História da Música

História da Música – Barroco

por: Fábio Lindquist

Podemos definir o a arte barroca como a manifestação de um poder estabelecido e, quase sempre, absoluto. Uma forte carga ideológica influenciou a prática artística, gerando um barroco da burguesia protestante, e um barroco da Igreja e da Corte. Os artistas lutarão para ser considerados nobres e, sua arte, liberal.

A conexão entre arte e sociedade trará consigo o desenvolvimento de obras perfeitamente adequadas às preferências dos diversos encomendadores, sobretudo nas manifestações da Corte e da Igreja, em que a ideia artística, ma maioria dos casos, será produto da mente daquele que encomendou a obra, convertendo-se o artista em mero e fiel executor. A ditadura do gosto, nas sociedades burguesas, entrará num jogo de oferta e procura, o incrementará o comércio de arte.

No barroco, a inter-relação das artes, a busca de um caráter unitário, uma arte total, englobando todas as manifestações artísticas, é uma característica marcante. A arquitetura converte-se num marco idôneo, capaz de acolher as plásticas pictórica e escultórica, integrada em um todo unitário. Nunca havia se tentado um tipo de integração que, fugindo do meramente decorativo, isto é, acrescentando, se convertesse em algo orgânico, dentro de um conjunto global. O espaço arquitetônico transforma-se em theatrum sacrum, em que a pintura e escultura são elementos da representação. (TRIADÓ, 1991)

A linguagem musical, cujos primeiros indícios – como linguagem propriamente dita – julgamos poder situar na polifonia renascentista, não chegara à sua plena realização senão após a evolução de novos princípios musicais próprios ao chamado sistema tonal. Enquanto a arte renascentista deseja exaltar a razão do Homem, a barroca deseja expressar as emoções.

Em meados do século XVII, a música já era considerada como sendo não apenas uma espécie de linguagem, mas sobretudo um modo de comunicação que obedecia certas determinações, as quais acabaram por ser englobadas num sistema filosófico-musical sob a denominação de teoria dos afetos. Segundo tais determinações, a música viera estabelecer-se como a linguagem mais adequada sempre que se tratava de expressar ou provocar certos sentimentos, emoções e paixões, ou seja, os afetos humanos. Durante esse período, diferentes estereótipo de certos estados emocionais foram traduzidos em temas musicais que um compositor poderia usar para compor uma música. (STEFANI, 2002)

Apesar disso, o sistema tonal surgiu num contexto do racionalismo. Nesta época, importantes trabalhos científicos foram produzidos, como a criação da Geometria Analítica, por René Descartes. Em Paris fundara-se a Academia das Ciências, e nesta, pela primeira vez, se reconheceu a Acústica como uma ciência autônoma. E era da Acústica que se exigia que desvendasse, por meio da razão científica, os mistérios ainda envolvidos no domínio da música. Era a estreita vinculação de um trabalho prático de produção musical com atividades teóricas de investigação científica que permitiria o surgimento do sistema tonal, o qual acabaria por encontrar sua fundamentação numa estrutura de conceitos perfeitamente racional, edificada sobre os acordes e suas associações. E foi com base nessa concepção que se desenvolveu um Tratado de Harmonia.

Embora essa preocupação com os acordes tenha em seu início como conseqüência das práticas homofônicas, isto é, de uma reação às práticas polifônicas, evoluiria para uma polifonia tonal, em oposição à polifonia modal anterior. Agora todos os fenômenos melódicos envolvidos na trama das diversas vozes simultâneas teriam que sujeitar-se ao novo sistema. Assim, enquanto na polifonia modal qualquer acorde não podia surgir senão como conseqüência quase passiva das trajetórias melódicas das diversas vozes, na polifonia tonal essas trajetórias já são conscientemente programadas tendo em vista os acordes a serem alcançados.

Os acordes seriam conglomerados de notas simultâneas, apoiadas em notas fundamentais que se localizavam nos diversos graus da escala. Os teóricos da época descreviam a ordem da expressão musical a partir da Harmonia, e para estes somente a harmonia tinha a capacidade de expressar as paixões. (SCHURMANN, 1989)

A expressão das paixões, a dramaticidade, encontrará seu lugar, além da música, na arquitetura. A arquitetura do século XVII evoluirá em dois sentidos: a definição de um espaço unitário e a formação de um espaço especulativo. Essa formulação, espacial e de conjunto, define dois momentos de um mesmo discurso. Inicialmente, as ordens religiosas necessitaram de igrejas para acolher seus numerosos fiéis e a nave única converteu-se em hábil solução. Num segundo momento, o sentido propagandístico prevaleceu e a busca de um espaço individualizado se acentuou. Assim, da planta longitudinal, passar-se-á a soluções complexas em todo o espaço arquitetônico. Acrescentar-se-á o infinito como valor essencial, rompendo-se a ordem fechada das estruturas arquitetônicas. Portanto, essa corrente pode ser definida como contra-reformista.

