A Forma da Adoração

Música Sacra – Dicionário Oxford de Música

por: Dicionário Oxford de Música [1]

1. Seu Lugar e Finalidade.
2. A questão do bom gosto.
3. Em que consiste a música sacra.
4. História da música na Igreja cristã.
5. Uma dificuldade atual.
6. Um depoimento vindo do patíbulo em prol de uma melhor música sacra.

1. Seu Lugar e Finalidade.

Não há arte alguma que não tenha sido usada no culto.

A arte deriva da cooperação, em diversas proporções, do sentido da beleza da necessidade de auto-expressão, e é um instinto humano expressar o mais alto do pensamento e do sentimento com toda a beleza de que é capaz o homem.

A arquitetura é, em certo sentido, a mais importante das artes usadas ao serviço da religião, tanto porque um edifício para o culto é quase uma necessidade, quanto porque as belas criações arquitetônicas têm uma permanência à qual nenhuma das outras artes pode aspirar. Mas em outro sentido também a música tem a primazia, porque sendo imaterial (diferentemente da arquitetura), indiferente à expressão dos objetos físicos (diferentemente da pintura), e desvinculada das ideias (diferentemente da poesia), pode voar sem obstáculos à regiões muito mais altas. Quando, renunciando a esta independência, toma sobre si o piedoso dever de expressar os pensamentos e as emoções que poderiam estar reservados à palavra, são o pensamento e a emoção que se favorecem, já que algo lhes é dado por complemento.

A chama da emoção, avivada pela ideia da divindade, é captada e transportada às regiões do sublime no Sanctus da Missa Papæ Marcelli de Palestrina, ou na Missa em Si Menor de Bach, ou na Missa em Ré de Beethoven. O afastamento das coisas deste mundo e a conquista do sublime são umas das supremas finalidades do exercício religioso.

Esta diretriz de pensamento proporciona o motivo mais poderoso para exigir a música mais bela e a execução musical mais expressiva no culto. O caráter de “sacrifício” da expressão musical religiosa fortalece o motivo exposto: com efeito, muitos fiéis dirão que para eles a música do culto é, antes de tudo, um oferecimento ao Ser adorado, e como tal deve ser da qualidade mais elevada. Ambos pontos de vista sobre o propósito primordial da música bela no culto estão estreitamente vinculados, e se confundem a tal ponto que apenas importaria saber se os encarregados de sua execução consideram a música como sua oferenda própria, ou se a enxergam como um meio de exaltar o ânimo do crente em direção a uma devoção mais intensa, considerando este altruísmo como sua oferenda mais aceitável.

Mas deve-se recordar que as práticas musicais da religião têm outros propósitos que o de ajudar o crente a sentir esses momentos de comunicação mística ou a render seu tributo de culto. Na música reside o único meio efetivo de expressão da comunidade. As mais numerosas congregações de fiéis podem reunir-se para expressar sua fé, sua esperança e sua caridade em um canto cuja necessária simplicidade não parece diminuir em nada sua força emocional quando se o entoa com unanimidade e fervor. O dever derivado disto, para os encarregados em preparar a música para os serviços religiosos, é a provisão de um repertório amplo e variado de poesia religiosa e de acompanhamento musical, solene mas simples.

De resto, em uma religião proselitista como o cristianismo, é de todo impossível descuidar de um terceiro propósito, possivelmente menos nobre em si mesmo, mas de enorme importância do ponto de vista prático – e se inscreve nos ensinos do cristianismo que a religião deve ser prática. O mundo exterior deve ser evangelizado, e aqueles que não pertencem ao mundo exterior, mas cujo fervor devoto não basta para arrastá-los às reuniões religiosas, devem também ser levados a elas. A música é uma das atrações que impulsionam certas pessoas até a religião.

2. A questão do bom gosto.

Há quem sustente que a importância deste último objetivo fundamental justifica o emprego de qualquer classe de música. Ao ouvido do músico, esta afirmação soa como a falsa doutrina que recomenda “fazer o mal para que dele resulte o bem”, segundo o provérbio que diz que “o fim justifica os meios”.

