tarde um episódio, que incluiu a participação de sua mãe, Mônica, seria contado por Agostinho numa narrativa historicamente importante. Os cantos ambrosianos foram muito importantes para a igreja cristã, tanto que perduraram por longo tempo e influenciaram fortemente o canto gregoriano. Um breve panorama da música do período, que vai dos primórdios do cristianismo à sua estruturação inicial dentro da liturgia, permite afirmar que tanto a tradição quanto a contemporaneidade foram importantes na sedimentação de fé e doutrina cristãs. As pessoas usavam uma ou outra forma: os Salmos lembravam a fé do AT e recordavam o Deus da história, verdades que não podiam ser esquecidas; os novos cantos iam sendo compostos e usados para solidificar os novos conceitos inerentes aos postulados que ora iam sendo formados.

Não se pode falar do valor do canto para o ensino durante o período de vigência das scholae cantorum, a não ser que se olhe a questão sob a óptica dos que faziam parte dessas escolas. Essa prática, porém, não faria jus ao primeiro critério eleito, o povo. Como a grande maioria dos cristãos estava fora do alcance dessa instituição, omite-se aqui esse período e passa-se direto para a Reforma.

No prefácio do hinário wittenberguense de 1524, Lutero explicou claramente a razão pela qual foi motivado a publicar o hinário: ensinar a Palavra de Deus aos jovens, para que tivessem material de qualidade que pudesse substituir os cantos que considerava profanos:

(…) Além disso foram arranjados a quatro vozes por nenhuma outra razão senão o meu desejo de que a juventude, a qual afinal de contas deve e precisa ser educada na música e em outras artes dignas, tenha algo com que se livre das canções de amor e dos cantos carnais, para em lugar destes aprender algo sadio, de modo que o bem seja assimilado com vontade pelos jovens, como lhes compete. Também não sou da opinião de que pelo Evangelho todas as artes devam ser massacradas e desaparecer, como pretendem alguns pseudo-espirituais. Na verdade eu gostaria que todas as artes, particularmente a música, estivessem a serviço daquele que as concedeu e criou. Por isso eu peço que todo cristão de valor receba isto de bom grado e ajude a promovê-lo, caso Deus lho tenha concedido igualmente ou até mais. Infelizmente ocorre que de qualquer maneira todo mundo é demasiadamente relaxado e esquecido no tocante à educação e instrução da pobre juventude, de modo que não é necessário ainda dar motivo para semelhante negligência.

No prefácio que escreveu para o hinário de Babst, de 1545, Lutero considerou que o culto do NT, diferentemente daquele do AT, possibilitava uma celebração mais festiva. Ao comentar esse hinário, sugere que as mudanças sejam efetuadas para que o povo “tenha prazer na fé”:

(…) Por isso os tipógrafos fazem muito bem em imprimir bastante hinos bons, tornando-os atraentes para as pessoas por meio de tudo quanto é ornamentação, para que sejam estimuladas a ter prazer na fé, gostando de cantar. Neste sentido esta impressão de Valtim Babst [“papa”] está elaborada de forma muito interessante; Deus permita que desta forma se cause grande prejuízo ao papa romano, que não fez senão causar choro, pesar e sofrimento em todo mundo por meio de suas malditas, insuportáveis e execráveis leis, amém.

Lutero viu na tradição dos cantos uma oportunidade ímpar de ensino e foi por esse motivo que decidiu manter o latim em cultos de centros maiores. Era nessa ocasião que os jovens, desejosos de trabalharem em áreas missionárias, poderiam ser treinados em outras línguas e familiarizar-se com a possibilidade de diversidade litúrgica, já que mantinha cultos também na língua alemã.

Da atualidade, Lutero resolveu aproveitar os temas da Reforma, trabalhando-os em novas composições, muitas das quais de sua própria autoria. Com isso quis que o povo se familiarizasse com as verdades bíblicas que defendia. Observe-se o exemplo de uma estrofe de um de seus hinos falando da graça de Deus que substitui o conceito de salvação pelas obras:

Perante ti não têm valor/ virtudes e cuidados;
somente tua graça e amor/ absolvem dos pecados.
Ninguém se pode enaltecer;/ a ti devemos só temer,
vivendo em tua graça.
Por isso não confiarei/ em minha dignidade;
somente em ti me apoiarei,/ em tua fidelidade.
No Verbo dás-me o teu vigor,/ consolo e amparo em toda a dor.
Tu és minha esperança.

A colaboração didática de Watts – considerado, juntamente com os irmãos Wesley, os fundadores da hinodia em língua inglesa – para o canto do culto cristão pode ser percebida facilmente ao se analisar a estrutura temática do seu hinário de 1719. Acham-se ali dez seções: o Eterno Deus; o Senhor Jesus Cristo; o Espírito Santo; as Escrituras; a igreja cristã: vida e culto; a vida cristã; dias e eventos especiais; o tempo e a eternidade; a morte e a ressurreição; o juízo final. Embora a maior seção seja a que fala sobre a igreja e o culto, as seções sobre as Escrituras e sobre Jesus Cristo mostram as principais ideias doutrinárias defendidas por Watts. Na seção sobre as Escrituras, Watts abordou a natureza das Escrituras, o evangelho e as doutrinas. As doutrinas ali contidas são as seguintes: a graça de Deus; a queda do ser humano e a redenção; a justificação; o perdão; a comunhão com Deus; a santificação; a perseverança e a salvação. Todo o hinário é composto de salmos escritos na nova linguagem “cristianizada”, os quais, como se viu, falam das doutrinas mais fundamentais. Um dos pontos fracos do hinário seria o fato de os cantos não abordarem os ensinamentos de Jesus, justamente em razão de uma certa limitação imposta por serem paráfrases dos Salmos. Watts usou aquilo que lhe parecia mais efetivo e atual para cobrir e solidificar os mais diferentes assuntos pertinentes ao corpo de doutrinas da igreja puritana da época. Para exemplificar, o conhecido hino de Natal “Cantai que o Salvador nasceu!” faz parte da seção sobre Jesus Cristo e foi composto tendo o Salmo 98 como fundamento.

Quanto à eficiência dos hinos dos Wesley para o ensino, é preciso verificá-los sob dois aspectos. Grande parte dos hinos contidos nos variados hinários editados por eles mesmos foram ali colocados para solidificar as doutrinas cristãs que julgavam importantes, ou, como John se expressou no prefácio do hinário de 1780, para “evitar erros doutrinários”. Sabe-se que tiveram de se defender de duas “investidas” de diferentes percepções doutrinárias: o quietismo e o calvinismo. Combateram a doutrina calvinista da eleição dos salvos, o que pode ser atestado na estrofe do hino que se segue: “The world He suffered to redeem;/ For all He hath atonement made: For those that will come to Him/ The ransom of His life was paid!”.

Vistos de outro ângulo, quando inseridos nas suas campanhas evangelísticas, os hinos adquiriam outro caráter “educativo”: serviam para convocar os não-conversos à fé cristã. Nesse sentido, pode-se dizer que esses novos hinos prestaram um grande serviço à causa levada adiante pelos Wesley. Era um novo “estilo” de canto:

The Wesley struck a new note – the proclamation of an unlimited atonement and free gospel, with the yearning cry of the field preacher to “all that pass by”. They sounded it in revival hymns, directly addressed to sinners, and glowing with the exhorter’s excitement.

O preparo intelectual associado à maturidade espiritual que iam adquirindo equiparam-nos para utilizarem a tradição nos cantos. Prova disso é a citação regular que faziam dos versos bíblicos, uma das qualidades mais destacadas pelos estudiosos dos hinos “wesleyanos”. Ambos os irmãos conheciam profundamente uma antiga versão bíblica dos Salmos, que utilizaram com freqüência, porque consideravam-na mais fiel ao original do que aquela em uso. Além disso, John dominava com eficiência o grego do NT, que havia estudado no Lincoln College. Aliás, usou algumas vezes o original da palavra tomada do grego nos seus hinos. Veja-se o uso que fez da palavra panoply: “Stand then in His great might,/ with all His strength endued;/ But take, to arm you for the fight,/ the panoply of God”.

Henry Bett viu, em inúmeros hinos dos Wesley, a influência dos pais da igreja, como Tertuliano, Jerônimo, Eusébio e Agostinho, e, da Idade Média mais tardia, viu traços de Tomás de Aquino. Devido aos fortes laços que retinham da igreja de berço, grande parte das características da liturgia anglicana pode ser encontrada em alguns versos de seus hinos. O exemplo abaixo é uma paráfrase do prefácio e do Sanctus: “Meet and right it is to sing,/ In every time and place,/Glory to our heavenly King,/ The God of truth and grace”.

Os Wesley mantiveram em seus hinos traços da tradição que os ligavam à Igreja Anglicana, o que significa que existe um acervo de cantos cristãos que pode ser usado em diversos segmentos denominacionais sem que isso empobreça ou enfraqueça qualquer doutrina particular. Pelo contrário, dadas as qualidades pedagógicas dessa prática, os cantos de todos os tempos devem ser retidos. Quando precisaram de hinos para suas campanhas evangelísticas, não hesitaram em compor hinos conversionistas. Em termos de eficiência para a educação, os cantos “wesleyanos” mostraram-se flexíveis: tanto retiveram a essência cristã quanto se moldaram às exigências contextuais.

Alguns hinários da era racionalista foram execrados em razão de propagarem os chamados “hinos incrédulos”, os quais, além de evitarem assuntos facciosos para a época, como a divindade de Cristo e o pecado original, ameaçavam os ensinamentos das verdades bíblicas. Considerado um hinário representativo da época, o “Hinário Montanhês”, na concepção de Stier, continha hinos “impróprios, precários e pecaminosos”, justamente em virtude de só tratar de assuntos que não viessem ferir os racionalistas, mas que, pela omissão de muitos temas, deixava o povo desprovido de conhecimento. Os defensores da tradição quiseram, então, reavivar os antigos hinos que falavam do pecado, da santificação, do arrependimento, enfim, de temas esquecidos, mas que eram vitais para o ensino.

Uma releitura do prefácio do Voices United permite relembrar o conceito de um dos organizadores acerca do valor que os hinos têm na educação cristã: “It is from hymns that many learn and retain scripture stories. It is from hymns that many receive their primary and most enduring theological education. Hymns stay with us long after occasions of teaching and preaching fade from memory”. E ainda nas informações passadas pelas pessoas entrevistadas, na pesquisa social empreendida, pelo menos uma lembrou-se da importância do canto para o ensino quando disse que ele “é uma forma catequética das verdades bíblicas”.

