A Forma da Adoração

Fogo Estranho Diante do Altar

por: Gerson Pires de Araújo[1]

Um apelo para que se faça distinção entre o santo e o profano, no terreno da música, com a sugestão de alguns princípios e critérios

Reunimo-nos semanalmente a cada sábado em nossos templos para adorar a Deus e prestar-Lhe culto, tendo comunhão com Ele enquanto cantamos, oramos e ouvimos Sua Palavra. Pessoalmente quero dar meu testemunho de quanto anseio durante a semana que chegue logo o sábado e possa vir encontrar meus irmãos e comungar com eles em nosso culto a Deus. Quão bom é deixarmos de lado nossas atividades seculares semanais e podermos descansar em Cristo.

Temos sido edificados espiritualmente ao ouvirmos as mensagens divinas através dos ministros indicados por Deus. Há momentos em que parece que os corações batem sincronizadamente quando, mentalmente, somos levados diante do trono de Deus através das orações e todos, num só espírito, nos curvamos em adoração ao Criador e Redentor do mundo. Quando trazemos nossas parcas ofertas, sendo em espírito de sacrifício e liberalidade, sentimos como se fosse nossa própria alma que se coloca diante do altar de Deus como oferta de sacrifício ao Senhor.

E ainda quando elevamos nossas fracas e muitas vezes desafinadas vozes em louvor a Deus por Sua grande misericórdia, parece sentirmos que os anjos celestiais se unem ao canto e, em harmonia, universal, nossos cantos chegam aos ouvidos de nosso Pai celeste como uma música melodiosa e sublime.

Há, no entanto, em relação a este aspecto do culto uma advertência que gostaríamos de fazer através desta revista.

Abramos a Bíblia para ler dois versículos que nos servirão de base para as considerações. O primeiro se encontra em Gênesis 4:3-5.

Deus ordenara que a oferta pelo pecado deveria ser um cordeiro que seria um símbolo do “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. Caim não possuía um cordeiro; então trouxe a Deus aquilo que de melhor ele possuía: o fruto da terra. Em assim fazendo, quebrava o simbolismo que Deus estabelecera dentro do plano da salvação. O relato nos diz que Deus não Se agradou de Caim nem de sua oferta. Notemos que era o que ele possuía de melhor, mas trouxe a oferta em total desconsideração ao plano divino.

Outro texto encontramos em Levítico 10:1-3, 10. Caso semelhante. Deus enviara fogo do Céu que deveria ser usado perenemente no altar. Nadabe e Abiú, no entanto, compareceram diante de Deus com fogo estranho, e o Criador mostrou Seu desagrado, zelo e santidade, fulminando instantaneamente aqueles dois profanos. O problema fundamental se encontra expresso nos versos 9 a 11: “…para fazer diferença entre o santo e o profano…” Este mesmo problema se encontra mencionado em Ezequiel 22:26.

O problema se repete

Hoje também há uma tendência de negligenciarmos todas as distinções entre o sacro e o secular. Com a rejeição da Bíblia por muitos, como o guia inspirado e a regra de vida, surgiu a crença de que não há diferença entre o que é secular e o que é sagrado. Isto trouxe falta de reverência pelas coisas sagradas, uma falta de deferência e respeito pelos legisladores e autoridades, uma falta de reconhecimento àqueles que estão em posições a quem se deve honra.

Esta mesma atitude tem afetado a música na igreja. Esta tendência não prevalece apenas na música em si, mas também na maneira como é apresentada. Alguns dizem hoje que não há diferença entre música sacra e música secular; que toda música, em certo sentido, é sacra, e que toda música é apropriada para o uso na igreja, conquanto que saia de lábios sinceros. Vemos, assim, música de caráter popular e profano na igreja. A situação já seria bastante séria se apenas o ritmo da música fosse considerado, mas quando as plataformas de igrejas adventistas do sétimo dia são tratadas como palcos seculares, quando os cantores se balançam em uníssono com a música como dançarinos numa fila de coristas ou artistas numa casa de espetáculos, quando em pleno sábado pela manhã, em algumas de nossas igrejas se leva para a plataforma um conjunto com bateria e tudo mais, a situação se torna alarmante.

Chegamos a este estado de coisas, em parte, porque deixamos de estabelecer uma linha divisória entre a música aceitável e a não aceitável. Reconhecemos que esta linha divisória é, na realidade, estreita. O ritmo de uma peça musical e a maneira como é apresentada pode não ter diferença marcante do ritmo e da maneira de apresentação de uma outra. Apesar disso, uma pode ser secular, profana e vinda “de baixo”; a outra pode ser religiosa, sacra e vinda “de cima”. A dificuldade para distinguir entre as duas pode encorajar alguns líderes a declararem: “Música não é minha especialidade”, e assim lavam as mãos. Outros podem dizer: “Não julgue; tão somente participe”.

Mas esta reação é irresponsável e inadequada. Historicamente, os adventistas têm pregado muito a respeito de coisas genuínas e falsas. Eles têm proclamado que “o sétimo dia é o sábado” e que o “primeiro é um falso dia de culto”. Têm argumentado que há verdade e há erro, e aqueles que desejam fazer a vontade de Deus poderão distinguir entre as duas coisas (João 7:17). Por que, então, deverão alguns declarar-se incapazes de decidir qual a música aceitável ao cristão, qual é inaceitável?