É muito difícil discutir com aqueles que preconizam o emprego da má música para conduzir os homens à senda do bem, pois tais pessoas, por natural inaptidão, ou por falta de um anterior cultivo musical, são incapazes de sentir a diferença entre o bem e o mal em música, e às vezes nem se dão conta de que existe o “mal”. Poderíamos nos aventurar em um argumento por analogia. Existe o bom e o mal em todas as outras coisas, e portanto é razoável supor que também exista na música. O vínculo com o “mal” em qualquer ordem da vida tem, no mínimo, um efeito empobrecedor sobre o espírito, enquanto que o vínculo com o “bom” o eleva. Por conseguinte, se duas peças musicais – uma boa e outra má – têm qualidades de atração igualmente poderosas, o fim último se alcançará melhor pelo emprego da boa. Por sorte, existe música que é ao mesmo tempo boa e atraente, e tem contribuído poderosamente para o triunfo dos movimentos religiosos desde as origens do cristianismo até a atualidade. Os Laudi spirituali cantados por congregações de piedosos crentes pelas ruas de Florença e outras cidades italianas desde o século XIV até o XVIII, foram a expressão de um grande movimento popular e (ao menos em princípio) parecem ter sido de alta qualidade musical e poética. Lutero, músico instruído, encontrou na música uma de suas melhores armas, tanto defensivas quanto ofensivas, e as melodias que cantavam seus adeptos figuram entre as mais apreciadas pelos músicos de hoje. John Wesley, que não tinha conhecimentos musicais teóricos nem habilidade prática, apesar de proceder de uma família que se mostrou intensamente musical nas duas gerações seguintes, proporcionou, em seus numerosos livros de hinos, música no mínimo tão boa como a que se usava ordinariamente nas congregações anglicanas de seu tempo, o que quer dizer que não julgou necessário rebaixá-la. É possível assegurar que se alguns líderes evangelistas tais como o general Booth e os senhores Moody e Sankey desfrutaram da vantagem de possuir gosto musical e literário, tenham conquistado e conservado tantos conversos ardorosos por meio do canto são, simples e popular, como o fizeram pela simples repetição de algum pensamento religioso elementar, associado ao um ritmo “pegajoso”. Em todos os casos, tão condenáveis são os ritmos de baile, as melodias fáceis e as harmonias vulgares da música de rua e de salão de reuniões de evangelismo, quanto o sentimentalismo barato dos lugares mais “respeitáveis” da atividade cristã. E qualquer exame fortuito, mas realizado com escrupulosa amplitude de critério, de uns poucos livros de hinos de diversas Igrejas, ou de uma seleção de antemas publicados por qualquer editor, revelará que na música sagrada dos séculos XIX e XX o sentimentalismo quase sempre encobre a carência de um autêntico sentimento piedoso. Como isto freqüentemente passa inadvertido, o primeiro dever de todo músico de igreja deveria ser a aquisição de certo nível de gosto musical, o qual significa a cuidadosa freqüência de um vasto e variado conjunto de música sancionada pelo tempo, único crítico infalível. Deve-se destacar que simplicidade e complicação não são necessariamente sinônimos de “bom” e “mal”. A eleição entre a música simples ou a complicada na Igreja somente pode fazer-se em um terreno prático, já que a escolha entre o bom e o mal é essencialmente uma questão ética. Grande parte da música simples usada atualmente é perfeitamente boa e eficaz, e grande parte da música complicada é débil e pobre ao extremo. Mas o contrário também é verdade. As tentativas para melhorar a música em qualquer igreja se têm realizado com demasiada freqüência complicando-a, ao invés de elevar sua qualidade.

“Uma música cerimonial muito elaborada somente pode considerar-se seriamente como um adorno da mesma categoria que as belas esculturas, os quadros, ou as obras arquitetônicas, quando é ao mesmo tempo música bela. Mas muito freqüentemente sua analogia nas artes decorativas a assemelha melhor a um móvel talhado, a um púlpito lavrado ou a uma persiana de pinheiro pintada com faixas vermelhas, brancas e azuis e rodeada de flores artificiais. Em vista da qualidade de mais de um terço dos cultos mais populares e dos hinos mais populares, quanto menos insistam seus defensores sobre o valor decorativo de semelhante música, será melhor” (Harvey Grace).

3. Em que consiste a música sacra.

Se nos fosse perguntado o que é a música sacra, a única resposta seria a de que é impossível dar uma definição precisa dela. Não se pode alegar que tenha existido em qualquer época uma demarcação precisa entre uma peça de música que expressa emoções sérias de ordem religiosa, e outra que expressa emoções sérias de ordem não religiosa. Um moteto e um madrigal sérios do século XVI eram musicalmente a mesma coisa, e também o foram mais tarde muitas das obras religiosas e profanas de Bach. Ao dançar Davi ante a arca, é provável que o fizera do mesmo modo que em qualquer outra ocasião na qual desejasse expressar seu regozijo, e a música de alguns dos mais baixos bailes cortesãos dos séculos XVII e XVIII (Sarabandas e outras do mesmo estilo) não ofenderia ao mais exigente purista religioso se, ignorando sua origem, a escutasse no órgão de uma igreja em tempo de quaresma. Bach arranjou uma graciosa corrente como melodia religiosa.

LIEBSTER IMMANUEL, HERZOG DER FROMMEN
(A melodia, de 1969, é a adaptação de uma corrente; harmonizada por Bach por volta de 1740 e encontrada na Cantata 123).



Liebster 1


Liebster 2

As convenções estabelecem que certos estilos (tanto em música quanto em arquitetura) devem ser considerados “eclesiásticos”. Mas se tratam de meras convenções, as quais nem ao menos regulam com alguma exatidão a escolha da música, até porque um estilo musical que na igreja dá a impressão de ser eclesiástico, pode ser usado fora dela e não produzir o mesmo efeito. A boa música é boa dentro e fora da igreja, e em qualquer lugar que se a escute se poderá apreciar sua sinceridade. Se a música que se ouve na igreja é boa e sincera, e está de acordo com as palavras e com as ideias às quais se vincula, e as expressa, então a associação de tempo e lugar a converterá em “música sacra”.

Acrescentaremos algumas palavras sobre o nível geral da execução. Este, é desnecessário dizer, deve ser o mais elevado possível. É uma causa freqüente do baixo nível musical o fato de que as igrejas pequenas, as quais contam com poucos recursos, pretendem oferecer a mesma classe de música que as grandes e ricas. Não nos esqueçamos de que na simplicidade reside freqüentemente a beleza.

4. História da música na Igreja cristã.

Não é possível seguir aqui a evolução das atividades musicais nas diversas religiões do mundo, nem sequer estudá-la no judaísmo, e na religião cristã que dele surgiu, diversificando-se logo em caminhos tão diferentes. Os documentos evidenciam que a religião judaica deu uma grande importância à expressão musical. A própria existência do livro dos Salmos é em si mesma prova suficiente. Os livros de Samuel e Crônicas nos relatam que “E Davi, e toda a casa de Israel, tocavam perante o Senhor, com toda sorte de instrumentos de pau de faia, como também com harpas, saltérios, tamboris, pandeiros e címbalos” (II Samuel 6:5). No templo de Salomão, a princípio, “quatro mil almas louvavam ao Senhor com instrumentos” e “o número dos que eram instruídos… nos cantos do Senhor era de duzentos e oitenta e oito” [cf. II Crônicas 25:7]. Antes que fosse destruído o último templo de Jerusalém, depois de mil e duzentos anos de serviço musical, já se havia difundido o sistema das sinagogas, e com ele um serviço litúrgico com abundante uso do canto (embora não ainda dos instrumentos).

Quando surgiu o cristianismo, não houve, no início, ruptura com a igreja judaica; os cristãos continuaram assistindo no Templo de Jerusalém e em suas sinagogas (como fizera também Cristo), e nas reuniões exclusivamente cristãs continuavam a mesma tradição musical. De qualquer maneira, é surpreendente que nem nos relatos das viagens de pregação de Cristo ou nos apóstolos se mencione o canto em comum, salvo na última e solene reunião do Mestre com seus discípulos, antes da crucifixão (Mateus 26:30: “E tendo cantado um hino, saíram para o Monte das Oliveiras”. Esse hino, segundo as autoridades em matéria bíblica, deve ter sido o Hallel, o Salmo 113 ou 114, cantado pelos judeus durante a festividade da Páscoa).

Ao organizar-se a cristandade em uma sociedade distinta, continuou com o amplo uso do canto: cantava-se em circunstâncias e lugares nos quais não era necessário realizar as reuniões secretamente, e até nestes casos se cantava, quando havia garantias de segurança. Paulo exortava aos efésios e aos colossenses a cantar salmos, hinos e canções religiosas (Efésios 5:19; Colossenses 3:16), referindo-se, aparentemente, tanto às suas devoções particulares quanto públicas.

Plínio, o Jovem (c. 61 d. C. – c.113 d. C.), em carta dirigida ao imperador Trajano, pedindo instruções sobre o grau de rigor com o qual deveria levar a perseguição aos cristãos em sua província de Bitínia, os descreve como gente sem culpa alguma, mesmo que adeptos de uma superstição que se constituía em uma reunião em dias marcados antes do amanhecer, e em repetir antifonalmente “um hino a Cristo como Deus”. Deve-se recordar também o canto noturno de Paulo e Silas em sua prisão, anterior em quase um século (Atos 16:25); segundo todas as possibilidades, cantavam também salmos antifonalmente.[2]

Provavelmente, elementos gregos e hebreus deveriam se mesclar na música de culto, a qual foi desenvolvendo-se pouco a pouco em um corpo tradicional durante os três primeiros séculos do cristianismo e, a partir de então, codificada de tempo em tempo. Parece-nos que o acompanhamento instrumental não gozou de favorecimento. A despeito de seu prolongado emprego no Templo, talvez já houvessem se associado ao teatro e a outras atividades indesejáveis, mesmo que, quem sabe, esta objeção somente fosse aplicável a determinados instrumentos. Em fins do século IV ou em princípios do V, São Jerônimo escrevia que uma donzela cristã não devia nem sequer saber o que é uma lira ou uma flauta, nem a que uso se prestava. Diz-se que a introdução do órgão no culto cristão se deveu ao papa Vitaliano, no século VII.

Através das eras têm-se alternado na igreja cristã os processos de acumulação de práticas musicais indesejáveis e de subseqüentes reformas. Como se afirma no prefácio do Commom Prayer da Igreja Anglicana, “jamais existiu coisa alguma tão bem planejada pela inteligência do homem, ou estabelecida com tanta segurança, que, no transcurso do tempo não se tenha corrompido”. No caso da música sacra, a ‘corrupção’ tem geralmente se originado de certa tendência a dar ênfase demasiada aos puros atrativos musicais do canto, tanto em proveito dos coristas profissionais, quanto na própria congregação. As autoridades têm condenado reiteradamente esta tendência, e é de se presumir (dada a natureza humana) que não o fizeram pela última vez. Assim, João XXII, nos alvores do século XIV, proibiu o emprego de melodias seculares como base para a música harmonizada de diversas partes da missa, e, na realidade, tratou de eliminar qualquer outra forma de harmonia. Do mesmo modo, o Concílio de Trento (1545-1563) recomendava aos bispos a exclusão de “toda música na qual interviesse qualquer elemento ímpio ou lascivo”. Pouco depois, Pio IV convocou aos cardeais para que as recomendações do Concílio fossem cumpridas, e parece que a música harmonizada correu novamente o risco de ser proibida, com o argumento de que as palavras eram inteligíveis devido ao entrelaçamento das vozes.

As igrejas reformadas têm também suas queixas e suas lutas. Em princípios do século XVII o arcebispo Abbot se pronunciou contra os coros e o órgão. Quando, no início do Protetorado (1649-1660), se fez sentir poderosamente primeiro a influência presbiteriana, depois a independente, os órgãos e os coros foram desalojados das igrejas. Na Escócia, os órgãos foram considerados pecaminosos até meados do século XIX, quando voltaram a aparecer gradualmente. A igreja grega, porém, proíbe todos os instrumentos.

A situação geral na Inglaterra contemporânea em matéria de música sacra é muito melhor na igreja Anglicana do que nas não conformistas, já que aquela conta a seu favor com recursos, tradição musical, uma liturgia que exige grande quantidade de música, magníficos edifícios antigos, e os resquícios de um estado social que almejou fazer dela o lugar espiritual das classes mais cultas. As igrejas católicas mais ricas também prestam grande atenção à música. Nos Estados Unidos da América, onde as tradições contam menos e não existem antigos compromissos, apenas desponta outra diferença, que é aquela derivada do fato de que os protestantes episcopais possuem liturgias que exigem mais recursos musicais, organizados com eficácia.

5. Uma dificuldade atual.

Cabe agora uma referência sobre uma dificuldade especial do compositor de música religiosa nos dias atuais. A extrema audácia experimental de nossa época tem engendrado novas modalidades – que o público em geral, todavia, não aceita – e o compositor que encontra em uma delas seu meio natural de expressão, fica excluído da composição de música religiosa, já que nenhum maestro de coro poderia pensar, nem por um momento, em expor a congregação ao choque de uma experiência com aquilo que é totalmente estranho. Os membros de idade mais avançada de qualquer congregação tendem a se manter fiéis às melodias dos hinos e ao fundo musical dos serviços religiosos que lhes são familiares, o que constitui em “uma poção sonífera ao invés de um alívio espiritual” para os jovens ouvintes. Podemos, todavia, ir mais longe e dar como certo que as linguagens empregadas na música religiosa comum têm, de modo geral, um atraso de várias gerações em comparação com as linguagens da música secular erudita. Um exame das publicações anuais de qualquer editor de música sacra revelará o fato de que esta poderia ter sido escrita facilmente nos tempos de Mendelssohn ou de Brahms, no máximo. A história dos últimos quinhentos anos parece indicar, como condição permanente para o compositor de música religiosa, que a sua expressão desliza por caminhos já trilhados. Nos parece que a composição profana deve abrir o caminho, e que somente quando o termo médio da congregação chega a aceitar em certa medida as novidades harmônicas que cada época produz (isto é, quando deixam de ser novidades), podem estas ser postas na boca do coro ou sob os dedos do organista. Se a aplicação deste princípio tem sido levada longe demais, por causa da timidez dos que têm a seu cargo os serviços do culto e daqueles que ministram a música, é um tema que pode servir a um interessante debate. Mas já se vislumbram indícios de um espírito um tanto quanto mais audaz, e inclusive hinários (desde 1925, mais ou menos) nos quais são incluídas algumas harmonias que não tinham podido figurar vinte anos antes.

6. Um depoimento vindo do patíbulo em prol de uma melhor música sacra.

A Suíça nos apresenta o caso, sem dúvida único, de um depoimento em prol de uma melhor música sacra vindo de um patíbulo [estrado ou lugar onde os condenados sofrem a pena capital (forca, guilhotina, decapitação)]. Em 1723, o heróico e precipitado major Daniel Abraham Davel organizou em Lausanne uma insurreição para libertar o Cantão de Vaud[3] do domínio a República de Berna. Fracassado em seu intento, foi condenado a ser decapitado. Com toda calma ocupou seu lugar na procissão que saiu da cidade a caminho do ponto onde deveria ser executada a sentença e, subindo de pronto ao patíbulo, pronunciou um longo e meditado discurso de despedida. Em sua infância havia estudado música com o praecentor, o chantre da catedral (seria o mesmo que o regente do canto dos salmos e simples ofícios calvinistas), e atribuía uma grande importância ao exercício desta arte e sua relação com a atividade da igreja. Em seu discurso proferido do patíbulo, e ao enumerar alguns dos males da vida contemporânea, referiu-se primeiro aos contínuos litígios que tantas angústias causavam entre os camponeses; passou logo a tratar da negligência de alguns pastores que não preparavam seus sermões adequadamente, e por último se deteve a examinar a desordem reinante no serviço eclesiástico, dizendo:

“No que diz respeito aos louvores ao Senhor, de que modo se os cantam? Existe algum sentido de ordem, alguma música autêntica, algo de algum modo calculado para despertar e manter a devoção? E, sem dúvida, esta parte do serviço divino é uma das mais importantes e a única que demonstra eficazmente a devoção de nossos corações para com Deus… A importância desta parte do culto cristão é tamanha, que minha insistência em exortá-los a uma nova e séria atenção a este respeito, a fim de corrigir as faltas de que sois culpados no presente, nunca será o bastante.”

Passou então à questão da má administração dos fundos destinados à manutenção do edifício da Igreja e à educação dos jovens, e em seguida se dirigiu aos estudantes de teologia, dizendo-lhes que muitos deles, a julgar por sua conduta, não tinham vocação para o alto ofício ao qual aspiravam, e os instou a uma maior aplicação em seus estudos:

“Descuidais de vossos estudos por causa do prazer mundano. Não vos esforçais em grau algum no aprendizado da música, que é tão necessária para cantar o louvor ao Senhor. Os cantos da Igreja constituem um elemento essencial do culto divino e têm um valor infinito para ajudarmos a elevar nossos corações a Deus. Vos suplico, pois, que vos apliqueis com todo o zelo possível na preparação para o sagrado ministério”.

Depois de se referir a outros temas, se declarou pronto para morrer (C’est ici plus beau jour de ma vie) [ou seja, “Eis o dia mais belo de minha vida”], escutou um longo e comovedor discurso de um dos pastores da cidade, despediu-se dos outros pastores soluçantes que permaneciam a seu lado sobre o patíbulo, se desfez da jaqueta e colocou a cabeça sobre o talho.

Se este que aqui escreve não está equivocado, em nenhuma obra de música se fez antes referência a este notável incidente, e é um prazer imenso trazê-lo ao conhecimento dos músicos de igreja e dos estudantes de teologia.


Notas:

[1] Os editores do Música Sacra e Adoração agradecem muitíssimo ao Pastor e Maestro Flávio Araújo Garcia pelo empréstimo (de sua biblioteca pessoal) do Dicionário Oxford de Música em espanhol. O que nos permitiu publicar a presente tradução. Gostaríamos de aproveitar a nota para explicar aos leitores que todas as expressões entre [colchetes] localizadas no presente texto são de autoria dos editores do Música Sacra e Adoração e não constam do original.

[2] Para os espíritos mais curiosos com respeito à Bitínia, Plínio, o Jovem e sua carta a Trajano, indicamos o seguinte endereço: https://www.bibliacatolica.com.br/historia-da-igreja/11/

[3] Para maiores informações a respeito ao Cantão de Vaud, em Lausanne, Suíça: http://mundofred.home.sapo.pt/paises/pt/suica_genebra.htm


Fonte: SCHOLES, Percival. Diccionario Oxford de la Música – Traducción adaptada al uso del lector de habla castellana basada en la reimpresión corregida y actualizada de la edición a cargo de Jonh OWEN WARD. Espanha/Buenos Aires, EDHASA/HERMES/SUDAMERICANA, 1964/1984.

Tradução: Adrian Theodor e Levi de Paula Tavares, Setembro de 2004


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