O Ministério Levítico e a Influência do Humanismo na Música Evangélica Contemporânea

por: Rubens Ciqueira

Terceira Parte: A Influência Humanista na Música Evangélica Contemporânea

Capítulo 02: O Papel da Música no Culto

Na verdade o culto a Deus não admite espectadores. Todos são atores e devem saber o que estão “dizendo”, de forma literal ou dramática (ritual), porque o Deus do culto sonda os corações.

Rubem Amorese compara o culto com um espetáculo de ópera, e é interessante poder observar essa analogia. Com toda certeza para quem já observou um espetáculo assim, vai ter a sensação de que seja talvez a expressão artística mais completa de que o ser humano tenha sido capaz. Não se trata de comparar essa forma de expressão com outras, como o teatro, o cinema, a oratória, ou mesmo a pintura. A ideia de completude está apenas no fato de que a ópera envolve, em sua complexidade a grande maioria dessas formas de arte. Em seu seio há espaço para a dramaturgia, para o canto lírico, para a expressão pictórica, através dos cenários e efeitos especiais, para a música instrumental, na forma de solos, duos, quartetos, e sinfônica[1] . Vejamos algumas semelhanças.

2.1 – O Clima de Espetáculo.

Um dos elementos menos palpáveis, todavia mais buscados em qualquer apresentação pública dessa natureza é um clima favorável. Von Carajan, o famoso maestro recém-falecido, ao se propor a gravar grandes peças sinfônicas pela técnica digital, se deu conta, rapidamente, que todos os recursos de gravação, estúdio, e edição eram infrutíferos para produzir essa qualidade especial de um grande espetáculo: aquela noite, aquele auditório especial, aquele momento mágico. Passou a exigir que as gravações fossem feitas a partir de espetáculos reais, com platéias reais.

Como compreender esse fenômeno? Seria possível desseca-lo? Reproduzi-lo? Por que alguns espetáculos são tão exuberantes, e outros parecem ser feitos por máquinas? Aí estão questões difíceis[2] .

É de extrema valia menciona que, no entanto, algo parecido acontece em nossos cultos. E não está ligado, apenas ao preparo do sermão, ao ensaio do coral, ao preparo dos celebrantes. Está ligado a um clima especial, adequado ao que se vai fazer. Uma predisposição para o que se pretende naquela hora e naquele lugar, compartilhada por um grande grupo. E é preciso que cada um esteja consciente no propósito a que ele veio até ali e na sua participação, como parte importante e integrante do espetáculo.

É possível que haja ligação com fatos e acontecimentos recentes, seja na igreja, seja no país. Sejam bons ou maus, eles são capazes de desencadear uma uniformidade de sentimentos e de predisposições. É possível também que haja ligação com o ambiente criado no local da celebração. Percebemos que há cultos que começam com improvisações, gente conversando animadamente no templo, já iniciados os trabalhos, música inadequada, e tantos outros fatores que podem gerar o clima indesejado.

Nesse sentido, o domínio da linguagem musical pode muito ajudar, se trabalhada em harmonia com o todo litúrgico. A música tem o poder de nos agitar ou acalmar; predispor ou indispor para dada tarefa ou atitude.

2.2 – Platéia e Artistas

Precisamos entender que Deus nos chamou para sermos adoradores, e que cada um tem que fazer sua parte como algo que é fundamental naquela “apresentação”. Todos nós somos artistas e precisamos fazer o melhor para Deus.

Percebemos que há uma confusão nestes papéis, não sei se por displicência ou fruto da filosofia da época, mas se as pessoas forem a uma igreja, sentarem no banco e se portarem como platéia, estarão tomando o lugar de Deus, que está ali para ver seus artistas que também são seus filhos.

No caso da ópera não é muito difícil de dizer: aquele que tem o bilhete de entrada pago é platéia. O resto, ou trabalha na casa ou é artista.

Se considerarmos o momento de culto, isolado da dinâmica administrativa da igreja, diremos que só há dois papéis: o do artista e o da platéia. O artista é aquele que cultua o Senhor. E platéia é o próprio Senhor. O resto é mobília. Mesmo que de carne e osso. Não há platéia humana na verdadeira adoração. Todos somos chamados a ser artistas[3] .

Muitas vezes ouvimos pessoas dizerem que não gostaram do culto, que vão procurar coisas melhores, que não gostam de assistir a tal ou qual pregador, etc. Já temos dito que o fenômeno da celebração certamente tem um efeito reflexivo, ou seja, comunicamos coisas para nós mesmos. As nossas expressões se voltam sobre nós. Nesse sentido restrito, somos platéia. No exato sentido em que um violinista é platéia de si mesmo e pode não gostar de tal ou qual apresentação. Tendo senso crítico, ele é capaz de tal avaliação.