A ideia de unidade espacial, latente nas formulações barrocas, vai lograr um todo que não seja a composição das partes. Isso dá início à especulação arquitetônica. Essa especulação tem, norteando-a, a total integração espacial e a eliminação de zonas de conflito que quebrem a ideia globalizadora do espaço. Reforça-se, desta forma, o sentido teatral do espaço, que recolhe num só ponto, fazendo-as confluir, todas as partes do conjunto. Assim, o espectador não está num lugar do espaço, mas dentro do próprio espaço, absorvido pelo movimento e pela interpenetração das partes num todo. Assim, um conjunto de dimensões reduzidas, por não poder ser medido e delimitado, cria uma espacialidade enigmática, que o faz maior aos olhos do espectador. Propõe, ao mesmo tempo, um percurso visual que, por falta de elementos diferenciados, leva-nos sem descanso ao longo de um contínuo sem fim. (TRIADÓ, 1991)

O dominante estilo de música de igreja, transcendental, manifestado no canto gregoriano e na polifonia, não desapareceu com o começo da Reforma Protestante. Mas através da nova compreensão da atitude reconciliatória de Deus com a humanidade, a música que expressava a vida cotidiana já não era mais evitada. (STEFANI, 2002)

Partindo de seu princípio mais racionalista, a música barroca se utilizava de uma polifonia mais comedida. Isso se enquadrava na ideologia inicial da Contra-Reforma, que procurava buscar novamente a austeridade perdida na Idade Média, como forma de atrair os fiéis “perdidos” para o movimento reformista protestante. Seguiu-se um período de repressão artística, incluindo a música. O Concílio de Trento decretou que a música fosse pia e celebrasse a religião. Assim, a estrutura musical consistia de tema e acompanhamento, ou seja, de uma melodia e ornamentos. (SCHURMANN, 1989)

Pressões da Igreja Romana, que exigia o claro entendimento das palavras litúrgicas cantadas pelos coros, levaram a uma simplificação das vozes sobrepostas, e com isso, inicialmente, o papel individual de cada melodia se tornava secundário, se adequando a nova concepção harmônica da homofonia. Em contrapartida, uma melodia que se destacasse como principal sobre o acompanhamento, era investida de uma importância inexistente até então, o que redundou no surgimento da figura do solista.

A estreita integração da música com o texto, tanto melodicamente como ritmicamente, se adequaram aos ideais humanísticos da época. Embora feito pela recém criada Igreja Protestante por razões teológicas. Os instrumentos musicais, antes proibidos, são incorporados no acompanhamento dos hinos.

Em resposta ao chamado de Lutero para canções de adoração congregacionais e vernáculas (na língua do povo, e não mais em latim), um novo estilo de música sacra (o chorale) foi intencionalmente criado. Esteticamente, isso significou a adoção de ideais que eram mais próximos do homem comum e da realidade natural da experiência cotidiana. A música congregacional necessitou de um estilo de música mais apropriada para vozes destreinadas e linguagens vernáculas. (STEFANI, 2002)

Mas logo a ideologia do clero mudou, e o desejo de se ostentar a opulência e magnificência da Igreja se consolidou. No período barroco assistiu-se ao revitalismo triunfante do catolicismo, invertendo-se algumas das derrotas para a Reforma. O Papado respondeu com uma grande determinação em reinstaurar sua autoridade. Em contraste com os valores de austeridade e simplicidade do protestantismo, encorajava a criação de uma arquitetura grandiosa.

As formas inicialmente contidas da arquitetura, ainda carregadas de um certo classicismo, se enchem de dinamismo, de formas curvas e ascensionais. Ao invés de ogivas o torres pontiagudas apontando para o céu, típicas do gótico, pilares espiralados, contorcendo e distorcendo a regularidade clássica do renascimento, que se fundiam ao teto, formando um conjunto único e infinito. Neste teto, o próprio Céu, cheio de anjos e outras figuras celestiais, pintadas.

As novas igrejas e altares, extremamente elaborados, destinavam-se a evocar o mesmo sentimento de temor e majestade que as grandes catedrais da Idade Média haviam inspirado. Os altares e ornamentos se recobrem de ouro e prata. A dramaticidade se revela também na expressão das esculturas e imagens, carregadas de misticismo, ascetismo, heroísmo, erotismo e crueldade, que persuadirão os fiéis através dos sentidos, em oposição à razão. (TRIADÓ, 1991)

Essa opulência se refletirá na música. A polifonia tonal atinge grande complexidade ao reincorporar estruturas polifônicas antigas, como a Fuga (contraponto), as linhas melódicas independentes, onde cada instrumento tem sua melodia, formando uma trama intrincada de sons, mas como uma unidade precisa, baseadas nos novos princípios de harmonia. As linhas melódicas usam e abusam de escalas ascendentes e descendentes, numa alusão às formas curvas da arquitetura barroca. A complexidade dos acordes se remeterá à riqueza de detalhes de cada escultura, pintura ou altar das igrejas.

Como a arquitetura, a música é extremamente ornamentada e teatral. A harmonia se estende aos antes chamados instrumentos melódicos, e músicas são compostas para instrumentos até ali pouco explorados como solistas, com uma riqueza de sonoridades nunca antes deles extraída. E mesmo na música orquestral, com muitos instrumentos diferentes, cada instrumento é pensado com sua individualidade e potencialidade. O barroco foi o período em que o homem de espetáculo, o virtuoso, reinou. O detalhe é super valorizado, mas sempre pensado dentro da unidade, do todo global.

A teoria musical, neste período, teve no estudo da harmonia sua linha de frente. Até o Barroco, distinguia-se os semitons ascendentes dos descendentes. A partir do século XVII, o tamanho do semitom foi matematicamente estabelecido e padronizado, numa evolução da teoria de Pitágoras. O estabelecimento da atual sistema de afinação única para todos os instrumentos, chamado de temperamento igual, possibilitou pela primeira vez a transposição de uma peça para outra tonalidade, e abriu caminho para as composições orquestrais do século XVIII em diante.


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