Arranjo Instrumental: 1° parte

por: Joel Barbosa

Hoje no Brasil somos 165 milhões de técnicos de futebol e um número bem próximo desse de arranjadores. Nunca se viu tanto arranjador como ultimamente. Do ponto de vista da produção, isso é bom, mas, certamente, a qualidade fica comprometida. Por esse motivo, quero trazer aqui algumas dicas relacionadas à produção de arranjos instrumentais.

Primeiro, vamos às definições práticas:

Arranjo – é a criação propriamente dita. É o momento das ideias. Pode ser empírico ou induzido tecnicamente;

Instrumentação – é o conhecimento particularizado dos instrumentos e seus acessórios, de modo que o compositor/arranjador possa extrair de cada um deles o máximo dentro daquilo que necessita (incluindo os efeitos especiais que cada instrumento pode proporcionar) para a sua orquestração;

Orquestração – é a manipulação dos recursos instrumentais disponíveis, de forma a dar vida à sua concepção criativa (a composição ou o arranjo). A orquestração é a ferramenta maior do compositor/ arranjador (não se pode orquestrar sem os conhecimentos fundamentais da composição musical).

Dadas estas definições, vamos falar sobre alguns pontos importantes para a realização de um arranjo musical. A atitude de se fazer um arranjo requer que o arranjador, antes de qualquer coisa, saiba para que e para quem se destina o trabalho, e que a melodia e a letra da canção a ser arranjada sejam internalizadas, pois assim ele terá subsídios para realizar um arranjo voltado aos fins que se destina, com todo o potencial comunicativo que a criação deva ter.

A melodia de uma canção a ser arranjada deve ser analisada do ponto de vista musical e poético (a letra); do lado musical, as células, incisos, semi-frases, frases, saltos característicos, etc., devem ser conhecidos, pois, a partir deles, muito material poderá ser extraído para o desenvolvimento do arranjo (tendo em mente, por exemplo, que uma frase pode sugerir um certo timbre e uma certa característica de execução bem específicos para o que se busca). A harmonia básica deve ser analisada e avaliada naquilo que ela pode oferecer à intenção do arranjo (a rearmonização poderá partir daí, também). Já o lado poético de uma canção, que muitas vezes não é levado em conta e que é um rico celeiro de informações para o arranjador, é onde se tem o principal indicador do “para que e/ou para quem” se dirige aquela canção.

A letra determina o caráter do arranjo. É para a letra de uma canção que o arranjador deve ter os ouvidos (e olhos) abertos a fim de detectar que efeitos especiais poderão ser criados a partir das cenas que surgem no decorrer da poesia e nos efeitos onomatopaicos das palavras.

O arranjador não deve ter pressa em desenvolver as ideias que aplicará em um arranjo, pois quanto mais ele “mastigar” a melodia, mais ele entrará nela e as boas ideias surgirão de forma mais concreta. Um arranjo realizado em cima da hora nem sempre será como um arranjo feito com um planejamento (comparando um arranjo a uma construção civil, entenderemos que cada qual, igualmente, precisará de um planejamento meticuloso e que a realização se dará por etapas).

A escolha dos instrumentos que executarão um arranjo tem dois lados para o arranjador: o primeiro é quando ele tem a total liberdade de escolher quantos e quais instrumentos necessitará para dar a real vestimenta à sua obra; o segundo, quando o arranjador conta com um número restrito (e específico) de instrumentos e não poderá dispor de nenhum outro além daqueles. No primeiro caso – que é muito raro -, o arranjador tem a tranqüilidade de “voar”, de sonhar, e trazer à realidade grandes devaneios da criação, lançando mão do luxo de ter ao seu dispor toda a fonte sonora; já no segundo caso, porém, o arranjador, além de ter a obrigação de realizar, de forma clara, o seu objetivo, terá que trabalhar durante todo o tempo com os instrumentos que tem à sua disposição em mente. A partir daí, então, ele poderá contar com os modificadores de sonoridade, tais como as surdinas e os efeitos especiais criados nos instrumentos pelos seus executantes, bem como a capacidade virtuosística de cada executante (o que deve ser explorado dentro dos limites de cada um) para criar a variedade (tão importante nos arranjos).