Ocorre engano, no entanto, quando subimos ao templo para assistir ao espetáculo. A postura está equivocada, no nosso modo de entender. Tudo tem que ser montado, ensaiado, produzido, no sentido de que nosso público exclusivo e cativo se agrade da nossa performance. E essa preparação não é somente de forma, como já foi visto. Nosso “público” sonda os corações.

Imaginamos que o Senhor vai à nossa apresentação como um pai assiste à audição da banda da escola, em que seus filhos tocam. Com toda a indulgência e compreensão. Com coração mole de pai. Mas certamente ele saberá se essas crianças lhe estão oferecendo o que têm de melhor ou sobras e restos. Saberá, portanto, revelar com compreensão todos os erros dos filhos. Mas não se deixará enganar com subterfúgios e leviandades.

2.3 – A harmonia

Outro elemento que se deve considerar, ao comparar o culto à ópera, é o elemento da harmonia. Conquanto alguns Artistas possam ser de calibre internacional, ali, terão que trabalhar em grupo. Não poderão sobressair-se, e dar asas aos floreios de um solista. A ideia de conjunto de harmonia entre as partes é fundamental, do ponto de vista da platéia.

Imagine um solista que resolva aparecer, e mostrar todo o seu “valor”, em meio ao espetáculo. Acabará vaiado pelo público, por melhor que seja sua técnica pessoal.

Conjunto, afinação, sincronismo, são coisas que se conseguem com muito ensaio, com muita proximidade muita convivência e identificação.

Imagino que nosso “público” se agrade mais de um singelo violão bem afinado no louvor que toda uma banda em que os integrantes não são capazes de ensaiar, de trabalhar juntos, separados por outros interesses, senão por rixas. De uma coisa tenho certeza: se depender de uma platéia quente, incentivadora, atenta, silenciosa, no sentido do interesse, e estimulante para os artistas, não haverá melhor público que o nosso. Um público que chega ao ponto de intervir na apresentação, estimulando a cada um, no sentido de dar o máximo de si. As platéias de ópera não entendem nada de Espírito Santo.

2.4 – Características da Música na Adoração.

Há três características principais da música no que tange à adoração. A primeira é que ela permite ao cristão responder á revelação bíblica de Deus. Um estudo sobre hinos da fé cristã nos guiará a homens e mulheres que vislumbraram o caráter de Deus. Fanny Crosby, a compositora de hinos cega desde pequena, entendeu a grandeza de Deus e escreveu: “A Deus seja a glória! Grandes coisas ele fez!” Edward Perronet chegou a Cristo por intermédio do ministério de João Wesley. Ele cresceu na fé e viu a Jesus como Rei do Universo. Ele reagiu, escrevendo: “Saudai o nome de Jesus! Arcanjos, adorai! Ao rei que se humilhou na cruz, com glória coroai!”

Martinho Lutero enfrentou severa oposição, mas meditando no salmo 46:1, ele escreveu: “Castelo Forte é nosso Deus espada e bom escudo”.

A música, porém, é muito mais do que resposta à revelação dos atributos de Deus. Ela é também expressão de adoração e ações de graça pela vida transformada mediante um encontro com Deus. Ela representa um testemunho das obras de Deus no coração do homem. O Nascimento miraculoso, a vida perfeita, a morte cruel, e a gloriosa ressurreição de Cristo aplicados ao pecador que sofre produzem música maravilhosa.

Percebemos também que por meio da música de adoração reconhecemos os caminhos de Deus. Muitas vezes descobrimos o caráter de Deus no drama da tristeza e da dor humana. Os caminhos de Deus estão muito além do domínio do homem. Entretanto, muitas vezes seus caminhos se tornam conhecidos através das dores da vida. A adoração se torna miraculosa quando a miséria se transforma em música no teatro da experiência humana.

Apenas com seis semanas de vida, Fanny Crosby apanhou um resfriado que resultou em sua cegueira. Aquilo que parecia tragédia tornou-se triunfo divino. Deus deu a Fanny Crosby olhos espirituais para contemplar a glória de Deus. Ela escreveu mais de oito mil cânticos e hinos sacros. Um deles é: “Que segurança! Tenho em Jesus, pois nele gozo paz, vida e luz! Com Cristo herdeiro, Deus me aceitou mediante o Filho, que me salvou”.

Russel Shedd falando sobre adoração, ressalta o preparo que devemos ter para nos tornamos adoradores genuínos.

