A Adoração

Território Sagrado

por: Marco De Benedicto

Cultura popular influencia o culto cristão e ameaça a essência da adoração

O ato de adorar, a experiência mais significativa do ser humano, sempre mereceu destaque no cristianismo. Algumas igrejas se preocupam mais com o tema do que outras, mas todas o consideram uma prioridade. Os estilos de culto variam, mas os encontros com o sagrado não podem faltar.

A busca coletiva de Deus é o exercício semanal ou mesmo diário mais fiel ao longo de dois milênios de história. Durante séculos, o culto cristão permaneceu mais ou menos estável. Na maior parte das igrejas, é marcado por apresentação solene dirigida pelo líder espiritual, o canto tradicional e a participação discreta da congregação. Embora aqui e ali grupos reavivamentalistas agitassem as massas, as coisas quase sempre permaneceram sob o controle da hierarquia, dentro das estruturas eclesiásticas.

Agora, porém, vastos setores do cristianismo enfrentam uma profunda transformação no seu estilo de adorar. Não dá para dizer que o legado cristão esteja em jogo, mas é evidente que uma mudança está em processo. Em alguns casos, onde havia fossilização e frieza, a mudança pode ser para melhor, pois resgata o fervor e oferece a possibilidade progressiva de maturidade e equilíbrio; em outros casos, onde estão ocorrendo grandes excessos, a mudança é para pior, pois pode oferecer um contato ilusório com o sagrado e levar a pessoa a se abrir a influencias maléficas.

O novo estilo de culto é visto especialmente em igrejas de tradição pentecostal e carismática, consideradas hoje a terceira força do cristianismo no mundo e o segmento evangélico mais forte no Brasil. Nessas igrejas, a adoração inclui participação efusiva ou mesmo frenética da congregação, com música rítmica e às vezes o falar em línguas (fenômeno conhecido, tecnicamente, como “glossolalia”). Os crentes, acreditando estar sendo movidos pelo Espírito Santo, têm um grande envolvimento emocional.

Em algumas igrejas evangélicas, influenciadas pelo mundo pentecostal e carismático, já são aceitos e executados vários ritmos e estilos populares, como rock, samba e sertanejo. É claro que a batida secular sempre vem mesclada com uma letra contendo motivos religiosos. Porém, a proximidade com a música popular é muito grande. Isso era impensável há alguns anos.

Donald Bloesch, um respeitado teólogo na arena evangélica norte americana, recentemente reclamou da crescente vacuidade na adoração protestante. “A atmosfera em muitos de nossos cultos é mais clubística e convencional do que adoradora e expectante”, constata. A adoração contemporânea, na avaliação do teólogo, busca mais satisfazer os desejos humanos do que glorificar a Deus. “Essa motivação em si não é errada, mas se torna questionável quando vira a prioridade”.

Nas comunidades católicas que adotaram a renovação carismática, a missa também se tornou mais celebrativa e agitada. Instrumentos de percussão geralmente marcam o ritmo. O padre Marcelo Rossi, com as suas missas gigantescas e aparições freqüentes na TV, é apenas a ponta mais visível do iceberg.

As razões para essa guinada impressionante são várias. Primeiro, as igrejas tradicionais deixaram um vácuo na adoração, ao promover um culto formal e árido. Muitas inovações correm exatamente nos aspectos onde a igreja falha. Os crentes, hoje, querem sentir um Deus mais próximo e amigo. A transcendência deu espaço para a imanência. Na busca de sentido e identidade espiritual, apela-se para aquilo que afete o psiquismo, provoque êxtase e dê a sensação de contato com o sobrenatural.

Em segundo lugar, a filosofia pós-moderna descartou os absolutos e exaltou os relativos. Nesse contexto, as verdades objetivas do cristianismo, expressas nos grandes hinos do passado, perderam força. Além disso, as barreiras entre o sagrado e o secular caíram ou se estreitaram. O que conta agora é o aqui, o já, o eu, o que penso, quero e sinto. Muitas pessoas sentem-se na liberdade de escolher apenas os itens doutrinários que interessam à sua experiência.