6.5.2 – Considerações teológico-musicais

Volta-se mais uma vez ao conselho do apóstolo Paulo para que os cristãos expressem seu louvor a Deus através do canto, registrado em duas passagens neotestamentárias. Em Colossenses 3.16 esse conselho é precedido de dois verbos muito importantes: “instruir” e “aconselhar”. O primeiro termo usado foi didasko, que significa “ensinar, instruir”, freqüente no NT. O segundo foi noutheteo, significando “advertir”. O primeiro verbo destaca o ensino positivo e o segundo aponta mais para uma ação nem sempre fácil de ser praticada, mas que, bem efetuada e em boa hora, pode produzir resultados pedagógicos elogiáveis: advertir. Entretanto, é a expressão em toda a sabedoria que vem caracterizar mais precisamente o tipo de ensino. Aqui a expressão remete ao ensino divino ou ao ensino sob a orientação do Espírito Santo, que é mais do que o ensino que é dado pela erudição intelectual. A ideia é que tudo isso seja feito enquanto se louva a Deus, com as mais diversas expressões musicais:

The injunction to teach and admonish by means of songs also agrees with other evidences that a prime motive for hymn singing in many of the churches was instruction in the doctrines of the faith. It would appear that among the early Christians, as with the Greeks and other ancient nations, moral precepts and instruction in religious mysteries were often thrown into poetic and musical form, as being by this means more impressive and more easily remembered.

Tem sido prática do cristianismo desde os seus primórdios confessar publicamente sua fé a Deus e na assembléia cristã, diante de outros fiéis. Alguns textos bíblicos reforçam essa ideia, quer porque convidem à profissão da fé, quer porque sejam a própria confissão. Os cantos também contêm profissões de fé. Um dos “hinos” do NT que equivale a um credo confessional está em 1 Tm 3.16: “Aquele que foi manifestado na carne foi justificado em espírito, contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido na glória”. Esses credos expõem, de forma sintética, as doutrinas fundamentais de um grupo cristão. Os hinos permitem que esse corpo de doutrina, já interiorizado no coração, seja confessado publicamente. Os cantos têm através dos tempos moldado a fé das comunidades cristãs, por acrescentarem à persuasão das palavras a emoção musical. Não foi sem razão que, no início da caminhada cristã, quando o cristianismo ainda era uma religião proibida, os cantos serviram para reforçar, animar a fé e instruir o povo. É, portanto, muito procedente a declaração de Phillip Harnoncourt acerca do valor dos cantos, reproduzida no início deste trabalho. Ao ser instado a verificar qual é a doutrina básica de um grupo, ele não recorre aos compêndios das doutrinas fundamentais, mas sim busca analisar os conteúdos dos cantos que este grupo entoa.

Diante da tensão entre tradição e contemporaneidade dos cantos no decorrer da trajetória histórica percorrida, as pessoas optaram algumas vezes por um dos estilos em razão de ser o que melhor podia veicular e firmar as doutrinas cristãs. Isso ocorreu em períodos de perseguição, de mudanças drásticas no enfoque eclesiástico, quando doutrinas falsas ameaçavam a identidade do grupo ou quando se desejava enfatizar um determinado postulado doutrinário. Nessas ocasiões, era necessário reforçar o caráter pedagógico do canto.

6.5.3 – Observações conclusivas

Todas as pessoas envolvidas com a prática do ensino necessitam de pedagodias e metodologias que tornem esse ensino mais eficaz. A música pode ser usada como instrumento facilitador do ensino, não só nos círculos religiosos, mas também nos seculares. Sabem disso muito bem as pessoas ligadas a vendas. Elevadas somas de dinheiro são gastas diariamente em anúncios, dos mais variados negócios, veiculados sabiamente por uma “boa” melodia, por um jingle que “pegue”, que seja reproduzido pelas pessoas de forma espontânea, em assovios e durante a execução de tarefas rotineiras. Naturalmente, o objetivo não é vender uma melodia, mas uma mercadoria, uma ideia, escondidas e, ao mesmo tempo, estampadas na música. Por trás dessa melodia “agradável”, “familiar”, encontra-se o “ensinamento” de que aquele produto e/ou aquela ideia são bons e podem ser “comprados” em “qualquer esquina”. Observem-se os meios de comunicação, especialmente a televisão e o cinema. Uma cena televisiva ou cinematográfica será melhor captada se a ela se juntar um recurso sonoro adequado. Personagens do filme e da telenovela serão futuramente lembrados através de melodias-tema e descrições serão gravadas em razão da associação com a música. A igreja cristã também não poderia dispensar esse recurso tão persuasivo e, ao mesmo tempo, flexível e ajustável a variadas situações.

Tanto cantos antigos quanto novos podem atender bem a essa área do ensino e da firmeza doutrinária. O canto gregoriano, cuja existência remonta à Idade Média, ainda hoje é prestigiado na Igreja Católica Romana como um “tesouro” a ser conservado. No seio das igrejas protestantes, veja-se o hino Ein’ feste Burg de Lutero, conhecido em português como Castelo Forte: baseado no Salmo 46.7, tornou-se uma espécie de “Marselhesa” dos luteranos. Bem mais recente, seguindo o molde definido por Ivo, na pesquisa social relatada no primeiro capítulo, como “água com açúcar”, tem-se o “Segura na mão de Deus e vai”, cantado no Brasil por todos os segmentos cristãos. Assim como esse, outros cantos poderiam ser apontados como veículos disseminadores de verdades cristãs mais gerais. Outros teriam que ser classificados dentro do acervo de uma determinada denominação. Em um ou em outro caso, os cantos têm sido, na trajetória da história da música sacra, elementos úteis para o ensino e a firmeza da fé.

6.6 – A seleção de cantos deve adequar-se à liturgia

6.6.1 – Fenômenos anotados ao longo da história da música sacra

Embora não se estivesse pesquisando densamente o principal tema da presente pesquisa no primeiro capítulo, ele ofereceu “pistas” de como as pessoas e até líderes de igreja viam o problema. Foi o que aconteceu, por exemplo, no manuseio dos três volumes do Hinário Litúrgico (HL), editados pela CNBB para uso da Igreja Católica Romana em solo brasileiro. Ficou patenteado que essa igreja dá ouvidos ao que foi internacionalmente ditado pelas normas eclesiais: que a música deve estar dentro do “espírito” da ação litúrgica. Isso quer dizer que, no tocante a usar ou não material da tradição ou da contemporaneidade, deve-se, antes, colocar a opção diante do seguinte critério: é essa música apropriada para a presente ação litúrgica? Tendo conseguido resposta afirmativa para a indagação, então já se está a caminho de uma decisão pertinente. A primeira comissão eleita para ajudar na confecção do HL, ao elaborar os critérios que seriam considerados quanto à seleção musical das obras, apresentou claramente três considerações em relação à adequação litúrgica que, em síntese, revelam a preocupação da Igreja Católica Romana com os seus cantos dentro da liturgia. Essa comissão deveria considerar a música se ela estivesse de acordo com: “o assunto litúrgico; o momento de celebração em que deverá ser apresentada; o tipo de assembléia à qual se destina: crianças, adultos, contemplativos etc …”. Vista assim, a música teria de se adequar a três situações dentro da liturgia, independentemente de ter ou não um estilo tradicional. Essa posição foi corroborada durante a pesquisa social pela declaração de alguns dos entrevistados, que pode ser resumida assim: todo e qualquer estilo será aceito no culto se for adequado a ele.

Embora adequadas ao tipo de liturgia que acabou dominando durante a Idade Média, as participações musicais dos monges não servem como modelo em razão de não se ajustarem ao primeiro e mais cabal critério eleito neste trabalho, que é o de que a música deve ser acessível ao povo. Em virtude disso, não será comentada essa música, embora liturgicamente fosse adequada ao rito. Seguindo a mesma lógica, fica também excluído o canto da igreja da Contra-Reforma.

Em relação a Lutero, um de seus primeiros passos foi adequar a liturgia ao contexto cultural onde a igreja estava localizada. Só através desse ajuste é que foi possível determinar que tipos de cantos seriam usados. Na perspectiva de Lutero, a tensão entre usar música tradicional ou contemporânea foi resolvida no momento em que ele conseguiu acomodar a liturgia às necessidades culturais à sua volta. A adequação dos cantos foi algo que se seguiu a essa moldagem litúrgica. Usaria a música da tradição católica nas igrejas de maior porte, porque certamente ali as pessoas entenderiam o que estava-se desenrolando. Já nas igrejas de vilarejos, onde o povo não compreendia o latim, usaria cantos em língua vernácula, muitos aproveitados dos conhecidíssimos Lieder de aceitação popular e contemporâneos. A adequação dos cantos à liturgia, em Lutero, foi, portanto, conseqüência natural de uma adequação anterior da liturgia ao contexto sócio-cultural.

Os Wesley compuseram hinos para os ritos sacramentais da igreja, contudo sua maior contribuição foram os hinos que serviram aos apelos do movimento evangelical. Optaram por usar as características da música vigente, tanto das obras clássicas quanto das populares. Quando usaram melodias conhecidas de autores consagrados, queriam que o povo pudesse repeti-las sem grandes problemas. Os empréstimos que utilizaram dessa fonte, contudo, foram tomados sob critérios rígidos. Considerando que o texto deveria receber destaque, rejeitaram técnicas musicais da época que viessem ofuscar o texto, como o contraponto. Na verdade, tinham em vista a adequação musical ao movimento evangelical que estavam construindo e que veio a fundar o metodismo. Entende-se, portanto, que a adequação do canto foi feita em termos gerais, ou seja, o canto prestou-se ao “clima” de culto da linha evangelical (música funcional):

Appearing at the very time when English poetry was most stilted and sterile, the hymns of Methodism became the prelude of a lyrical revival. (…) Lyrical sincerity and spontaneity reappear first of all in the hymns of Methodism.

O mesmo aconteceu na música das campanhas evangelísticas iniciadas na América do Norte por Jonathan Edwards e que se tornaram mundialmente conhecidas através de Moody e Sankey: foi um canto adequado ao tipo de culto que visava atingir as pessoas não-conversas ao cristianismo protestante. Escolheram características musicais então vigentes, adaptando-as à música sacra (gospel song) ou criaram novas usando as mesmas técnicas composicionais. O hino a seguir foi composto por Sankey para uma campanha evangelística em Edimburgo. Achada a letra em um jornal cristão publicado em Londres, Sankey musicou-a para cantá-la três dias depois. A letra em português é a seguinte:

Noventa e nove ovelhas vão/ Seguras no curral;
Mas uma delas se afastou/ do aprisco pastoral/
A errar nos montes de terror,/ Distante do fiel pastor.