Outro fator que tem contribuído para a atual situação de decadência na música da igreja, é que muitas pessoas em posição de liderança procuram subestimar a importância de cuidadosa discriminação na escolha da música. Frequentemente protestam: “Que diferença faz? Isto não é assim tão importante. Estão fazendo disso um cavalo de batalha”. Talvez nos impressionasse mais essa maneira de pensar se não conhecêssemos a história de Adão e Eva. Mas quando lembramos que o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal não era visivelmente diferente dos frutos de outras árvores do jardim, sentimos que algumas “pequenas” diferenças, não são de fato “pequenas”, são enormes. Todos os que sinceramente desejam agradar a Deus, não as tratarão levianamente. Procurarão ver as coisas como Deus as vê, e ouvi-las como Deus as ouve.

Um terceiro fator é que alguns – tanto jovens como idosos – explicam, com pouco caso, o seu uso da música “falsificada” dizendo: “Nós gostamos disso”. É uma atitude alarmante. Viciados em drogas poderiam explicar o uso de narcóticos da mesma maneira: “Nós gostamos disso”. Justificariam assim seu procedimento? É o certo e o errado meramente uma questão de gosto pessoal?

Um quarto fator é que algumas pessoas são tão desprovidas de senso de crítica, quanto a seus pontos de vista, que estão dispostas a permitir qualquer tipo de música no lar, na escola, ou na igreja, baseadas no argumento de que esta é a maneira de manter os jovens sob o “manto” adventista. Levado ao seu extremo lógico, este argumento justificaria a manutenção pela igreja, de um salão de baile, um cassino, um bar ou um cinema. Pais cristãos e líderes de igreja prestam aos jovens um grande desserviço quando obscurecem a distinção entre a música aceitável e não aceitável, e toleram uma baixa qualidade de música e de apresentação dentro do contexto da igreja, “a fim de manter os jovens na igreja”.

Características da música sacra.

Mas, perguntará alguém: Como saber o que é sacro e o que não o é? Que princípios traçar que nos poderiam dar segurança de que estamos usando música apropriada para adorar a Deus, prestar-Lhe culto e edificar espiritualmente a igreja?

Primeiro queremos enumerar alguns princípios gerais extraídos do Espírito de Profecia[2], que nos poderão nortear em nossa escolha da música a ser usada na igreja.

A música que usamos deve ser aquela que o Espírito de Deus produz no íntimo. Não basta, no entanto, crermos que o Espírito Santo esteja inspirando tudo o que fazemos em matéria de música. Outras religiões, acentuadamente as chamadas populares, creem piamente que suas manifestações sobrenaturais e de cura são obra do Espírito Santo, e outras dispensam até o preparo para o ministério, confiando que o Espírito fará por eles o que poderiam fazer por si. Há necessidade de uma constante comparação entre os princípios e o que praticamos para vermos se estamos dentro ou longe do que Deus espera. Sinceridade em matéria de religião não é um critério para se estabelecer o que é aceitável ou não. Podemos estar sinceramente errados ou enganados.

Louvor e ação de graças devem ser o propulsor de nosso cântico, e os remidos encontrarão sua fonte de inspiração na cruz de Cristo. Deste modo não serão ouvidas músicas frívolas nem canções petulantes que possam exaltar o homem e desviar a atenção de Deus, mas serão sagradas e solenes. A música brotará de uma vida de constante louvor e de um coração agradecido. Assim, ela terá beleza e poder, será correta e harmoniosa. Os cânticos estarão de acordo com o assunto de sermão, pois haverá objetivos a serem alcançados. Deverá trazer ao culto uma atmosfera de santidade e espiritualidade, preparar o povo para que a igreja se torne melhor, impressionar favoravelmente os descrentes e aumentar o interesse dos membros para o sermão que irão ouvir. Deus será glorificado, e não o homem. Deus e o Cordeiro receberão a honra e não pobres pecadores. O Espírito Santo usará essa música para salvar almas e erguer os pensamentos ti “ao que é puro, nobre e edificante e refinar as maneiras e natureza rudes e incultas”.

A música despertará na alma devoção e gratidão a Deus, acenderá o amor, a fé, o ânimo, a esperança, o arrependimento e a alegria no coração de Seu povo. Será ela então uma arma contra a tentação e o desânimo, podendo ser um instrumento para fixar na mente a Lei e as lições e verdades espirituais.