“Poucas são as atividades das quais participamos e que não podem ser aperfeiçoadas com preparo e treinamento. Exercícios físicos dão ao atleta possibilidades numa competição, que serão negadas a um pretenso esportista que não tem tempo ou energia para condicionar o seu corpo. Todas as profissões e artes requerem igual ou maior esforço e dedicação para serem apreciadas. Se qualquer pianista oferecer um concerto, sem primeiramente consagrar incontáveis horas de ensaio e aperfeiçoamento, sem dúvida ele receberá vaias em vez de elogios. Cultuar também exige preparo. Reconhecemos, em princípio, que Deus tem, para nós, seus filhos, importância infinitamente maior do que qualquer auditório ou recipiente de serviço profissional. Mas, na prática, comumente esquecemos Aquele a quem oferecemos nossa adoração. O preparo que prestigiamos é o do líder do culto ou do coro, ou de qualquer outra pessoa que faça uso da palavra. A maioria na igreja, para não dizer todos os participantes, naturalmente conclui que está sendo honrada com um sermão que exigiu um alto preço em horas de concentração e preparo. Porém, o culto não tem o propósito principal de agradar aos participantes mas, sim, devemos nos lembrar continuamente que a condição de um “verdadeiro adorador” só será alcançada se os participantes se prepararem conscientemente.”[4] .

2.4.1 – Música Sacra

A principal função da música sacra (música eclesiástica ou música liturgica) é acrescentar uma dimensão mais profunda de envolvimento ao culto. Atualmente é provável que quase toda sala de coral tenha um cartaz com a citação de Agostinho segundo a qual a pessoa que canta ora duas vezes, só que os temores de Agostinho sobre atratividade excessiva da música nunca parecem ser mencionados. Há muita verdade nessa afirmação sobre orar em dobro; para cantar, é preciso ter a consciência plena do que está fazendo. A dança acrescentaria ainda outro nível de consciência. Para se contar um texto é preciso mais concentração do que recitar algo, embora excesso de familiaridade possa fazer com que o canto por vezes fique muito batido. Quando há música, geralmente se atinge um nível de desempenho ou atenção mais profundo do que quando não há música. A música portanto, acrescenta uma dimensão nova a qualquer evento. Ás vezes é preciso perceber o quanto ela incrementa a participação plena[5] .

Um fator que a música produz é a beleza. Precisamos ser cautelosos neste ponto, porque a criação de beleza não é o objetivo do culto (nem de certos tipos de música), embora a beleza possa ter considerável valor no culto. Há música com qualidades estéticas mínimas que mesmo assim parece funcionar bem como veículo satisfatório para certos indivíduos expressarem seu culto. Não se deve criticar um culto usando os mesmos critérios que se aplicariam a um concerto.

Uma função da música, então é oferecer algo que consideramos belo, não importa quão exígua seja nossa própria habilidade musical. É por isso que, quando a própria pessoa canta, isto implica mais participação ativa do que quando ela ouve outra pessoa cantando, por mais superiores que sejam os méritos musicais da mesma. Felizmente não são tantas as vezes em que precisamos optar entre as duas possibilidades; podemos ter música coral e congregacional no mesmo culto. Porém o canto congregacional tem a vantagem específica de dar a cada pessoa a oportunidade de oferecer a Deus o melhor som que ela pode criar. Não se pode substituir isso pelo esforço de outra pessoa[6] .

2.4.2 – Música Instrumental

A utilização da música instrumental, é motivo de muita discórdia e pouco consenso dentro da igreja. Há aqueles que apreciam e crêem, que é possível louvar a Deus ouvindo uma orquestra. Mas a grande maioria não compartilha dessa opinião, pedindo um culto que haja uma participação expressiva congregacional, onde todos têm a oportunidade para se expressar.

As necessidades de música instrumental variam até certo ponto conforme o instrumento ou a combinação de instrumentos usada. Geralmente se deseja um som brilhante e vivo, preferindo-se um pouco de reverberação, mas não suficiente para criar eco que prejudique a fala. O uso crescente de instrumentos que não o piano ou órgão exige que se providencie espaço[7] . E é por isso que quase sempre a música instrumental é dispensada nas igrejas, como pretexto principal, para que não haja discussões mais acirradas. Porque muitos não acreditam que a só ouvindo, não é uma forma de adorar a Deus.

2.4.3 – Música Coral

Se a principal função do coral é concebida como um compartilhar do ministério da palavra – canto para a congregação -, isto pode requerer uma localização de frente para a congregação. Mas um coral se destina a ser ouvido, não propriamente visto, e esta localização pode causar problemas. Mas onde quer que o coral esteja localizado, isto determinará com que sensação e significado o coral e a congregação vão ouvir o que é cantado[8] .

Cremos que se houver equilíbrio onde a congregação possa também se expressar, é mais uma forma de adorar a Deus. O que tem acontecido é uma “queda de braço” entre partidários somente do canto congregacional com aqueles que muitas vezes acham que somente o coral deveria cantar, porque isso requer técnica. A igreja precisa aprender ouvir e cantar adorando a Deus.

2.4.4 – Canto congregacional

O principal critério aqui não é beleza, mas a adequação da expressividade. O canto congregacional precisa passar pelo teste de expressar os mais íntimos sentimentos e pensamentos dos cultuantes.

O canto congregacional é dividido em salmódia (cânticos de salmos), hinodia (cânticos de hinos) e Cânticos. Eles variam enormemente em termos de forma e contexto. A canção gospel é um tipo informal e extremamente individualista.

A importância do canto congregacional nem sempre impede que seja negligenciado. Muitas vezes tendemos a tratar o coral como se ele fosse a congregação, ao passo que deveríamos, ao invés, tratar a congregação como se fosse o coral. O coral sempre é apenas suplemento da congregação, exceto em concertos sacros. O coral existe apenas para fazer aquilo que a congregação não consegue realizar, ou para ajudar a congregação a cantar melhor. Música coral não é substituto do canto congregacional[9] .

2.5 – Precauções Quanto à Adoração mediante a Música.

A música é veículo. Em si mesma ela não é adoração. É, antes, meio pelo qual os crentes transportam os sentimentos mais profundos do seu coração ao coração de Deus. É método de expressão de nosso amor a Deus. O método contudo, nunca deve substituir a essência da adoração.

É preciso que tenhamos sempre em mente algumas precauções básicas a respeito da música de adoração. A primeira é que devemos guardar-nos contra a familiaridade da música. É fácil demais reunir-nos com outros cristãos e cantar os grandes cânticos da fé. Com freqüência os cultos de cânticos de uma igreja são apenas tradição e ritual, em vez de adoração e louvor. Percebe-se isso não só entre os cristãos mais tradicionais, mas também entre cristãos que se consideram não tradicionais. Muitas vezes os tradicionais se acham simplesmente declamando palavras em vez de louvar a Deus da profundeza do coração. O mesmo se pode dizer dos que cantam músicas mais modernas, não tradicionais. Cantam músicas bíblicas familiares a eles, mas esses cânticos perderam a essência da adoração sincera. Devemos precaver-nos contra a familiaridade da música[10] .

A segunda, é que a verdadeira adoração está arraigada na graça de Deus e não no desempenho do homem. Portanto, devemos tomar todo o cuidado para jamais permitirmos que a música seja simplesmente vitrina de nosso talento. O objetivo da verdadeira adoração é a glória de Deus – jamais a grandeza de nossos talentos. A música é arte que deveria ser bem harmonizada a fim de expressar a majestade de Deus.

A música que produz adoração será participativa por natureza. A verdadeira adoração não tem espaço para um coração espectador; o âmago da adoração está no coração que participa. A adoração não pode sentar-se nas tribunas de honra da igreja observando o desempenho dos mais talentosos.

Outra precaução com referência à música relaciona-se com a compreensão cultural errônea. A única fonte de unidade cristã deveria ser adoração a Jesus Cristo. Não obstante, muitas vezes a música em nossa adoração passa a ser elemento de contenda e divisão entre os cristãos. Principalmente no país que vivemos onde há uma riqueza de ritmos e um regionalismo muito grande, obrigar pessoas a cantarem num ritmo que não lhes é familiar, é muito mais complicado. John Blanchard fala a respeito do uso do rock na evangelização em seu livro “Rock in Igreja”, e, apesar de sua proposta inicial era fazer uma análise equilibrada do assunto, recorre logo ao argumento mais simplista de que o rock é totalmente carregado de ocultismo, chegando a insinuar que este ritmo tem origem satânica. No quarto capítulo intitulado fogo estranho, o autor admite que é inviável utilizar deste ritmo para adoração a Deus[11] .

Finalmente, a música nunca deve tomar a prioridade das Escrituras na adoração. Devemos ser cuidadosos, porém, em lembrar-nos que a música veicula uma resposta à revelação de Deus no coração. Ela leva essa resposta ao trono do céu.

Notas:

[1] AMORESE, Rubem Martins. Celebração do Evangelho – compreendendo culto e liturgia. Viçosa- MG, Ultimato, 1995 p. 78.

[2] Ibid. p.80.

[3] Ibid, p.81.

[4] SHEDD, Russel P. Adoração Bíblica. São Paulo, Vida Nova, 1991, p.52.

[5] WHITE, James F. Introdução ao culto cristão, São Leopoldo-RS, Sinodal, 1997, p.85.

[6] Ibid p.86.

[7] Ibid p. 86.

[8] Ibid p.87.

[9] Ibid p.88.

[10] TIPPIT, Sammy, Digno de Adoração. São Paulo, Vida, 1992, p.117-128.

[11] BLANCHARD, John; ANDERSON, Peter; CLEAVE, Derek. Trad. Eros Pasquini. Rock in Igreja?!, São Paulo, Fiel, 1985. P. 43.


Fonte: Publicado originalmente em http://www.textosdareforma.net


Terceira Parte – Capítulo 03

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