Vanderlei Dorneles, ex-editor da revista Sinais e atualmente professor de jornalismo no Unasp, no interior de São Paulo, sugere em seu livro Transe Místico (Centro Universitário Adventista, 2002) uma ligação entre o pós-modernismo, o pentecostalismo e o culto primitivo. Segundo ele, o pós-modernismo preparou o caminho para a expansão do pentecostalismo. Por cultivar o subjetivismo e, na prática, minar o conceito de verdade absoluta, o pentecostalismo ocuparia na religião o lugar que o pós-modernismo ocupa na filosofia. Paradoxalmente, porém, o pentecostalismo, com sua ênfase em experiências místicas, parecidas com as experiências religiosas do antigo mundo greco-romano e da cultura africana, seria um fenômeno de natureza pré-moderna.

“A liturgia pentecostal e carismática, voltada para as experiências de transe, reflete as liturgias dos cultos antigos, em que a música e o apelo emocional eram as técnicas para a obtenção do transe”, afirma Dorneles. Por isso, diz ele: “o pentecostalismo representa melhor um retorno ao primitivo do que uma renovação religiosa”. A religião primitiva, pautada mais pelos mitos e discursos (ideias), dava grande ênfase ao corpo, ao ritmo e à dança.

Finalmente, a adoração vem sofrendo uma mudança devido a uma escolha consciente e deliberada de certas comunidades que desejam atrair para os templos as pessoas com mentalidade secular. Há igrejas, especialmente nos Estados Unidos, que oferecem diferentes tipos de culto, alguns embalados pela música rock ou pop, na tentativa de agradar o gosto das novas gerações. Na visão dessas igrejas, os resultados obtidos compensam a estratégia de marketing questionável.

Guerra musical – A música é um dos elementos centrais do culto tradicional e especialmente desse novo estilo de adoração. Nos Estados Unidos, as revistas evangélicas têm até falado em uma “guerra do culto” nas igrejas protestantes, referindo-se aos embates para definir qual é o melhor estilo de música para o culto cristão. Contudo, o pesquisador George Barna, apoiado em pesquisas do seu instituto, relativiza essas disputas. Segundo ele, 24% dos pastores titulares reconhecem que suas igrejas enfrentam tensões relacionadas ao estilo musical, mas somente 5% deles alegam que as tensões são fortes. No total, apenas cerca de 7% das congregações protestantes no país têm conflitos “sérios” ou “mais ou menos sérios” na área de música.

As pesquisas do grupo Barna também revelaram que somente 17% dos entrevistados definitivamente ou provavelmente trocariam de igreja por causa de uma alteração no estilo musical, enquanto 76% não mudariam seus hábitos por causa de um novo estilo musical. Caso a pessoa fosse tentada a buscar uma igreja devido ao fator música, as opções seriam muitas. Cerca de 73% das igrejas protestantes oferecem múltiplos cultos, com estilos musicais variados. O numero de igrejas que oferecem música tradicional, utilizando hinos, coral, órgão ou canto congregacional, chega a 46%. Quase a mesma porcentagem (43%) usa música “mista”, uma combinação de dois ou mais estilos no mesmo culto. Outros estilos usados são o rock e a música cristã contemporânea (usados em 24% das igrejas), louvor e adoração (em 8%) e gospel (em 7%).

Barna falou sobre o assunto no final do ano passado num simpósio promovido na Universidade Beylor, em Waco, Texas. Citando conclusões de três pesquisas sobre o tema nos Estados Unidos, ele sugeriu que o problema real não é a escolha do estilo de música pelas igrejas para facilitar a adoração, mas o interesse e a participação consciente do publico no ato de adorar. A maioria das igrejas tem pouca gente que realmente se engaja na adoração. “O desafio maior”, diz Barna, é ajudar as pessoas a entender a adoração e a ter uma paixão intensa para ligar-se a Deus.