“Por toda a estrada donde vem/ Que sangue enxergo ali?
Busquei a ovelha com amor,/ O sangue me verti.”/
“Ferida vejo a tua mão./ A angústia encheu-me o coração.”

Vêm da montanha aclamações!/ É a voz do bom Pastor!
Ressoa em notas triunfais/ O salmo vencedor!
E os anjos cantam lá nos céus:/ A errante já voltou a Deus!

Dentro da Igreja Luterana, durante o reinado de Frederico III, o que se viu foram duas atitudes: de um lado, o imperador queria uma renovação litúrgica a todo preço, tanto que pediu para buscarem os modelos nos motetos, salmos e missas do século XVI; por outro, usou a liturgia para efetuar uma manobra política de sustentação de seu poder. Interessado em promover uma liturgia solene, que impressionasse, Frederico exigiu a música russa “solene e grave”, a qual encaixou muito bem nos seus propósitos. No caso, embora houvesse equilíbrio e ajuste do estilo musical à liturgia, não se pode deixar de constatar que havia, por trás disso, uma finalidade não muito honrosa.

No final do século XIX, a Igreja Católica Romana decidiu retornar à tradição dos cantos antigos da igreja, e grande parte dessa decisão foi fomentada pelas sociedades musicais Santa Cecília que haviam florescido. Consideraram-se impróprios os cantos da atualidade, pois estavam cheios de modismos românticos, com melodias em que abundavam os traços operísticos. Influenciada pelas sociedades, a liderança da igreja optou por usar o canto gregoriano para que os fiéis pudessem ter participação mais ativa nos ofícios litúrgicos. Entende-se que os cantos ornamentados da escola romântica não foram aceitos pela liderança eclesiástica porque eram inacessíveis à tessitura da voz humana ordinária dos fiéis que participavam das missas. Outrossim, esses cantos ornados vinham obstruir uma clara compreensão do texto, o que sempre foi uma tônica da Igreja Católica Romana. Isso quer dizer que os cantos feitos no estilo contemporâneo erudito foram rejeitados: eram inadequados ao tipo de liturgia adotada, ou porque se associavam a uma ideia “secular” (no caso, a ópera) ou porque a pessoa comum estaria excluída de sua participação efetiva. Mais uma vez a Igreja Católica chegou à conclusão de que só a música tradicional do canto gregoriano seria a perfeitamente adequada à liturgia. Essa mesma inclinação foi continuada pelos editos da SC de 1963. O canto gregoriano é mais de uma vez reiterado como sendo a expressão sacra mais pertinente ao rito católico romano, tanto que a Musicam Sacram (MS), editada para veicular as resoluções oficiais sobre a música sacra, sugere a criação de escolas onde o gregoriano possa ser estudado e difundido. A Igreja Católica permanece presa “aos valores do passado”, pois vê neles as características musicais sacras por excelência adequadas ao seu rito. Sua contextualização acontece mais nas áreas missionárias, quando então, para que o canto se ajuste ao contexto cultural, a igreja permite empréstimos do folclore e de expressõesmusicais retiradas do acervo popular. A Igreja Católica é rígida quanto ao que pode ser cantado, tanto que existem normas definidas para quase todos os casos. No Brasil, por exemplo, essa adequação da música à liturgia está expressa nos cantos em que são usadas as “constâncias” da música brasileira, que foram estudadas em encontros oficiais promovidos pela CNBB.

A música herdada pelos protestantes brasileiros oriundos de missão tem fortes ligações com a América do Norte, quer via igrejas históricas litúrgicas (onde a influência americana é menor, mas existe), quer via igrejas protestantes de tradição não-litúrgica. Traduzido, isso revela existirem, na hinodia protestante brasileira, reflexos da teologia e do conceito de igreja que os missionários norte-americanos trouxeram. Não houve praticamente preocupação com a contextualização dessa linguagem, tanto que ainda hoje ela é maioria nos hinários oficiais dessas igrejas. Tanto a liturgia quanto os hinos estão, de certa maneira, desajustados à realidade brasileira. A adequação dos hinos aos cultos, contudo, existe, na medida em que essas igrejas ainda reproduzem o modelo conversionista, principalmente em seus cultos dominicais vespertinos. O que acontece presentemente poderia ser assim descrito: tentativa de coadunar a ordem de culto baseada em Isaías 6 com hinos que se ajustem ao tema da prédica, de um lado; de outro, liberdade litúrgica total, com empréstimos da “corinhologia” dos carismáticos, inseridos sem critérios aparentemente lógicos. O conflito entre tradição e contemporaneidade, nessas igrejas, consiste justamente nisso: ou se conservam os hinos tradicionais dos hinários oficiais (tradição) ou se inclinam para a linha pentecostal, cuja ênfase está na comunhão entre os irmãos e nas doxologias. Por inexistirem atos oficiais de regulamentação da matéria e, em muitos casos, por causa da autonomia de governo da igreja local, cada igreja fica livre para optar pela tendência que mais lhe “agrada”.

A música utilizada nas igrejas protestantes de tendência litúrgica ainda segue um parâmetro ditado pelos cânones eclesiásticos. Nelas, também fica clara, através de cancioneiros ultimamente editados, a opção pela teologia da libertação. Já os seus hinários oficiais continuam a reproduzir cantos próprios para as diversas partes da liturgia e que têm sido usados regularmente. Mais na Igreja Episcopal do que na Luterana, observam-se os hinos da linha evangelical arrolados em seus hinários em uso. Por parte das igrejas da IECLB tem havido interesse em relação à renovação da liturgia, tanto que cursos têm sido oferecidos anualmente para essa finalidade. Nesses cursos, a opção tem sido a liturgia ecumênica e muito esforço tem sido empreendido para as devidas adequações tanto da liturgia ao contexto cultural quanto dos cantos dentro da liturgia escolhida.

6.6.2 – Considerações teológico-musicais

A palavra liturgia vem do grego leitourgia (trabalho do povo), amalgamento das palavras laós, que significa povo, com érgon, trabalho em português. Pagar uma liturgia significava pagar um trabalho público ou uma diversão pública, voluntariamente ou não. Na versão grega do AT, a Septuaginta, o termo era mais usado para descrever o ministério dos sacerdotes e levitas no templo. Com essa acepção, a palavra aparece no NT para descrever as atribuições de Zacarias, pai de João Batista. Em At 13.2, a expressão “servindo”, usada na versão em português, traduz “liturgicizando”: “E, servindo eles ao Senhor e jejuando, disse o Espírito Santo: Separai-me, agora, Barnabé e Saulo para a obra a que os tenho chamado”. O apóstolo Paulo usou essa palavra com distintas significações. Em Rm 15.16 ele se autodenomina um “liturgista” do Evangelho de Deus para os gentios. A palavra, com o decorrer dos tempos, restringiu-se à designação do ato público empreendido pelos ministros da igreja e oficializado por ela, para torná-lo distinto das adorações e devoções particulares. A liturgia, desde suas raízes, compreende uma participação corporativa. Deve, portanto, possuir uma ordem, que é quase sempre determinada pela lógica das cerimônias que devem acontecer. O ritual, ou seja, as palavras que aí devem ser proferidas ou cantadas, é apresentado através de leituras, orações, cantos e prédicas. Quando aqui se fala em adequação à liturgia, isso significa que a música aí usada deve ser apropriada ao culto. Em muitas denominações cristãs, isso implica seguir critérios preestabelecidos. Em outras, não.

Para se falar sobre o critério de “adequação à liturgia” para a seleção de cantos para o culto cristão, é ainda necessário abordar as tendências litúrgicas mais gerais vigentes nas liturgias cristãs da tradição ocidental e que têm servido de apoio à organização estrutural dos hinários e, conseqüentemente, têm sido usadas para a seleção dessa hinodia. De maneira geral, são duas: de um lado estão as igrejas cristãs que seguem um calendário litúrgico eclesiástico, as conhecidas como litúrgicas (católicas romanas, luteranas, episcopais e algumas presbiterianas), e, de outro, as protestantes não-litúrgicas e/ou livres.

A ênfase principal das arroladas no primeiro grupo citado apóia-se na concepção teológica de que tanto as orações quanto os cantos constituem partes integrantes de um todo maior, que é a liturgia. É no culto que as pessoas são convidadas a responderem à convocação divina de agrupamento para adoração. Os cantos, nesse tipo de culto, são incluídos segundo sua relevância para a ordem litúrgica. Da mesma forma, os hinários dessas denominações tendem a ordenar seus cantos de maneira a atender à ordem litúrgica, conjugando essa ordenação com o ano eclesiástico. A teologia que norteia esse tipo de culto endossa a participação do fiel em termos de adoração a Deus e oração, sendo os hinos veículos dessa ação litúrgica. As principais igrejas desse grupo, cujas liturgias serão consideradas aqui, são a Católica Romana, a Luterana e a Anglicana.

Na concepção da Igreja Católica Romana depois do Concílio Vaticano II, a liturgia é o ápice da vida da igreja (SC 10) e a finalidade da atividade litúrgica é ter a participação do povo, que foi habilitado pelo Batismo (SC 14). A música própria ao seu rito tem sempre que “harmonizar-se com o espírito da ação litúrgica” (SC 116) e estar de acordo com as normas fixadas por suas autoridades eclesiásticas. O SC de 1963 determinou como “sacros”: “o canto gregoriano, a polifonia sacra antiga e moderna em seus diversos gêneros, a Música Sacra para órgão e outros instrumentos provados, e o canto popular sacro ou litúrgico e religioso” (MS, art. 4b). A missa da Igreja Católica Romana teria as seguintes partes: a abertura ou rito de entrada, o rito da palavra, a Eucaristia e o encerramento. Cada uma dessas partes é subdividida em inúmeras outras, com a inclusão de muitos cantos. Pode-se tomar o rito de entrada para exemplificar a importância dos cantos na missa: durante a procissão dos que vão presidir a missa, há um intróito, quase sempre feito pelo coro; esse canto é seguido do Kyrie eleison, oportunidade em que o povo pede misericórdia a Deus, e do Gloria in excelsis, que se baseia em Lc 2.14, o canto dos anjos.

A Igreja Luterana possui três grupos de ritos: o germânico, o escandinavo e o norte-americano. Na América do Sul, o grupo que exerceu maior influência e que predomina é o germânico. Tem havido grande interesse no “Movimento Litúrgico” por parte dos luteranos. Aqueles ligados ao movimento têm como um de seus alvos fomentar a comunhão entre as pessoas e equilibrar prédica e sacramentos nos cultos.

A partir da Conferência Lambeth, de 1920, a Igreja Anglicana começou a despertar para a necessidade de expressões nativas nas igrejas espalhadas pelo mundo. O que havia valido até então era o Livro de Oração Comum de 1662. A Conferência Lambeth de 1958 deu maior destaque a essa necessidade de contextualização dos cultos anglicanos, querendo torná-los mais significativos para as diversas culturas onde as igrejas estão inseridas. Essa mesma Conferência, nos anos de 1965 e 1970, publicou documentos que deram as linhas mestras para que essas adaptações fossem possíveis, tanto para a Eucaristia quanto para os ofícios diários. Estreitaram-se também os laços entre a Igreja Anglicana e as demais igrejas desde o Concílio Vaticano II, principalmente no que concerne ao diálogo litúrgico: existe perfeito intercâmbio para empréstimos de textos com orações, lecionários e cantos. Como conseqüência desse ecumenismo, a Igreja Anglicana ainda se abriu para liturgias contemporâneas, muitas enriquecidas por expressões locais.

As igrejas numericamente mais expressivas entre as protestantes históricas não-litúrgicas seriam a Batista, Metodista, Presbiteriana e os diversos grupos das alas pentecostal e carismática. A literatura norte-americana considera Isaías 6.1-13 o texto-base para esclarecer a ordem litúrgica nessas igrejas e não se conseguiu descobrir em que outra origem essa tendência estaria fundamentada. Herdaram do pietismo a tendência às expressões individuais, facilmente detectadas nos hinos escritos nas primeiras pessoas do singular e plural. Essas igrejas, porque dão ênfase à centralidade da Palavra e porque não seguem um modelo litúrgico fixo para o culto, tendem a respaldar a escolha dos hinos e a estrutura de seus hinários de acordo com sua posição teológica. É comum seus hinários serem organizados como um livro-texto de teologia, iniciando com hinos sobre Deus-Pai, Deus-Filho, Deus-Espírito e seguindo uma seqüência que facilmente acaba demonstrando a teologia principal da igreja. Quanto à escolha dos cantos para o culto, essas igrejas tendem a optar por cantos ditados pelo tema do sermão, escolha que poderia ser considerada “homilética”. Tudo o que vem antes do sermão prepara o fiel para ouvi-lo e tudo o que vem depois confirma o que passou e/ou apela ao crente para uma decisão em face do que ouviu. Nesse tipo de igreja o centro do culto recai mais na resposta que o ser humano deve dar ao apelo do pregador ou nos sentimentos que se deseja que aflorem nos participantes, o que vai de imediato interferir nos cantos a serem selecionados.

Nos cultos pentecostais e neopentecostais (ou carismáticos), predomina o caráter oral da liturgia, com a inclusão de participações pessoais que incluem testemunhos, sonhos e visões. As participações coletivas também permitem danças, a imposição das mãos sobre os doentes e expressões de glossolalia.

6.6.3 – Observações conclusivas

Em alguns pontos deste estudo foi apontada a dificuldade dos termos litúrgico e não-litúrgico expressarem diferenças significativas que pudessem distinguir sem erro dois grupos distintos. Em parte a dificuldade existe porque, em sã consciência, não existem comunidades com cultos não-litúrgicos. Sabe-se que, quando mais de duas pessoas praticam juntas mais de uma vez um ato, elas estabelecem normas fixas e repetitivas que resultam em um rito. Assim acontece com os cultos nas comunidades cristãs, mesmo naquelas rotuladas como não-litúrgicas. O fato de se reunirem periodicamente para o culto a Deus e de regularmente vivenciarem experiências repetidas com freqüência confere a essas comunidades um modelo ritualizado e por isso mesmo difícil de ser classificado como não-litúrgico.

O critério de que “a seleção de cantos deve adequar-se à liturgia” é facilitado nas igrejas de real tradição litúrgica. Quando se analisa a liturgia da Igreja Católica Romana, é relativamente fácil determinar onde os cantos devem aparecer, a que temas devem aludir. Ajudam ainda os documentos normativos desta igreja acerca da música sacra. As liturgias das igrejas Luterana e Anglicana, se seguidas conforme os manuais, também oferecem uma ordem de culto que orienta os tipos de cantos para a liturgia e os ajustes necessários para que a adequação se efetue da melhor maneira possível. Nas igrejas protestantes históricas não-litúrgicas, dado o caráter “livre” de suas ordens de culto, o critério de seleção de cantos fica “livre” para variadas interpretações. Seja no culto de ordem “homilética”, seja naquele fundamentado em Is 6, seja nos cultos pentecostais e carismáticos, onde existe liberdade ainda maior, esse critério de seleção perde sua força. De qualquer forma, a autora gostaria de contribuir para a escolha de cantos desses cultos, afirmando que, se não é possível “adequar-se à liturgia”, que ao menos seja possível uma seleção “coerente” com a opção litúrgica da comunidade. Seria útil, nesse contexto, avivar o versículo bíblico de 1 Co 14.40: “Tudo, porém, seja feito com decência e ordem”. Todos, porém, que se acham envolvidos na escolha de cantos são convidados a aprofundar seus conhecimentos no tocante à história do cristianismo e a freqüentar cursos de liturgia para melhor aplicar o critério.

6.7 – A seleção deve priorizar cantos que falem à alma

6.7.1 – Fenômenos anotados ao longo da história da música sacra

No NT, o apóstolo Paulo convidou os efésios e os colossenses a louvarem a Deus “com salmos, hinos e cânticos espirituais”. Com este último canto, os cristãos louvavam a Deus de uma forma espontânea e emocionalmente muito significativa, pois ele se parecia com a glossolalia. O caráter espontâneo do culto dava margem a expressões musicais também mais livres, os chamados “cânticos espirituais”, o que era propiciado em parte pelos locais domésticos das reuniões cristãs. Mais adiante, esse mesmo caráter de improvisação dos cânticos espirituais irromperia liturgicamente expresso nas seqüências e melismas da Idade Média. Quando o apóstolo convidou essas pessoas a louvarem a Deus ainda usou a expressão “com gratidão em vossos corações”. O vocábulo corações alude à alma, ao chamado “homem interior”, onde estão coligados o intelecto e as emoções.

Um dos primeiros registros, nessa pesquisa, do poder de a música falar ao coração humano é de Agostinho:

(…) quando me vêm à lembrança as lágrimas que derramei ao ouvir os cantos de tua Igreja, nos primeiros dias de minha conversão e quando ainda agora me comovo, não com o canto, mas com as palavras cantadas, quando o fazem com voz clara e modulações apropriadas, reconheço novamente a grande utilidade dessa instituição.

A sua dúvida entre usar ou não a música nos cultos pôde ser dissipada no momento em que se recordou desse singular episódio. De fato, isso falou mais alto do que toda a sua erudição, que definia ser a música de domínio da razão. Embora classificasse a música como um fenômeno metafísico, sabia que, por ser uma atividade humana, caberia sujeitar-se aos julgamentos morais. Para Agostinho, somente o verdadeiro cristão teria condições de efetuar esse tipo de julgamento em relação à música a ser usada na igreja. Conclui-se que, mesmo defendendo o apoio da razão em questões relativas ao canto na igreja, foi um fato de caráter emocional e pessoal que levou o pensador a modificar o seu antigo critério:

Naqueles dias eu não me fartava de considerar a profundidade de teus desígnios para a salvação do gênero humano, pela doçura admirável que sentia. Quanto chorei ao ouvir, profundamente comovido, teus hinos e cânticos, que ressoavam suavemente em tua Igreja! Penetravam aquelas vozes em meus ouvidos, e destilavam a verdade em meu coração. Acendia-se em mim um afeto piedoso, corriam-me lágrimas dos olhos, e me fazia bem chorar.

Embora o exemplo não determine que tipo de canto se estaria usando, se tradicional ou contemporâneo, o quadro serve para avivar essa função “mística” que a música tem de atingir as profundezas do ser humano e de lhe falar à alma de uma forma salutar.

Calvino reconheceu também a importância da música, pois, na sua percepção, ela ajuda a alma a “pensar em Deus”, servindo para levar os corações a orar com maior fervor:

Nem contudo, aqui condenamos a voz ou o canto; senão que, antes, muito [os] recomendamos, desde que acompanhem o afeto da alma. Ora, assim exercitam a mente na cogitação de Deus e a retêm atenta, a qual, como é escorregadia e versátil, facilmente se afrouxa e a variadas [direções] se distrai, a menos que seja de variados adminículos sustentada. Ademais, como em cada parte de nosso corpo, uma a uma, deve luzir, de certo modo, a glória de Deus, adjudicada e devotada a este ministério, quer cantando, quer falando.

Logo a seguir, Calvino faz uma ressalva: “Contudo impõe-se diligentemente guardar que não estejam nossos ouvidos mais atentos à melodia que a mente ao sentido espiritual das palavras”. Reconhecia, implicitamente, que a melodia desconectada do texto poderia causar prejuízo ao cultuador.

Foi a partir dos hinos “wesleyanos” que a emoção iniciou uma trajetória que iria culminar nas expressões musicais avivalistas. O germe incitador dessa tendência foram os hinos morávios, dos quais os Wesley tomaram ciência durante a viagem à América. Além disso, a experiência de conversão de John à “fé salvadora”, ocorrida em 24 de maio de 1738, três dias após ter acontecido o mesmo a Charles, ajudou-os a optar por uma hinodia que refletia suas experiências devocionais reavivalistas:

The work of the Wesley modified the ideal of the English Hymn itself, both on its spiritual and literary sides, and established new types of hymns. – No one can turn from the earlier hymns to the Wesleyan without being conscious of a change of atmosphere, a heightening of emotion, a novelty of a theme, a new manner of expression.

Se analisado sob a óptica da liturgia, esse tipo de hino não seria próprio para ela. O hino conversionista não foi composto tendo em vista uma adequação à liturgia, mas como instrumento para alcançar os pecadores, levando-os a um crescimento espiritual. O normal para uso litúrgico, nessa época, eram os hinos de Watts, ou a versão antiga dos salmos de Sternhold and Hopkins, ou ainda a nova versão de Tate and Brady. Nas reuniões avivalistas, os irmãos Wesley não podiam usar essa música tradicional, porque ela não possuía as características capazes de falar às massas e levá-las a um encontro pessoal com o Senhor Jesus. Para atingir tal objetivo, os Wesley valeram-se de música e letra simples, diretamente apelativas aos sentimentos e às emoções e altamente individualistas. Entre usar aquilo que era eclesiasticamente aceito e “inovar”, preferiram a última opção, pois o movimento evangelical que formavam necessitava de cantos mais apelativos ao coração de pessoas não-familiarizadas com a linguagem musical corriqueira nas igrejas. Nesse sentido, os Wesley foram bem-sucedidos, pois extravasaram em seus cantos a própria experiência de conversão, ajustando a música aos intentos evangelísticos:

Hymns were a vital part of the Methodist revival, they played an important role in the Preaching Services. The hymns of Charles Wesley served to heighten the emotion of the worshippers, to drive home the theology which had been preached. Furthermore, the hymns, with the tunes which would have been familiar to the many ordinary folk who stood by and watched, enabled the whole congregation to unite, with one voice, in praise of their maker. In an age which was predominantly rational, the hymns gave expression to that “other” dimension of the spirituality which the Methodist revival sought to promote. To a people whose only other sung expressions of praise were the sad doggerel of the metrical Psalter, the hymns of the Methodist were a welcome breath of fresh air.

Seguindo a mesma linha de linguagem musical e poética, “os hinos de apelo” tornaram-se populares em território americano, principalmente nas campanhas evangelísticas e avivalistas. Vindo dos spirituals e/ou dos gospel songs, esses hinos, no século XIX, continuavam a falar à alma humana, terna, doce e suavemente, convidando os pecadores a “arrependerem-se de seus pecados e entregarem sua vida a Jesus”. Os primeiros exemplos desse estilo podem ser encontrados nas canções compostas para as escolas dominicais por volta de 1840. A ênfase no alto grau de emoção continuava a ser dada, criando um clima propenso a esse tipo de reunião. Esses hinos falavam uma linguagem popularmente aceita e compreendida, pois copiavam as baladas românticas vitorianas, sendo estruturados musicalmente nesses moldes. Eram, portanto, legitimamente atuais para época em que foram escritos e serviram por gerações à evangelização avivalista. Ainda no presente século, esses hinos perduram nos mais variados hinários denominacionais brasileiros, em razão de terem sido legados por missionários vindos da América do Norte. Hoje, teriam de ser reavaliados, juntamente com o tipo de liturgia que as igrejas livres adotaram, pois, pelo natural desgaste do tempo, falam uma linguagem sentimentalista e estranha às pessoas do final do século XX.

Emoção também não falta à produção musical pentecostal-carismática, embora em feição distinta. A ênfase que esse segmento cristão dá ao que chama de “dom de línguas” confere ao culto um caráter altamente emocional, também verificável nos seus cânticos, não tanto em relação aos seus conteúdos, mas principalmente na forma como são apresentados. Repetem-nos seguidas vezes, numa espécie de “catarse” espiritual:

The ways of singing hymns differ from most central or right-wing traditions. Choruses are popular, and verses or entire hymns are often repeated. Frequently, the minister or song leader may pick up key phrases from the hymn and repeat them over and over. Without using the term, antiphons are widely used in this fashion on an ad lib basis. (…) But such worship is always open to unexpected possibilities with the realization that the Spirit moves as it wills. Spontaneity has been the reat Pentecostal witness; it is now being passed on to churches of other traditions.

Quanto à Igreja Católica Romana, no século XX, com os editos da MS, a igreja estabeleceu dois tipos de participação dos fiéis nos cultos: uma participação “interior” e outra “exterior”. Com a participação “interior”, a pessoa fica mais habilitada para “sintonizar a sua alma com as palavras proferidas ou ouvidas”.

As primeiras manifestações de que a música enriquece a alma humana foram preliminarmente observadas na pesquisa de campo. Ao serem perguntadas a respeito de seus hinos prediletos, as pessoas apontaram razões que foram, na maioria, de caráter emocional. Um recordou-se de um determinado hino, julgando-o seu favorito, em razão das associações que fazia dele com “os bons momentos da infância na igreja”. Outro pesquisado disse que “letra e música enchem a alma” e ainda outro gostava de um hino porque “toca a alma”. Com esses três depoimentos, ficou evidente que nem sempre os gostos musicais pessoais podem ser justificados, a não ser pelo fato de os cantos falarem à alma humana. Ao se reler a forma como as pessoas lidaram com a tradição e a contemporaneidade dos cantos, fica claro que elas tiveram algumas vezes que optar por uma das tendências em razão de ser, naquele momento, a opção mais adequada para falar à alma humana.

6.7.2 – Considerações teológico-musicais

A Bíblia apresenta o ser humano como alguém cuja personalidade apresenta várias facetas, evidenciáveis nos distintos termos gregos empregados, mas que não devem ser tomados independentemente uns dos outros: nous é usado para designar mente, psyche para alma, peuma para espírito, soma para corpo e cardia para coração. Deve-se a Paul Tillich a fórmula emoção, conhecimento e vontade que emprega para referir-se à fé. O culto é vivenciado pela pessoa no seu todo, nas três formas possíveis de atitude: com o seu sentimento, seu conhecimento e sua vontade. Observado o mandamento dado por Jesus, nota-se que a atitude do seu humano para com Deus deve ser expressa na sua totalidade: “Amarás, pois, o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força“. A resposta que a pessoa dá ao convite de Deus para o culto deve ter respaldo na razão, na emoção e na sua vontade.

Evelyn Underhill explica a natureza do culto de uma forma que justifica a atitude emocional humana diante do mistério que existe nessa adoração a Deus:

For worship is an acknowledgment of Transcendence; that is to say, of a Reality independent of the worshipper, which is always more or less deeply coloured by mistery, and which is there first. (…) So, directly we take this strange thing Worship seriously, and give it the status it deserves among the various responses of men to their environment, we find that it obliges us to take up a particular attitude towards that environment.

A adoração a Deus é expressa através do louvor. Existem inúmeras passagens bíblicas dando sustentação a isso: os capítulos finais do livro de Jó, muitos Salmos, a visão de Deus que Isaías teve no templo, o prólogo do Evangelho de João e alguns trechos do Apocalipse. Em todos esses textos da Bíblia, o ser humano coloca-se diante da presença divina em atitude de adoração, reconhecendo a sua transcendência. Diante dessa transcendência, a alma humana sente-se arrebatada e pouco ou nada pode explicar ou compreender. Tal fato aconteceu pelo menos duas vezes na vida do apóstolo Paulo: na sua conversão, ao ir para Damasco, e na visão em que ouviu “palavras inefáveis, as quais não é lícito ao homem referir”.

Ao estudar o significado que o canto tem para as pessoas, Phillip Harnoncourt classificou a música como indispensável nas celebrações. Ao se referir às expressões vocais, este autor considerou que a emoção aparece primeiro que a capacidade do discurso verbal. Segundo Harnoncourt, a música ajuda o ser humano a participar da vida, sendo um meio eficaz de comunicação. Ela é também uma resposta que o ser humano dá ao convite divino para o culto, servindo como um canal de união entre o Transcendente e o ser humano:

When Jews and Christians sing, they sing because they have been touched in the core of their being by the approach of God, who will not to go back on his word. Singing and music, when rightly understood, have therefore a very specific place in the saving dialogue between God and humankind, or between Creator and creature. The initiative is always with God in person. His initiative is a transforming encounter. This encounter binds togheter those who have been changingly encountered.

Entre as diversas atitudes que as pessoas expressam durante o culto, a emoção é sem dúvida uma das que mais fortemente está ligada às artes, principalmente à música. Vem de longe o conhecimento do valor terapêutico da música para a alma humana. O rei Saul, quando sentia o espírito inquieto, servia-se dos conhecimentos musicais de Davi, que, com a harpa, o acalmava: “então, Saul sentia alívio, e se achava melhor, e o espírito maligno se retirava dele”. As liturgias cristãs estão repletas de exemplos de cantos para serem entoados em diversas partes do culto, os quais podem não só expressar alegria, mas também ser veículos para a alma derramar suas tristezas, pois sabe que existe o Espírito Santo, seu paráclito. A música é, pois, altamente capaz de evocar os mais distintos sentimentos na alma humana, chamando-a à adoração, consolando seu espírito alquebrado pelas vicissitudes da vida e, ao mesmo tempo, revigorando-lhe o ânimo para continuar a caminhada cristã. James White enfoca essa contribuição da música comparando-a com a fala:

Uma das razões por que a música contribui para o culto consiste no fato de ela ser um meio mais expressivo do que a fala ordinária. A música nos permite expressar uma intensidade de sentimento, modulando o andamento, o tom, o volume, a melodia, a harmonia e o ritmo. Assim, quem canta dispõe de uma gama mais ampla de expressão do que quem fala, A música pode e muitas vezes efetivamente transmite uma intensidade de sentimento maior do que se expressaria sem ela.

A música funciona como um “agente catalisador” da emoção de duas maneiras: subjetiva e objetivamente. O estado emocional é muito sutil e subjetivo, sendo, por essa razão, difícil de ser verbalizado. Por mais que o compositor use anotações gráficas pertinentes à dinâmica, à agógica da música, ao tempo e ao seu caráter, ainda assim estes sinais não representam segurança em relação ao tipo de resposta que o ouvinte terá ao ouvir tal composição. Se estudadas objetivamente, essa resposta pode ou não provocar mudanças de comportamento, sendo que nem sempre essas mudanças são tão visíveis. A interpretação dessas respostas é complexa, mesmo porque muito delas têm mais conexão com associações subjetivas de cada ouvinte. Para ajudar a compreender o critério de seleção de “cantos que falem à alma”, a autora deseja contribuir fazendo uma distinção entre os sentidos de dois vocábulos importantes para a compreensão do critério: emoção e sentimentalismo.