Que características deveríamos buscar numa peça musical ou cântico para que pudesse ser considerada música sacra? Eis algumas perguntas que poderão ser de utilidade para escolhermos a música para a adoração:

  1. É a significação bela, clara, ou muito comum e banal?
  2. É estimulante intelectualmente? Tem uma linha fluente e natural? Tem rima?
  3. É correta a doutrina expressa pelo poema?
  4. Expressa uma experiência religiosa saudável?
  5. Tem elevado teor moral?
  6. É universal na aplicação, expressando os desejos comuns de todos?
  7. Expressa fraternidade e serviço para a humanidade?
  8. Tem qualidades éticas, ensinando a santidade de vida?
  9. O hino conduz à reverência e culto, dirigindo a alma à presença de Deus? Pode ser usado para culto público ou particular?
  10. O hino tem caráter alegre e esperançoso, estimulando a fé e o amor?
  11. A poesia expressa expansão da alma e eleva em vez de desanimar?
  12. O hino leva a alma a Deus, com louvor e gratidão?
  13. Aponta para cima a Cristo, o Salvador, ou aponta para dentro do homem, ao pecador e seus pecados?
  14. O hino tem poder para elevar e inspirar o ouvinte e o cantor permanentemente, ou é fraco e sentimental?

Em adição, que diremos da música?

Em relação à melodia, tem suficientes qualidades musicais – vigor, poder, simetria, equilíbrio e cadência? Fica no registro normal da voz?

E a harmonia, é forte e correta? Ou é sentimental e emocional demais? Existem muitos sons dissonantes provocando o desequilíbrio? As partes vocais são interessantes ou são monótonas com muita repetição? A sequência harmônica é sólida, com direção certa?

E o ritmo livre de secularidade como valsas, jazz, bossa-nova, pop, samba, etc.?

Leva a uma atmosfera de reverência e adoração, ou leva a manter pensamentos seculares? Tem conotação secular como folclore, ópera, canção de amor ou música profana?

A música combina com a letra? As acentuações da música e da letra correspondem?

Interpretação

Na maneira de apresentação também há um modo distinto entre o sacro e o secular. Há estilos de apresentação claramente associados à religião pela tradição e uso, e há outros estilos característicos de várias espécies de música secular.

Músicas que provocam um sentimentalismo doentio, com grande número de dissonâncias, excesso no ritmo com marcação de tempo fortemente cadenciados, muito desequilíbrio com notas pontuadas, síncopes, contratempos, não expressam a segurança, firmeza, paz, calma e equilíbrio da vida cristã.

O estilo sussurrante de cantar com muita bocca chiusa, muito popular hoje para cantar canções de amor e música sentimental, dificilmente é apropriado para música religiosa. O uso excessivo de trêmulos, apogiaturas, o excesso de forma e falta de fundo, de linha melódica, os portamentos sem emitir ou entoar a nota certa, o estilo do andamento da música que se assemelha ao gosto popular de hoje, certamente não podem transmitir ao cristão a certeza e convicção da verdade, e a fé em nossa aceitação por parte de Deus.

O modo de apresentação semelhante a “shows” de televisão ou outros programas, com balanceios com o corpo, gestos de teatro para impressionar o auditório, a maneira de pegar no microfone e colocá-lo quase dentro da boca em vez de permanecer de modo natural, contracantos gritantes por parte de solistas, e outros recursos usados para atrair a atenção sobre quem está cantando, sem estar com a mente voltada para o Deus a Quem pretendemos estar adorando, certamente DEVEM SER ABOLIDOS DE NOSSO MEIO.

Não se deve pensar que a música religiosa é sempre suave e doce, tranquila e calma. Não deve ser efeminada, neurótica nem fraca. Nem precisa ser altamente emocional. Música a serviço da religião pode ser na verdade bela e poderosa. Pode ser forte, estimulante e apelante a nossos mais elevados sentimentos e pensamentos. Pode ser da mais alta qualidade musical.

A beleza de um culto da igreja ou a excelência estética da música, porém, não é o mais importante. Pode ser de grande ajuda a alguns adoradores em sua devoção, mas não é essencial em nossa aproximação com Deus. O maligno usa excesso em muitas formas para seus mais astutos intentos. Excesso em algumas formas leva ao fanatismo; excesso em emoção e sentimento leva ao sentimentalismo e fraqueza, em vez de força.

Muitas coisas que são boas na moderação, tornam-se más no excesso. Um pouco de sal para dar gosto é bom, mas em excesso torna-se veneno. Alimento em excesso causa obesidade e outras desordens físicas. Um uso moderado de dissonância é útil na música, mas levada ao extremo pode levar ao caos.

Deixo aqui um apelo aos responsáveis pela música em nossas igrejas, a fim de que exerçam o maior cuidado na escolha de músicas para o culto divino, para que a música seja da melhor qualidade e apropriada. Somos instados pela serva do Senhor a nos aproximarmos tanto quanto possível dos coros celestiais.

Estamos nos aproximando rapidamente do momento em que todo céu vai se cobrir de pontos brilhantes e então, anjos e homens se unirão em antífonas universais em louvor ao Rei dos reis e Senhor dos senhores. “A comunhão do Céu começa na Terra. Aqui aprendemos a nota tônica de seu louvor”. Não tragamos, portanto, fogo estranho diante do altar.


Notas:

[1]Agradecemos deveras à Loide Simon por esta excelente contribuição ao Música Sacra e Adoração.

[2]O “Espírito de Profecia”, para os Adventistas do Sétimo Dia, neste contexto, são os escritos de Ellen G. White.


Fonte: Revista Adventista. Fevereiro de1989, pp.41-44.


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