Na opinião do pesquisador, a música é importante no processo de adoração, mas tem recebido mais atenção do que merece. “A música é apenas uma ferramenta projetada para capacitar as pessoas a se expressar diante de Deus, embora às vezes gastemos mais tempo debatendo sobre a ferramenta do que sobre o produto e o propósito da ferramenta”.

Apesar de possíveis distorções, muitas pessoas parecem estar satisfeitas com a sua experiência de adoração. Segundo Barna, quatro em cinco norte-americanos (83%) dizem que saem do culto sentindo-se aceitos ou completamente amados por Deus “toda vez” ou “na maioria das vezes”, 69% normalmente saem inspirados; 62% sentem-se como se tivessem conectados com Deus ou estado em Sua presença em muitos casos; 50% freqüentemente sentem-se desafiados a mudar de vida; e apenas um pequeno número deixa os templos sentindo-se culpados ou desapontados (10%), ou frustrados por não terem suas necessidades atendidas (8%).

Equilíbrio – Muitas pessoas hoje tendem a ver a adoração como uma atividade que visa trazer benefícios para elas mesmas. Elas querem tocar, sentir, receber. Contudo, o objetivo principal da adoração é render honra e tributo ao Criador, sentindo Sua presença e conectando-se à fonte da vida. Os benefícios pessoais vêm como conseqüência. O foco do culto deve ser Deus, não o eu. No culto bíblico, somos tocados, transformados e então oferecemos a vida a Deus (veja o anexo 01: “A adoração bíblica”).

Um dos problemas com este novo estilo de adoração é que ele geralmente enfatiza demais o corpo e a emoção, em detrimento dos neurônios e da razão. É claro que a emoção e o corpo são importantes na adoração. Porém, não se deve esquecer o lado racional. A religião cristã é uma religião da mente e do corpo, da razão e da emoção, da revelação e da experiência. Devemos expressar nosso amor a Deus com o intelecto, a emoção e o corpo.

O cristianismo é um equilíbrio entre transcendência e imanência. Se de alguma forma o antigo Testamento, com a Torah (lei), estabelece a santidade e a transcendência de Deus, o Novo Testamento, com Jesus, ressalta o amor e a imanência de Deus. O culto cristão, assim, deve unir elementos que mostrem o distanciamento e a aproximação, a grandeza e o interesse de Deus.

O problema com certos cultos modernos não está no fato de serem diferentes do tradicional. É possível ser diferente e ainda promover a verdadeira adoração. Assim como os quatro evangelhos apresentam ângulos diferentes da vida de Cristo, todos válidos, os diversos estilos litúrgicos também podem contribuir para o enriquecimento da experiência de Deus. O problema é quando excessos e elementos estranhos subvertem o próprio conceito de adoração.


Anexo 01: “A Adoração Bíblica”.

Nas línguas originais da bíblia (hebraico e grego), as palavras mais usadas para descrever o ato de adorar significam “inclinar-se”, “prostrar-se”, “ajoelhar-se”, “beijar”, “homenagear”, “servir”. O sentido básico é visto neste convite do Salmo 95: “Ó, vinde, adoremos e prostremo-nos; ajoelhemos diante do Senhor que nos criou”.

Na perspectiva bíblica, portanto, a adoração é um ato de celebração de Deus. Adorar é reconhecer o valor supremo de Deus; é expressar um amor sem medida pelo Criador; é dar glória ao único ser que a merece; é aplaudir o Rei do Universo com a mente, o coração e o corpo; é afirmar que Deus é o máximo. Adoramos por Deus ser quem Ele é e por fazer o que faz. Adoramos porque somos atraídos pela santidade e o amor de Deus.

A adoração deve ser espiritual e verdadeira. Isso quer dizer que ela precisa ser centralizada em Deus; ser mediada por Cristo; ser orientada pela Palavra de Deus; envolver todo o ser; ser voltada para o passado, o presente e o futuro; expressar exteriormente o que está no interior.

Na adoração, o crente tem uma nova visão de Deus e de si mesmo. Ele reconhece sua condição de pecado, busca a graça, e então se sente perdoado, purificado e transformado. Aceita à missão de Deus para sua vida e leva a adoração para o espaço secular, vivenciando o sagrado no dia-a-dia.