Recorrendo aos dicionários, pode-se determinar aquilo que se quer transmitir acerca do critério. A palavra emoção tem raízes na língua latina: vem do verbo emovere, que possuía duas significações. No sentido literal, quer dizer expulsar, abalar, tirar, afastar; no sentido figurado, dissipar. Na língua portuguesa, pode ser interpretado de três maneiras. Emoção, num primeiro sentido, quer dizer “ato de mover (psiquicamente)”; no campo psicológico, significa um estado moral que afeta a respiração, a circulação e as secreções, levando à mente das pessoas modificações que lhe alteram o humor; numa terceira significação, diz respeito a “comoção, abalo (sentido físico e moral)”. Na língua grega, existem três termos para designar a palavra alma: psyche, referida anteriormente e significando “princípio vital”; nous, palavra para “coração”, e ainda archepou, cujo sentido é “principal motor dum negócio”. Se somadas as significações latina e grega dos vocábulos emoção e alma, pode-se chegar a uma definição convincente do critério de seleção em questão. Cantos que falam à alma são os cantos que “abalam” a alma, que “dissipam” sentimentos ruins, “movendo” psicologicamente a pessoa. Essas modificações “psicológicas” podem alterar o mecanismo físico do corpo humano, atingindo profundamente o seu ser, representado pelo coração. Até mesmo o sentido literal de archepou, se tomado figuradamente, oferece uma justificativa plausível para o critério de seleção de cantos: principal motor dum negócio. Sem ele, não há vida (coração). Não existindo vida, o processo morre, acaba. É esse o sentido que se deseja reter: cantos que dão vida, que dão energia ao culto, que o fazem florescere desabrochar, que trazem alegriae até podem revitalizar o coração cansado e ferido das pessoas que participam do culto. É necessário que a interpretação do critério seja correta. Quando se fala em canto que dá vida ao culto, não se está falando de cantos que são cantados com maior volume da voz ou com maior velocidade no andamento da música. Não. São cantos que podem promover mudanças no interior da pessoa, fazendo-a decidir-se a ser um melhor cristão, mais efetivo no seu compromisso com Deus e com o próximo.

Uma vez identificados quais são os “cantos que falam à alma”, passa-se a tecer comentários lingüísticos que ajudam a esclarecer conceitos que se quer evitar sobre cantos que já foram tomados como pertencentes a esta categoria, em algumas das situações históricas analisadas, mas que apenas mascaram o sentido real de emoção. São os cantos sentimentalistas. Na língua portuguesa, a palavra “sentimentalista” é um adjetivo que se refere ao substantivo “sentimentalismo”, cujo significado é : “sentimentalidade; afetação de sentimento; gênero literário ou artístico em que predomina o excesso de sentimento”. Os cantos com essas características não se desejam para o culto cristão. As assembléias litúrgicas cristãs não necessitam de manobras “sentimentalistas” para falarem à alma humana. A autora está ciente de que, em alguns momentos da leitura da história da música, pôde perceber que as pessoas empregaram o sentimentalismo em vez da emoção. Mas, se se quer andar por caminhos claros e honestos, no culto cristão, há de se ter equilíbrio entre o que vem da psyche e do lógos (razão, em grego). Só assim poder-se-á seguir o conselho de Paulo em Rm 12.1-2:

Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente [grifos da autora], para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.

6.7.3 – Observações conclusivas

Quais devem ser as características de um canto para que ele “fale à alma”? Uma das grandes contribuições da música é que ela confere maior expressividade às palavras. Relembrando o episódio vivido por Agostinho, uma verdade ele mesmo destacou: sua comoção vinha a partir da palavra cantada. Mais adiante, Agostinho falou dos cantos que “destilavam as verdades” em seu coração. Nessas duas considerações, destaca-se uma qualidade do canto que “fala à alma”: ele tem bom conteúdo. Ter bom conteúdo significa estar teologicamente correto e ser pertinente para as pessoas, ou seja, falar de assuntos do interesse delas. No caso de Agostinho, esse conteúdo era tão importante, que as palavras cantadas iam sendo incutidas no seu interior, ajudadas pela expressividade que a música conferia ao texto.

Outra característica também tem ligação com a qualidade do texto. Se ouvir-se Calvino, percebe-se que suas palavras ressaltam que o bom texto é aquele que leva as pessoas a se “direcionarem a Deus”. Sabedor da falta de concentração da mente humana, Calvino reconheceu que a música ajudava a reter a atenção da mente na mensagem. O canto “que fala à alma” fala de Deus, dos seus feitos grandiosos, principalmente do seu maior feito de ter enviado o seu próprio Filho à terra para ser o Redentor do mundo.

Um dos ensinamentos mais efetivos acerca do maior no Reino de Deus foi dado por Jesus Cristo, que, tomando em seus braços uma criança, disse: “Qualquer que receber uma criança, tal como esta, em meu nome, a mim me recebe; e qualquer que a mim me receber, não recebe a mim, mas ao que me enviou”. O evangelho tem estreita ligação com a lição de simplicidade contida neste quadro de Jesus e as crianças. Da mesma forma, diz-se do canto “que fala à alma” que ele é simples, sem afetação, compreendido e retido facilmente. Contribui para isso uma boa melodia, com as qualidades estéticas mencionadas adiante.

Além de bom conteúdo, que fala de Deus, e da simplicidade do canto “que fala à alma”, outro aspecto desse canto relaciona-se com a forma como é apresentado, o que também tem relação com suas qualidades estéticas e com a sua adequação à liturgia. À máxima popular de que “gosto não se discute” acrescentaria: “mas se aprende”. É tarefa dos líderes moldar o gosto musical de sua congregação, prestigiando cantos não somente não banais, mas sobretudo bem ensaiados. Embora a autora reconheça que a forma de apresentação não é critério de seleção para um canto, também não pode negar a sua relevância para o culto cristão. O caráter de improvisação aqui fica banido, mesmo porque, como já foi dito, o culto não é uma reunião qualquer, mas a reunião da comunidade com Deus. Isso requer tempo, habilidade e capricho por parte das pessoas envolvidas com música e liturgia. Além disso, acrescentaria que são pessoas que ensinam outras pessoas a cantar: não são instrumentos musicais, por melhor que sejam tocados. E por falar em pessoas, é sempre bom lembrar que muito da efetividade dos “cantos que falam à alma” diz respeito não só à preparação técnica dos que lideram o setor musical das comunidades cristãs, mas de sua preparação espiritual, de seu relacionamento com Deus. Uma vez estabelecidos o relacionamento e o conhecimento acerca de Deus, isso transparece na forma como lideram os cantos e como os selecionam. Essa forma de selecionar e de cantar é traduzida em adoração sincera, em que todo e qualquer apelo à autopromoção e ao orgulho é descartado e classificado como ato ignominioso.

O canto que fala à alma é um canto bem escrito, bem estruturado, bem ensaiado e bem apresentado, não devendo aceitar as formas de canto que porventura venham a favorecer o improviso e o orgulho ou a autopromoção221.

6.8 – A seleção de cantos deve visar a estética do culto

6.8.1 – Fenômenos anotados ao longo da história da música sacra

Um dos alvos de Lutero, no tocante aos hinos, é que fossem simples. Reconheceu que a música contemporânea secular tinha cantos e poemas muito mais bonitos e melhor estruturados do que a música sacra. Essa, na sua percepção, continha muita faul, kalt Ding, “muita coisa podre, fria”. Além disso, julgava importante que texto e música se correspondessem: “Es mus beyde, text und notten, accent, weyse und geperde aus rechter mutter sprach und stymme kommen, sonst ist alles eyn nachamen, wie die affen thun”. A poesia esteve sempre presente na sua obra, elemento que já empregou na sua primeira composição, “Um Belo Hino dos Mártires de Cristo, Queimados em Bruxelas pelos Sofistas de Lovaina”, seguido pelo “Alegra-te, Cara Comunidade Cristã”. No ano de 1524 traduziu os Salmos (tentava elevar o nível das traduções) e compôs boa parte de sua produção hinológica. Tentando contemporaneizar os cantos e preocupado em que houvesse melhor divulgação de cantos em língua vernácula, colocou-se à procura de bons compositores que produzissem hinos entendidos pelo povo. Da tradição, reteve o que era bom, sobretudo com fins educacionais.

Foram os irmãos Wesley que colocaram o hino em um patamar de excelência enquanto poesia. Diferentemente de Watts, que achava que os hinos deviam estar no nível da capacidade mais elementar das pessoas, os Wesley consideravam que as pessoas é que deveriam ser elevadas até a categoria dos bons hinos. Watts compunha respeitando a métrica tradicional usada na língua inglesa para os hinos, tradição também seguida pela antiga edição de Tate and Brady. Charles não seguiu exatamente essa tradição, mas inovou ao usar ritmos livremente, empregando métrica bem variada. Essa maneira de formatar os versos seria mais tarde consagrada na hinodia inglesa. Sobre sua habilidade com a língua, assim se expressou Bernard Manning:

He says what he has to say in the simplest, plainest way he can. He does not take refuge in abstract nouns and over-subtle adjectives. Concrete nouns, active verbs, and plain metaphors: these are his material. He can use a Latin word on occasion with great effect. At times he can be so scholarly as to be hardly understood by the crowd. But these are quite exceptional moods; and he is never foggy. His allusions sometimes may be too erudite for most grasp; but, once grasped, they are quite simple.

O século XIX foi palco de um movimento, dentro do romantismo, conhecido como Hino Poético ou Hino Literário: “The Literary Hymn may be described as one in which heightened feeling seeks to confine an impression of some reality of religion within the limits of the hymn form”. O líder do movimento foi Reginald Heber, que publicou The Christian Observer, cujos hinos propunham ser verdadeiros poemas, para se diferenciar do que estava sendo secularmente veiculado, cuja linguagem Heber considerava “erótica”. Outros também seguiram o mesmo ideal, ou seja, buscaram uma forma poeticamente mais elevada para os hinos que compunham. Entre esses, incluem-se Thomas Kelly e James Montgomery. Ao lado desse movimento literário, floresceu o movimento de restauração litúrgica, conhecido como “Movimento de Oxford”, que também contribuiu para oferecer uma linguagem mais poética e elegante. Não foram poucos os saltérios que apareceram escritos em linguagem mais refinada e de qualidade artística mais elevada.

No século XX, o Concílio Vaticano II da Igreja Católica Romana destacou a importância das artes para o culto cristão. O SC 122, no capítulo VII, assim reza:

Entre as mais nobres atividades do espírito humano estão, de pleno direito, as artes liberais, e muito especialmente, a arte religiosa e o seu mais alto cimo, que é a arte sacra. Elas espelham, por antureza, a infinita beleza de Deus a ser expressa por certa forma pelas obras humanas, e estarão mais orientadas para o louvor e glória de Deus se não tiverem outro fim senão o de conduzir piamente e o mais eficazmente possível, através das suas obras, o espírito do homem para Deus.

Depois do Vaticano II, foram redigidos muitos documentos da Igreja Católica Romana aprofundando questões concernentes à participação efetiva dos fiéis no canto da liturgia. A declaração conhecida como Snowbird foi aquela que tratou da importância da presença do belo na vida litúrgica da igreja. A beleza de um canto também não pode ser medida exclusivamente em relação a tal ou qual estilo musical usado, se desse período ou de outro. Considerou perigosa a posição da igreja quando se atém mais a finalidades pragmáticas e políticas e se esquece de celebrar dignamente a liturgia, em especial no que concerne à música. No levantamento que fez do que estava acontecendo, o documento chegou à conclusão de que “(…) much ritual music in the Catholic church today is hampered by an excessive academicism and an artless rationality”. Não viu nenhuma dificuldade em fazer a ligação da música tradicional com os novos postulados do Concílio Vaticano II. Encontrou maior dificuldade na adaptação da música litúrgica aos novos estilos populares, uma vez que observou que muito do que estava acontecendo pendia para “sentimentality, consumerism, individualism, introversion and passivity”. O documento foi rigoroso com os que selecionavam os cantos atuais sem observarem o etos da música da Igreja Católica Romana. Diante desse quadro, concluiu ser necessário um “retorno” ao tempo da Idade Média, quando as escolas de música eram fomentadas pela igreja, resultando em liturgias belas e de alta qualidade musical. Esse programa daria maior enfoque à formação de crianças e jovens, esforçando-se também para que o estudo da música estivesse vinculado a um estudo sério da história da liturgia e dos documentos oficiais da igreja sobre o assunto, especialmente do Musicam Sacram de 1967. Deu grande ênfase ao canto gregoriano, inclusive citando publicações da atualidade que contêm exemplares dele, mas fazendo a seguinte observação: “The church’s heritage of sacred music (…) must be used with careful attention to the structure of the reformed liturgy, with a well-informed sense for how a rite unfolds, and with respect for pastoral needs and sensibilities”. Esse documento veio sublinhar a necessidade de haver sempre uma aspiração à proficiência por parte dos responsáveis pela música na liturgia, os quais devem considerar o etos da música própria para a liturgia católica romana. Com a qualificação dessas pessoas, a expressão litúrgico-musical da igreja ganharia no sentido de oferecer o melhor, querendo assim expressar a beleza de Deus, presente na liturgia.

Os diferentes hinários observados no primeiro capítulo da presente pesquisa revelaram estarem, em sua maioria, atentos aos princípios lingüísticos inerentes aos idiomas utilizados. O American Catholic Book, por exemplo, preocupou-se em que houvesse perfeito ajuste entre palavra e ritmo musical, preferindo ainda rimas naturais e métrica regular do versos. Além disso, para uma comunicação efetiva em termos de século XX, aboliu os termos arcaicos e palavras cujo sentido já tivesse caducado e aderiu à linguagem inclusiva. O hinário Voices United também se preocupou em utilizar linguagem inclusiva, evitando expressões que tivessem mudado de sentido ou que estivessem fora do contexto e modernizando os termos arcaicos de outras edições. O subcomitê de texto do Hinário para o Culto Cristão formulou alguns critérios que o nortearam na seleção de hinos. Entre eles figuram a correção gramatical da língua portuguesa, a propriedade teológica, a comunicação clara das verdades cristãs e a elegância. Lindolfo Weingärtner, relator da comissão do Hinos do Povo de Deus, preocupou-se muito com as traduções do alemão para o português. A pista que deixou para os tradutores é a seguinte:

No meu entender, o único caminho adequado na tradução de hinos é o de recriarmos as letras, refundirmos as estrofes, pensando em português, declamando e cantando em português, depois de nos termos deixado compenetrar e saturar pelo conteúdo do original. Eu me acostumei, por exemplo, a ler a letra original de um hino que me disponho a traduzir ao menos uma dúzia de vezes, até que ela chegue a ser como uma parte de mim mesmo.

6.8.2 – Considerações teológico-musicais

Rubem Alves, em “desabafo” contra a educação protestante que o ensinou que “latim era coisa de padre” e que, por isso mesmo, deveria ser evitado, chegou a expressar-se de modo favorável a ele, justamente em razão de não entendê-lo. Ao mesmo tempo, expressou amar a parte estética da liturgia, por ser a parte que não o levaria a pensar:

Deus não está na letra. Deus está na música. Para amar a liturgia eu paro de pensar. É preciso fazer dormir a minha inteligência. (…) Cessado o pensamento eu me transformo num ser só de sentidos, do jeito mesmo como nasci. Eu sou olho, ouvido, nariz, boca, pele. Vejo, ouço, sinto cheiro, sinto gostos, sinto toques. Amo a liturgia por sua artimanhas erotizantes, por aquilo que ela faz com os meus sentidos. (…) amo, na liturgia, a tudo aquilo que saiu das mãos dos artistas. Mas quando ouço as explicações dos teólogos e mestres o encanto se quebra e eu desejo que eles tivessem falado em latim, para que eu não tivesse entendido. (…) Deixa que a Beleza, sem palavras ou catecismos, evangelize o mundo. Deus é Beleza.

Embora o texto esteja crivado de um “lirismo” que exacerba a parte estética da liturgia, está, por outro lado, cheio de verdade quando afirma a importância do belo na liturgia. Joseph Gelineau explicou da seguinte forma a relação entre culto e arte:

O culto pretende comunicar a realidade oculta daquilo que a arte sugere na aparência. (…) A liturgia cristã, culto do verdadeiro Deus revelado em Jesus Cristo, revela claramente que não poderia, menos que qualquer outro culto, privar-se da arte. Vestes dos ministros, forma literária das orações e dos prefácios, cantos das orações comuns, coreografia das cerimônias, arquitetura do lugar do culto, ações ou objetos sagrados, são todos mais ou menos ritualizados graças à arte dos homens.

Foi ainda Gelineau que afirmou ser a parte estética de um canto mais apreciada quando se observa todo o contexto litúrgico em que a música se insere:

A “estética” de um canto litúrgico não é apenas a de um texto com sua música, mas a de toda a celebração em que o canto intervém. Assim acontece inúmeras vezes que um canto muito simples possa ser julgado sem valor na partitura e, no entanto, contribuir maravilhosamente para elevar a qualidade da oração e a estética da celebração, enquanto que uma peça de grande arte, demasiado difícil ou inadequada, só serve para desfigurá-la. (…) O primeiro serviço que a música e o canto prestam à liturgia é o de fornecer-lhe um “instrumento de celebração”.

Desde tempos remotos essa preocupação tem despertado interesse entre poetas e músicos. Os salmos do AT são prova irrefutável de que há milênios a humanidade tem sido convidada a louvar a Deus: “Louvai ao Senhor, porque é bom e amável cantar louvores ao nosso Deus; fica-lhe bem o cântico de louvor”. Mais que isso, o salmista, ao convidar as pessoas a louvarem a Deus durante o culto, deseja que isso seja realizado “na beleza da santidade de Deus”: “Tributai ao Senhor a glória devida ao seu nome, adorai o Senhor na beleza da santidade”. Jaci Maraschin considerou a expressão “beleza da santidade” o fundamento da liturgia:

A liturgia é isso: a reunião do divino com o humano na plenitude da beleza. Essa chegada no céu com tudo o que somos e temos. Santidade é a mesma coisa que comunhão. E só se torna beleza na plenitude dos encontros. (…) A “beleza da santidade” opõe-se à feiúra dos egoísmos, das injustiças e das opressões. Não pode haver egoísmos na liturgia. (…) Sempre achei que a beleza fazia parte da vida da gente e que se revelava principalmente no encontro das pessoas. E que pessoas se tornavam belas quando sorriam, se amavam e se mostravam solidárias entre si.

O mesmo autor fez um paralelo entre a celebração do amor humano, relatada no Cântico dos Cânticos, e a “beleza da santidade”. Essa seria melhor entendida quando fosse transposta para atos específicos e claros entre os irmãos que se amam de verdade. Na sua percepção, a liturgia deveria revelar essa interação de amor existente entre aqueles que se congregam para o culto:

Não seria a Igreja, então, a celebração desse amor humano? Não era por isso que a gente se reunia semanalmente para o culto? Comecei a perceber que a liturgia cristã, que tanto falava do amor a Deus, estava fundamentalmente relacionada com o nosso amor humano. E que não poderia ter sentido nenhum a gente se levantar, sentar e ajoelhar como se a vida tivesse sido cortada em duas partes: uma vertical, dirigida para Deus, e outra horizontal, voltada para os outros.

Esse amor integral, expresso em relação a Deus e ao próximo, consumado durante a liturgia nas palavras de gratidão e de louvor a Deus e na vida diária em atos de solidariedade e compreensão, não pode abrigar gestos de acepção de pessoas. Embora em muitas igrejas as mulheres ainda permaneçam em plano subalterno ao dos homens, existem igrejas que estão reconhecendo a sua importância e entendendo que, para a realização da “beleza da santidade”, não pode existir acepção de pessoas: “Ora, se invocais como Pai aquele que, sem acepção de pessoas, julga segundo as obras de cada um, portai-vos com temor durante o tempo da vossa peregrinação “.

A música é um dos componentes que ajudam na configuração do todo estético da liturgia. Além dos aspectos pragmáticos da “beleza da santidade”, muitas vezes “invisíveis” no culto, existem os sinais sensoriais que tornam belo o culto. Os espaços litúrgicos e os utensílios utilizados no culto podem cooperar para isso. Essas considerações, de caráter mais pessoal, são relatadas a seguir.

6.8.3 – Observações conclusivas

O dito popular: “Quem ama o feio, bonito lhe parece”, embora explique bastante certas situações melindrosas, não cabe para o culto cristão. Foi visto que o culto deve refletir a beleza de Deus. Conforme o documento católico Snowbird, a beleza é um sinal real da presença e ação de Deus no mundo. Além disso, essa presença antecipa “a glória da liturgia da Jerusalém celestial”. Por que, então, as pessoas não se preocupariam com um culto bonito, harmônico no seu todo, em que espaços, utensílios, palavras, gestos e canto traduzem o que há de melhor?

A música, além de elemento auxiliar para a composição estética do culto, é um canal eficiente de comunicação. Sua maior virtude estética consiste em ser um elemento de verdadeira e sincera expressão dos fiéis nas assembléias cristãs. Contudo, para a eficácia dessa expressão estética, faz-se necessário zelar pela qualidade daquilo que é cantado. A beleza de um canto não pode ser avaliada em termos individuais, por gente cujo gosto pessoal dita “critérios seletivos” unilaterais. A análise da beleza do canto passa pelo estudo criterioso de disciplinas musicais afins: é necessário conhecer as regras da “gramática” musical, de harmonia, contraponto, história da música, ter noções de técnica vocal, regência e composição. Não há lugar para “palpites” infundados, do tipo “gosto, não gosto”. Mas, antes de qualquer mal-entendido, diga-se que este é um requisito dirigido àqueles que estão em funções de liderança do canto. É a eles que se faz essa exigência. Para avaliar o valor estético de uma obra musical e poder selecioná-la para o culto cristão, é preciso compreender as estruturas e os gêneros musicais, os estilos de cada época. Se não é importante que o povo tenha conhecimentos musicais, o mesmo não se pode dizer em relação aos líderes. Alíás, as pessoas costumam reproduzir os modelos que ouvem. Um líder ineficiente na técnica de voz será ineficiente como modelo a ser seguido. Havendo coro, este poderá servir como um meio para reforçar o canto congregacional e para ensinar ao povo as regras mais elementares da técnica vocal: afinação, emissão da voz, qualidade do som, respiração e outros tantos fatores que melhoram a qualidade estética do canto. Outrossim, há de se medir os efeitos benéficos e maléficos da projeção do som por microfones, preferindo-se, sempre que possível, a ampliação natural da voz. O uso de instrumentos eletrônicos deve ser regulado de maneira que não haja prejuízo do texto. A forma de apresentação dos cantos está diretamente ligada à estética do culto. O posicionamento adequado dos músicos, dentro do espaço de culto disponível, proporciona boa compreensão auditiva e contribui para valorizar a estética espacial. A colocação dos músicos no templo deve obedecer às normas físicas de uma acurada projeção do som, cuidando que não sejam invadidos espaços destinados a outros fins. E mais, a colocação dos músicos revela, direta ou indiretamente, o tipo de teologia do culto que a comunidade tem.

Tornam-se repugnantes os cultos em que a preocupação se concentra nas performances, quer individuais ou de grupos corais. Quando isso ocorre, a música do culto está mais para show do que para adoração, sendo necessário que o líder revise seus juízos estéticos. Se o culto não é palco de show, também não o é para mediocridades. Assim como a Eucaristia não é uma refeição qualquer, mas sim uma refeição solene, pois na sua origem era uma cerimônia singular na vida do povo judeu, também hoje esse momento é especial e requer todo o cuidado. Da mesma forma a música do culto, que é “o encontro da comunidade com Deus”, é um momento especial, não devendo ser banalizado. Tanto é verdade que, em muitos casos, não é qualquer pessoa que é escolhida para atuar nele. Há uma postura de dignidade a ser conferida ao culto, sendo a música uma fator altamente relevante para esse fim.

Por essa mesma razão, por ser música sacra, sua linguagem e o texto têm um peso muito significativo. O senso estético de um canto não deve ser só medido pela música, mas também e principalmente pelas palavras e conteúdos que veicula. Toda língua tem suas regras gramaticais: conhecê-las e respeitá-las é o mínimo que se pode exigir para a formulação do texto sacro. Pela mesma razão, devem ser evitados os clichês, pois, além de serem entendidos apenas por um determinado grupo, empobrecem o texto. É através das palavras que grande parte da teologia e dos ensinamentos doutrinários são transmitidos. Mais que o sermão, esses hinos, repetidos, forjam o caráter cristão, moldam a fé, incentivam o serviço cristão, revigoram o ânimo abatido. Por que, então, descuidar dessa linguagem? Se o texto é tradução de outra língua, mais do que nunca o cuidado precisa ser redobrado, pois, além de manter o sentido primitivo do texto, tem-se que preservar a boa compreensão na língua para a qual a obra está sendo traduzida, respeitando regras da gramática e da poesia. Outro elemento fundamental tem relação com a conjugação de letra e música, ou seja, é necessário, para se obter uma obra esteticamente valiosa, que haja boa prosódia: sílabas tônicas das palavras caem em tempos fortes do compasso; sílabas átonas caem em tempos fracos do compasso. Essa regra simples, se não cumprida, pode causar grandes estragos estéticos e prejuízos “auditivos”. Ignorar sua existência é aviltar a língua e ferir os ouvidos dos que se congregam para o culto.

Já foi visto que a boa qualidade estética deve-se a um conjunto de elementos que, unidos, conferem ao culto um ambiente digno do Deus a quem se quer cultuar. A música é um desses elementos e é vital para que esse objetivo seja alcançado. Além dos elementos “externos”, como a arquitetura e os utensílios, a “beleza da santidade” do culto consiste em oferecer “serviço” a Deus na forma de adoração com palavras e vida solidária. A conjugação de todos esses esforços permite um culto sincero e esteticamente agradável.

6.9 – Conclusão

Considerando a tensão entre a tradição e a contemporaneidade na música sacra, foram exitosos os tempos e os líderes que optaram por tornar os cantos acessíveis ao povo congregado para o culto. Qualquer outro critério de seleção de hinodia deve estar subordinado à acessibilidade popular. A participação do povo na liturgia cristã não se restringe a ser apenas ativa, mas deve também ser efetivamente significativa. Sugere-se que os líderes tenham o cuidado de hierarquizar os demais critérios em relação ao primeiro aqui eleito.

A contemporaneidade dos cantos tornou-se imperiosa nos momentos em que houve necessidade de contextualização. Novos ou recriados, quando o contexto assim exigiu e a liderança esteve atenta, os cantos transformaram-se em agentes facilitadores da compreensão dos assuntos do dia-a-dia das pessoas. Os cantos alienados da rotina humana nada ou pouco acrescentam à fé cristã. Quando muito, “enobrecem” uma teologia escatológica. Lutero, por exemplo, falava de seus problemas atuais, como o hino que descrevia a perseguição dos amigos e a maneira como eles permaneceram fiéis à Palavra. Watts quis “descer” ao nível do povo, tanto que optou pela métrica poética mais popular para formatar seus hinos. Os Wesley utilizaram as melodias populares em voga e compuseram hinos que falavam de práticas usuais cotidianas.

A opção entre cantos novos e/ou tradicionais será facilitada quando a comunidade determinar de antemão qual a teologia de suporte para o seu culto. Quando isso não acontece, as escolhas ficam embasadas em critérios claudicantes, como o tão executado “gosto pessoal”. A igreja primitiva expressou-se querigmática, koinoníaca e liturgicamente. Quando a igreja se fundamenta nesses três princípios teológicos, ela tem respaldo para uma seleção de cantos mais concretamente relevantes.

Um grupo que conhece bem o seu passado histórico tem melhores condições de saber que cantos reter da tradição. Nos diversos segmentos cristãos, existem marcas “registradas” do tempo que não devem ser apagadas. Quando essas características se perdem, quer por negligência, quer por desconhecimento da história, a comunidade perde sua identidade confessional. Em nome de uma “pseudo-contextualização”, muitas igrejas acabam fragilizando essas marcas dando ouvidos a expressões originárias de outros ambientes, com outras ênfases teológicas e doutrinárias, que comprometem sua feição. Ser “atual” e desprezar a herança histórica pode comprometer a identidade de um grupo.

Conhecer a história é também conhecer o seu corpo de doutrinas principais. Já nos primeiros séculos da era cristã, os cantos foram decisivos no combate de heresias, como a dos arianos e dos gnósticos. Não foi sem razão também que um jesuíta temeu mais os hinos de Lutero do que a sua pregação. Os hinários de Watts e os de Wesley retinham os Salmos, contextualizavam-nos (Watts cristianizava-os), mas eles também compunham novos cantos que vinham ao encontro do novo contexto de suas igrejas, principalmente para instruir o povo nas novas doutrinas apregoadas. Veja-se o caso da Igreja Católica Romana e do canto gregoriano: desde a Idade Média ela vem defendendo o uso dessa tradição, cônscia do seu valor educativo. Quando reter ou quando inovar pode ser decidido à medida que se entende o valor da instrução doutrinária dos hinos para a comunidade.

Quanto ao critério de seleção de cantos que se tem chamado de “adequação à liturgia”, as denominações de tradição litúrgica mais acentuada têm maior facilidade de opção. A própria seqüência litúrgica ajuda nessa eleição, pois determina previamente o assunto do canto bem como o lugar exato, dentro da liturgia, em que ele deve vir. Nas igrejas livres existem variadas tendências litúrgicas, o que dificulta a execução do critério da “adequação litúrgica”. As igrejas protestantes que adotam a fundamentação litúrgica de Isaías 6 possuem diretrizes mais exatas para determinarem a adequação dos cantos, pois o texto sugere cinco partes para a liturgia: adoração, contrição, louvor, edificação e consagração. Aquelas que não têm ordem fixa de liturgia e seguem o tema do sermão (escolha homilética), posto que isso empobreça a expressão musical e a diversificação dos cantos no culto, não deixam também de ter um critério para a escolha de cantos adequados à sua liturgia.

A “emoção” é um dos elementos que compõem a “tríade” presente no sentimento humano: emoção, conhecimento e vontade. A atitude da pessoa no culto deve incorporar os aspectos valorizados por Jesus: alma, entendimento e força. A música tem o poder de ser um agente eficaz da emoção. Os primeiros cristãos sabiam disso, tanto que se expressavam com os “cânticos espirituais”. Watts, os Wesley e os evangelistas do século XIX descobriram esse agente e fizeram do canto um meio de sensibilizar a emoção dos que os ouviam. Nunca antes o canto sacro cristão havia sido tão usado com essa intenção. O novo “estilo” de canto coadunava-se perfeitamente com os propósitos das reuniões evangelísticas.

Não se pode conceber o culto cristão despido de seus aspectos estéticos. Existem muitos fatores responsáveis pela estética do culto, que podem ser “internos” ou “externos”. A “beleza da santidade”, um aspecto “interno”, pode ser encontrada num culto e que se associe a adoração a Deus com a vivência cristã de serviço ao próximo. Quanto aos aspectos estéticos “externos”, a música é reconhecidamente mais que relevante para dar à liturgia um todo bonito e agradável. Além disso, associando-a a um texto poeticamente bom ou a uma tradução bem feita, esses elementos se tornam instrumentos “palpáveis” de que é possível um culto belo. Quando, diante de cantos tradicionais ou de cantos atuais, se pode aplicar o critério da estética, a escolha entre um e outro é mais acertada. Foi por essa razão que os líderes da Igreja Católica, nos documentos Mediator Dei e Snowbird, convidaram as pessoas ao estudo da música e de disciplinas afins, pois é só através do conhecimento que se podem adquirir os meios para determinar as características fundamentais de um canto esteticamente adequado à igreja. Afirma-se aqui mais uma vez que, para a aplicação do critério de que “a seleção de cantos deve visar a estética do culto”, é necessário que os líderes se apliquem ao estudo da música. Mediante esse conhecimento, estarão aptos e habilitados a guiar os demais músicos a conduzir o canto congregacional, através de uma seleção de cantos que vise favorecer a estética do culto.

Na tensão entre cantos tradicionais e contemporâneos, aplicados os critérios de seleção acima expostos, as pessoas terão melhores condições de optar entre uma e outra tendência.


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