Os passos a serem seguidos na realização de um arranjo são diferentes, de arranjador para arranjador, mas todos sabem qual o melhor procedimento a adotar, de acordo com o seu método de trabalho.

Quando se entra no aspecto da escrita propriamente dita, é importante que o arranjador tenha um bom conhecimento de instrumentação, para que possa, sem “receios”, manusear os instrumentos disponíveis para o seu projeto. É sabido que escrever para um grupo reduzido de instrumentos é mais delicado (difícil) que para uma orquestra. Criar a ilusão de um naipe de metais quando você tem dois metais e três palhetas, ou compor um acorde de cinco sons com somente três instrumentos, ou conseguir contraste e variedade com recursos tonais limitados, são problemas normalmente endêmicos na escrita para pequenos grupos. A escrita instrumental tem algumas regras básicas, cuja observação previne uma série de erros primários, muitas vezes cometidos por músicos “arranjadores” talentosos. Aqui estão algumas:

  • Observe a série harmônica: maiores intervalos (abertos) na base e menores (cerrados) no topo;
  • Escreva idiomaticamente. Tenha sempre o instrumento para o qual você está escrevendo em mente. Leve em consideração as características tonais e individuais de cada instrumento;
  • Escreva sempre em registros confortáveis para todos os instrumentos;
  • Em todos os instrumentos, as notas agudas devem ser conduzidas, preparadas (não devem ser atacadas a partir do nada);
  • Instrumentos grandes tendem a ser menos ágeis;
  • Os instrumentistas de instrumentos de sopro necessitam de pausas (no decorrer da música);
  • Escreva todas as linhas de seu arranjo instrumental mais como uma entidade horizontal que vertical. Pense em linhas;
  • Não se esqueça da dinâmica, indicação de tempo e das marcas de expressão;
  • O estilo da escrita, o grupo de instrumentos, o número de vozes, etc., deve sempre coincidir com o início de uma nova ideia, de uma nova frase ou de um novo tema;
  • É tarefa do arranjador fazer com que cada parte seja ouvida dentro da sua própria perspectiva. Para prover a proeminência em cada parte, variados fatores devem ser combinados:
  • Dinâmica: aumenta o volume de um instrumento e diminui o dos outros, trazendo proeminência ao mais forte;
  • Movimento: se tudo é igual, a voz que se movimenta será proeminente sobre as vozes estáticas;
  • Espaçamento: o instrumento que for posicionado à distância dos outros será proeminente;
  • Quando o ritmo de um instrumento for marcante, diferente dos outros instrumentos, particularmente se for complexo, o instrumento sobressairá;
  • Tessitura: um instrumento que se mantém num registro extremo agudo ou extremo grave, tende a sobressair;
  • A propriedade física dos instrumentos: metais se sobressaem às cordas e às madeiras;
  • Se tudo está combinado, se todas as coisas são iguais, sobressairão as vozes externas (a base e o topo)
  • Exceto em situações especiais, um instrumento escolhido para tocar um tema deve ser capaz de realizá-lo por completo;

Por último, a realização do esboço de um arranjo tem provado ser de grande auxílio para os arranjadores, uma vez que toda a ideia sobre o trabalho está sintetizada, e cada parte está tão clara quanto numa partitura já acabada. O esboço deve ser construído tão logo o arranjador tenha as primeiras ideias sobre o seu arranjo (antes mesmo que se tenha realizado a rearmonização definitiva do texto musical), independente das modificações que certamente ocorrerão em seguida.

Em uma próxima oportunidade, falaremos sobre características dos instrumentos, notação musical para a base (piano, baixo, bateria e guitarra) e mais algumas dicas de como produzir um bom arranjo instrumental.


Joel Barbosa é arranjador, compositor, produtor musical, professor e regente da OCBrass e da Orquestra Sinfônica da Escola de Música de Brasília (DF).


Fonte: Publicado na Revista Weril n.º 132