Anexo 02: “Teologia da Música”.

Samuele Bacchiocchi, autor de The Christian and Rock Music (O Cristão e a Música Rock), sem tradução no Brasil[1], diz que “a controvérsia sobre o uso da música rock na igreja é fundamentalmente teológica, porque a música é como um prisma através do qual brilham as verdades eternas de Deus”. As músicas cantadas e os instrumentos tocados durante o culto expressam o que uma igreja acredita sobre Deus e Sua revelação para nós.

Na opinião do teólogo, o rock religioso representa um “empobrecimento teológico”, pois em geral suas letras se baseiam em uma teoria inadequada, superficial ou mesmo herética, voltada para a gratificação pessoal e centrada no eu. Há um apelo fácil ao emocional e evita-se cantar sobre a glória, a beleza e santidade de Deus.

Defendendo uma separação entre o “sagrado” e o “profano”, Bacchiocch alerta que os lideres que insistem em usar um ritmo pesado na igreja deveriam notar que nenhum instrumento de repercussão foi permitido no Templo de Jerusalém. Instrumentos associados a diversões seculares, como tamborins, cornetas e cítaras, também foram proibidos, o que indicaria que a música na igreja não deve estar baseada apenas no gosto pessoal ou nas preferências culturais.

Para o teólogo, a adoração na Igreja deveria refletir a adoração celestial, vislumbrada especialmente no livro do Apocalipse. “A música triunfante de Apocalipse é inspirada não pela pulsação hipnótica de instrumentos de percussão, mas pela revelação maravilhosa dos feitos redentores de Deus por Seu povo”, comenta. “No Apocalipse é o conjunto instrumental das harpas que acompanha o cântico dos coros, porque o som da harpa combina-se bem com a voz humana, sem suplantá-la”.

A música na igreja deve expressar a delícia e a alegria de estar na presença de Deus, mas sem emocionalismo artificial e exagerado.


Anexo 03: “Indústria do Louvor”.

A chamada “música de louvor e adoração”, marcada pela presença de violão e outros instrumentos, foi introduzida há quase trinta anos nos Estados Unidos. Em 1974, o selo Maranatha! Music iniciou a virada com o lançamento de The Praise Album, que trazia faixas melódicas e memoráveis como “Seek Ye First”, de Karen Lafferty.

Com a descoberta de que o louvor dá lucro, vários outros selos foram criados. Maranatha!, Integrity, Sparrow e Vineyard são apenas quatro companhias que formam hoje uma industria multimilionária, oferecendo um amplo leque de produtos, como CDs, vídeos, publicações e serviços de Internet.

A renovação evangélica começou na década de 1960, na Grã-Bretanha. Na época, um grupo liderado por Eric Routley fez um estudo para descobrir o tipo de música que poderia cativar o ouvido contemporâneo. Através de George Shorney Jr, da Hope Pulishing Company, o trabalho de Routley e de outros se espalhou pelos Estados Unidos, e de lá para o mundo.

Hoje canções como “Lord, I Lift Your Name on High”, “He Has Made Me Glad”, “As The Deer”, “Majesty”, “Awsome God”, The Power of Your Love” e “Shout to the Lord”, com suas muitas traduções e versões, convivem com os hinos clássicos e, em algumas igrejas, os substituíram. É um tipo de música mais leve, que fala diretamente a Deus (e não sobre Ele), que tem sido aceito até mesmo por crentes tradicionais. A introdução do rock nos tempos foi uma radicalização dessa tendência, a qual é rejeitada por muitos.


Nota:

[1] Não existe uma tradução no Brasil deste livro que esteja impressa (publicada oficialmente). Todavia, com a devida autorização do autor, o site Música Sacra e Adoração, disponibiliza ao leitor uma tradução. Para acessá-la na íntegra, basta clicar sobre o nome do livro, no artigo (nota dos editores do site).


Fonte: Revista Sinais dos Tempos, Maio-Junho, 2003, pp.07-10.

Tags: